VALOR PROBATÓRIO
Como visto, de instrução provisória e caráter inquisitivo, o inquérito policial tem valor informativo para a instauração da competente ação penal (MIRABETE, 2003, p. 79). De acordo com Medeiros (1994, p 17), em definição sintética, a autoridade policial tem por função indicar as provas ao Juiz-Instrutor, a quem compete colhê-las ouvindo testemunhas e suspeitos. Capez (2006, p. 80) ajuda no entendimento ao dizer também que o inquérito policial tem conteúdo informativo, tendo por finalidade fornecer ao Ministério Público ou ao ofendido, conforme a natureza da infração (analisada anteriormente), os elementos necessários para a propositura da ação penal. No entanto, diz o mesmo autor, tem valor probatório, embora relativo, haja vista que os elementos de informação não são colhidos sob a égide do contraditório e da ampla defesa, nem tampouco na presença do juiz de direito, indicando que, se houver uma confissão extrajudicial, a sua validade como elemento de convicção do juiz só será observada caso seja confirmada por outros elementos da instrução processual (p. 76).
Na doutrina e jurisprudência, há duas correntes a respeito do verdadeiro valor probatório do inquérito policial. A primeira defende o ponto de vista de que ele é uma peça meramente informativa, que põe o Ministério Público a par do fato delituoso, não tendo qualquer valor probatório; na formação da opinio delicti encerra sua finalidade. Tourinho Filho (1995, p. 06-7) complementa que se o inquérito é apenas uma informatio delicti para possibilitar ao titular da ação penal sua propositura é claro que, se o titular do jus persequendi in judicio tiver em mãos os elementos que o habilitem a ingressar em juízo, torna-se ele desnecessário. A segunda corrente admite a possibilidade de o juiz basear o seu livre convencimento em peças do inquérito, assim, tratando-se de um inquérito bem elaborado, com os atos investigatórios realizados de maneira legal, sem falhas e omissões, o juiz poderá basear-se em peças procedimentais da fase policial, desde que estas não estejam em frontal contradição com as provas colhidas na instrução. Tal é o mesmo posicionamento de Cogan, citado por Mirabete (2003, p. 79-80), afirmando que o conteúdo do inquérito, tendo por finalidade fornecer ao Ministério Público os elementos necessários para a propositura da ação penal, não poderá deixar de influir no espírito do juiz na formação de seu livre convencimento para o julgamento da causa.
De acordo com o princípio do livre convencimento que informa o sistema processual penal, aliás, as circunstâncias indicadas nas informações da polícia podem constituir elementos válidos para a formação do convencimento do magistrado, mas existe alerta doutrinário e jurisprudencial para uma eventual fundamentação exclusiva na investigação preliminar. O inquérito, certamente, serve para colheita de dados circunstanciais que podem ser comprovados ou corroborados pela prova judicial e de elementos subsidiários para reforçar o que for apurado em juízo; não se pode, porém, fundamentar uma decisão condenatória apoiada exclusivamente no caderno investigativo, o que ofenderia o princípio constitucional do contraditório. É este, inclusive, o posicionamento espelhado pelo STF nos últimos anos: "Consoante já decidiu esta Suprema Corte, ‘os elementos do inquérito podem influir na formação do livre convencimento do juiz para a decisão da causa quando complementam outros indícios e provas que passam pelo crivo do contraditório em juízo’ – RE 425.734, DJ 28.10.2005 – RHC 99057/MS-Mato Grosso do Sul’ (RHC 99057 MS-Mato Grosso do Sul, 2.ª T., DJU 06/11/2009, relatora Ministra Ellen Gracie)”; a contrario sensu: “Não há falar em condenação apenas com base em elementos inquisitoriais se da leitura da sentença e do acórdão verifica-se que foram produzidas em juízo, sob o pálio do contraditório e da ampla defesa, provas documentais e ouvidas outras testemunhas, formando o conjunto probatório que culminou no édito condenatório” – HC 114670/SP São Paulo, j. em 04/06/2013, DJe 24/06/2013, relatora Ministra Rosa Weber.
Todavia, não se pode ser extremista, negando validade ao inquérito policial só porque o acusado retratou em juízo sua confissão, ou porque alguma testemunha deixou de confirmar o que disse antes de suas declarações judiciais. Para Boschi (1987, p. 124) o inquérito policial, efetivamente, não pode ser considerado a priori destituído de qualquer valor. Recorda o autor que em seu interior são produzidas as chamadas provas “pré-constituídas” (perícias), as quais contém em si maior dose de veracidade, visto que nelas preponderam fatores de ordem técnica, que, além de mais difícil de serem deturpadas, oferecem campo para uma apreciação objetiva e segura de suas conclusões. Assim, o inquérito policial sobreleva o valor relativo, pois se reveste de importância quanto às provas periciais, fornecendo base para o oferecimento da denúncia e orientando esta na fixação do tipo penal aplicável. No mesmo caminho, quanto às provas chamadas também de não-repetíveis ou irrepetíveis, por correrem o risco de não poderem ser repetidas na fase processual, podendo fundamentar a decisão final com esteio no art. 155, caput, do CPP, diz-nos Nucci (2009, p. 20) que os exames periciais são os maiores exemplos, como a necropsia do corpo da vítima de homicídio, pois, se realizada após uma exumação, na fase processual, não permitiria conclusões tão apuradas à perícia quanto a análise realizada logo após o crime. Mesmo concordando com o valor probatório relativo do inquérito, Salles Junior (1998, p. 130) esclarece:
Isso não significa que os elementos do inquérito tenham valor simplesmente passageiro, deixando de existir se não renovados no decorrer da instrução criminal. Adotar tal orientação seria admitir que certos atos próprios do inquérito desapareceriam pura e simplesmente dada a impossibilidade de renovação em juízo. Por exemplo: nos delitos que deixam vestígios, a legislação processual penal impõe a necessidade de exame pericial. Esse exame (corpo de delito para lesões corporais, conjunção carnal para sedução etc.) tem por finalidade perpetuar uma situação inexistente após o delito e que pode sofrer alterações com o tempo, podendo até mesmo desaparecer. Autos de apreensão e de avaliação continuam a ter valor independentemente de qualquer renovação em juízo. Podem ser impugnados, mas podem subsistir inteiramente válidos como elementos de prova.
Bernardo e Santana (1994, p. 86), ademais, afirmam que, segundo as estatísticas, constata-se que 99,9% dos condenados pelo Poder Judiciário, em todo o Brasil, tiveram o início pela information delicti oferecida pelo inquérito policial, sendo que a veracidade de tal assertiva poderá ser constatada em qualquer foro do país. No mesmo sentido, elucida Carvalho (2013):
Os manuais doutrinários de Processo Penal, bem como a maioria dos estudiosos da área, definem o Inquérito Policial como sendo uma peça meramente informativa, destinada à apuração de uma infração penal e de sua autoria. Poucos se aprofundaram no assunto, projetando, assim, a nítida impressão de que referido procedimento investigativo não possui nenhum tipo de importância significativa para o sistema processual penal. Esquecem-se, no entanto, que a quase totalidade das ações penais em curso ou já transitadas em julgado, foram precedidas de um Inquérito Policial. Tal assertiva pode ser comprovada através de pesquisas junto a qualquer Comarca do nosso extenso território. Para tal, basta a verificação de que a denuncia oferecida pelo representante do Ministério Público, titular exclusivo da ação penal publica incondicionada, inicia-se da seguinte maneira: “Consta do incluso Inquérito Policial que no dia..., por volta das ...., fulano de tal”, seguida da exposição do fato criminoso com todas as suas circunstâncias [grifo do autor].
O valor probatório do procedimento policial, ademais, tende a angariar outros entendimentos conforme os últimos indicados, em atendimento ao que dispõe a novel Lei n.º 12.830/13, ao deixar explícito em seu art. 2.º: “As funções de polícia judiciária e a apuração de infrações penais exercidas pelo delegado de polícia são de natureza jurídica, essenciais e exclusivas de Estado” (nosso destaque).
PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS NO INQUÉRITO POLICIAL
A intenção, neste ponto, é de oferecer elementos para a melhor compreensão de alguns princípios constitucionais, implicando, assim, no ponto chave da questão, isto é, a interpretação constitucional encontrada na fase policial, embasando sua relevância à fase judicial.
No processo penal, tais princípios inserem-se determinando suas premissas básicas e condicionando seus autores à consecução dos seus fins. O inquérito policial integra a fase extraprocessual, porém não deixa de seguir ritos constitucionais como, por exemplo, o do estado de inocência, da igualdade, do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa, da verdade real e tantos outros, positivados também no Código Instrumental. No entanto, é significativa a posição dos doutrinadores de que não há efetivo contraditório e ampla defesa no inquérito policial, justamente por ser um procedimento inquisitivo, como visto, inexistindo um efetivo processo penal.
Dessa forma, importante se faz estudar estes princípios de maior vulto da Carta Magna destinados ao processo penal, para compreensão lúcida de seu reflexo em seara inquisitorial.
Princípio do estado de inocência, da “presunção” de inocência ou princípio da não-culpabilidade[2]
Em sua obra clássica, Beccaria (1997, p. 61), ao escrever sobre a época do absolutismo, comenta que um homem não pode ser chamado culpado antes da sentença do juiz, e a sociedade só lhe pode retirar a proteção pública após ter decidido que ele violou os pactos por meio dos quais ela lhe foi outorgada. Assim, questiona: Qual é, pois, o direito, senão o da força, que dá ao juiz o poder de aplicar pena ao cidadão, enquanto existe dúvida sobre sua culpabilidade ou inocência? Destarte, o princípio do estado de inocência busca a importância moral de uma coletividade, a qual, segundo Tourinho Filho (2005, p. 61-2), representa o coroamento do devido processo legal, sendo um ato de fé no valor ético da pessoa, próprio de toda a sociedade livre, contudo, adverte que a expressão (presunção de inocência) não deve ter o seu conteúdo semântico interpretado literalmente – caso contrário ninguém poderia ser processado –, mas no sentido em que foi concebida na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, ou seja, nenhuma pena pode ser imposta ao réu antecipadamente. Para o mesmo autor, com relação à prisão antecipada, esta se justifica como providência exclusivamente cautelar, vale dizer, para impedir que a instrução criminal seja perturbada ou, então, para assegurar a efetivação da pena, sem ofender a presunção de inocência, instando recordar o entendimento do STJ, em sua Súmula 09: “A exigência da prisão provisória, para apelar, não ofende a garantia constitucional da presunção de inocência”.
A questão da presunção da inocência, existente no processo antes do trânsito em julgado de uma decisão condenatória, é refletiva no procedimento policial, paradoxalmente ao contraditório e a ampla defesa, que, segundo entendimentos, seriam inexistentes no inquérito. Nesse sentido, advoga Canotilho, citado por Bastos e Martins (1989, p. 277), aduzindo que o rigorismo de interpretação levaria à concussão da própria inviabilidade da antecipação de medidas de investigação e cautelares (inconstitucionalizando a instrução criminal) e a proibição de suspeitas sobre a culpabilidade. Todavia, investigar, ou até mesmo processar uma pessoa, não significa afrontar a este princípio; de fato, embora alguém só possa ser tido por culpado ao cabo de um processo com este propósito, o fato é que, para que o poder investigatório do Estado se exerça, é necessário que ela recaia mais acentuadamente sobre certas pessoas, vale dizer: sobre aquelas que vão mostrando seu envolvimento com o fato apurado (BASTOS, MARTINS, 1989, p. 277). Assim, a presunção de inocência, estampada pelo inciso LVII do art. 5.º da Carta Magna, ao afirmar que ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória, dita, como regra, que toda pessoa é considerada inocente desde a investigação policial até o final de um processo, quando, então, somente será considerada culpada e responsabilizada caso a sentença o determine. Todavia, não há outra conclusão senão de que surge uma suspeição que não pode ser rebatida por medida judicial requerida pelo suspeito, com fundamento em sua presunção de inocência. Portanto, não pode impedir que o Poder Público, através da Polícia Judiciária, cumpra sua tarefa, qual seja, investigar, desvendar o ocorrido, identificar o culpado e formalizar esta acusação.
Princípio da igualdade
Capez (2006, p. 19) entende que tal princípio é, sem dúvida, um dos mais importantes para uma nação que vislumbra justiça. Como forma de assegurar a todo e qualquer indivíduo o direito de um processo justo e isonômico, encontrou guarida na Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948, tendo como redação que todo homem tem direito, em condições de plena igualdade, de ser ouvida publicamente e com justiça por um tribunal independente e imparcial, para a determinação de seus direitos e obrigações ou para exame de qualquer acusação contra ela em matéria penal. Na legislação infraconstitucional. as expressões legais de tal prevalência são os textos dos arts. 386, VI, 607, 609, Parágrafo único, e 621 e seguintes do CPP, informando-nos que as partes, embora figurem em polos opostos, situam-se no mesmo plano com iguais direitos, ônus, obrigações e faculdades. É uma consequência do princípio do contraditório (TOURINHO FILHO, 2005, p. 42), deduzindo-se que acusação e defesa devem ter em juízo as mesmas oportunidades de fazer valer suas razões, e ser tratadas igualitariamente, na medida de suas igualdades, e desigualmente, na proporção de suas desigualdades (CAPEZ, 2006, p. 19).
Consolidou-se, assim, a garantia constitucional de um processo ordenado, garantia característica de países democráticos com o intuito de resguardar seus cidadãos de arbitrariedades que possam advir de seus próprios governantes. Por conseguinte, toda atuação do Estado há de ser exercida em prol da nação, mediante o processo justo, efetivando o princípio constitucional da igualdade e a manutenção do Estado Democrático de Direito.
No mesmo sentido, porém tratando do princípio da igualdade dentro do inquérito policial, Godoy Neto (2009, p. 183) adverte que dentre os princípios constitucionais existentes, não há como negar que atinge diretamente a ação da Polícia Judiciária, o do sistema dos direitos fundamentais e, em decorrência, o da constitucionalidade, o da igualdade e o da legalidade. Assim, falar-se em inquérito policial no estado Democrático de Direito é, fundamentalmente, apreciar o alcance dos preceitos do rol constitucional do art. 5º sobre o referido procedimento policial. Segundo o autor, dada a circunstância de que a peça fundamental, e que corporifica a parcela principal das ações da polícia repressiva, é o inquérito policial, tendo-se como indiscutível que sua elaboração deve se pautar pela atenta observação de todos os direitos fundamentais como dado incontestável do Estado Democrático de Direito, deve a autoridade policial trabalhar com o texto do art. 5º da Carta Magna como norte, como limite intransponível a orientar cada passo de sua atuação profissional.
Princípio do devido processo legal
Consiste em assegurar a pessoa o direito de não ser privada de sua liberdade e de seus bens sem a garantia de um processo desenvolvido na forma que estabelece a lei, isto é, o devido processo legal, assegurado na Constituição (art. 5.º, LIV), assegura a todos o benefício de somente ser processado de forma justa, embasado na lei, a qual disciplina todos os atos processuais, dando maior segurança ao acusado. Como bem ensina Moraes (2003, p. 123),
o devido processo legal configura dupla proteção ao indivíduo, atuando tanto no âmbito material de proteção ao direito de liberdade, quanto no âmbito formal, ao assegurar-lhe paridade total de condições com o Estado-persecutor e plenitude de defesa (direito à defesa técnica, à publicidade do processo, à citação, de produção ampla de provas, de ser processado e julgado pelo juiz competente, aos recursos, à decisão imutável, à revisão criminal).
Tourinho Filho (2005, p. 58) aduz que já houve quem pensasse, em face do princípio em tela, que haveria dificuldades para a decretação da prisão preventiva, mas sem razão, contudo, isso porque ditas prisões continuarão desde que observadas as prescrições legais. Citando Couture, leciona que, em última análise, o devido processo legal consiste no direito de não ser privado da liberdade e de seus bens sem a garantia que supõe tramitação de um processo desenvolvido na forma estabelecida pela lei.
De relevante importância, como os demais princípios, é de se concluir, pelo explanado, que o procedimento inquisitorial está, sim, submetido ao princípio do devido processo legal, uma vez que o inquérito policial, embora não sujeito a fórmulas do processo em geral, deve obedecer um rito estabelecido na lei processual ordinária e, em primeiro lugar, na Constituição Federal, já que esta impõe com eficácia plena e aplicação imediata do mencionado princípio como garantia básica e fundamental de todo cidadão.
Lembra Capez (2006, p. 33), ademais, que este princípio deve ser obedecido não apenas em processos judiciais, civis e criminais, mas também em procedimentos administrativos, inclusive militares e até nos procedimentos administrativos do Estatuto da Criança e do Adolescente.
Princípio do contraditório e da ampla defesa
O mais importante princípio do sistema acusatório (separação orgânica entre o órgão acusador e o órgão julgador), também conhecido pelo nome de princípio da bilateralidade da audiência, consiste, em resumo, na possibilidade das partes, em igualdade de condições, praticarem todos os atos tendentes a influir no convencimento do juiz (BECHARA, CAMPOS, 2006), possuindo forte relação com o princípio da igualdade. Apesar de estarem colocados juntos no imperativo constitucional, os doutrinadores classificam separadamente a ampla defesa e o contraditório, por isso o princípio é identificado na doutrina pelo binômio ciência-participação (CAPEZ, 2006, p. 19).
Bastos e Martins (1989, p. 267) lecionam que o contraditório é a exteriorização da própria defesa, de forma que a todo ato produzido caberá igual direito da outra parte de opor-se ou de dar-lhe a versão que lhe convenha, ou ainda de fornecer uma interpretação jurídica diversa daquela feita pelo autor. Conforme Tourinho Filho (2005, p. 46-7), pelo princípio do contraditório deve haver completa igualdade de condições entre as partes,
[...] mesmo porque o princípio supõe completa igualdade entre acusação e defesa. Uma e outra estão situadas no mesmo plano, em igualdade de condições, e, acima delas, o Órgão Jurisdicional, como órgão “superpartes”, para afinal, depois de ouvir as alegações das partes, depois de apreciar as provas, “dar a cada um o que é seu”.
A garantia do contraditório abrange a instrução lato sensu, incluindo todas as atividades das partes que se destinam a preparar o espírito do juiz, na prova e fora da prova. Compreende, portanto, as alegações e os arrazoados das partes (MIRABETE, 2003, p. 43).
Marques, citado por Bastos e Martins (1989, p. 261), comentando esta garantia constitucional, diz-nos que o direito de defesa acabou bastante reforçado na fase preparatória e instrutória (basta dizer que o defensor do réu pode assistir a diversos atos da instrução), mas a instrução preliminar continua predominantemente inquisitiva, visto que, segundo o autor, nem mesmo na instrução formalizada em sede policial, com a assistência técnica ao investigado, em ato presidido pela autoridade policial, existe o contraditório. No mesmo rumo, Tourinho Filho (2005, p. 50) ensina que a autoridade policial não acusa; investiga, sendo a investigação contraditória um não-senso. Se assim é, conclui, parece não ter sentido estender o instituto do contraditório ao inquérito, em que não há acusação. Compactuando do posicionamento, diz Damásio de Jesus (1999, p. 05) que o contraditório é inexigível no inquérito policial, isso por não possuir instrução criminal e sim investigação criminal de natureza inquisitiva.
Muito embora não se fale na incidência do princípio mencionado durante a investigação pré-processual, analisando-se a redação do art. 5.º, LV, da CF, porém, é possível visualizar alguns atos típicos de contraditório, os quais não afetam a natureza inquisitiva do procedimento, como exemplos o interrogatório policial e a nota de culpa durante a lavratura do auto de prisão em flagrante (BECHARA, CAMPOS, 2006).
Quanto ao princípio da ampla defesa, traduz-se na necessidade de se dar às partes a possibilidade de exporem suas razões e requererem a produção das provas que julgarem importantes para a solução do caso penal; em síntese é a bilateralidade das controvérsias processuais, entendendo Melo, citado por Bastos e Martins (1989, p. 266), de que por tal princípio deve-se entender o asseguramento que é feito ao réu de condições que lhe possibilitem trazer para o processo todos os elementos tendentes a esclarecer a verdade. É por isso que ela assume múltiplas direções, ora se traduzirá na inquirição de testemunhas, ora na designação de um defensor dativo, não importando, assim, as diversas modalidades, em um primeiro momento. Assim, afirma o autor, o processo não se converterá em uma luta desigual em que o autor cabe a escolha do momento e das armas para travá-la e ao réu só cabe timidamente esboçar negativas.
Neste ponto, indica-se a redação dada ao art. 185 e seguintes do CPP, tratando do interrogatório judicial e que, pelo art. 6.º, V, do mesmo Diploma, aplica-se ao interrogatório policial. Entretanto, Bechara e Campos (2006) ensinam que o citado dispositivo, tratando da oitiva em juízo, consigna expressamente que suas disposições somente incidirão no inquérito policial no que for aplicável. Em assim sendo, considerando que no interrogatório policial não existe uma relação dialética entre acusador e acusado, não há que se falar em perguntas das partes, consequência do princípio analisado. Porém, Tourinho Filho (2005, p. 50) lembra que decorrência da ampla defesa existente no inquérito policial é o direito do investigado de impetrar habeas corpus sempre que sofrer ou se achar na ameaça de sofrer violência ou coação na sua liberdade de locomoção.
Indispensável em questão instrucional criminal, o princípio do contraditório e da ampla defesa não se aplicaria ao inquérito policial que não é, em sentido estrito, instrução, mas colheita de elementos que possibilitem a instrução do processo (MIRABETE, 2003, p. 43). O TJRS segue a mesma direção, consoante decisum abaixo:
APELAÇÃO CRIME. CRIMES CONTRA O PATRIMÔNIO. ROUBO DUPLAMENTE MAJORADO. PRELIMINAR DE NULIDADE DO FEITO POR RASURA NO INQUÉRITO POLICIAL. REJEIÇÃO. Eventuais vícios ou irregularidades formais ocorridos no inquérito policial não repercutem na validade do processo penal, sobretudo quando a condenação vem amparada em elementos de prova colhidos sob o crivo do contraditório, como no caso vertente. Inexistência de violação a princípios constitucionais. Precedentes doutrinários e jurisprudenciais. Hipótese em que há rasura no inquérito policial quando da oitiva das testemunhas em razão da confecção do auto de prisão em flagrante - informação que não se destina a gerar prova judicial, afastando a necessidade de eventual aditamento da denúncia ou, ainda, de decretação de nulidade do feito, como quis a Defesa. MATERIALIDADE E AUTORIA DEMONSTRADAS. Os elementos de convicção colhidos durante a instrução demonstram a materialidade e a autoria dos crimes de roubo duplamente majorados, em continuidade delitiva, pelo que não prosperam os pleitos de absolvição. Relevância da palavra das vítimas em detrimento da tese defensiva de negativa de autoria. [...] PRELIMINAR AFASTADA. APELAÇÕES DESPROVIDAS. (Apelação Crime Nº 70052633013, Sétima Câmara Criminal, TJRS, Relator: Naele Ochoa Piazzeta, Julgado em 19/09/2013)
Portanto, para grande parte da doutrina, e também da jurisprudência, por ter o inquérito policial natureza inquisitiva, não é processo, senda na verdade um procedimento administrativo informativo, sem estar sujeito ao princípio do contraditório. Todavia, conforme a Lei n.º 6.964/81, o inquérito instaurado pela Polícia Federal, a pedido do Ministro da Justiça, visando à expulsão do estrangeiro, tem nesse caso a obrigatoriedade do contraditório (CAPEZ, 2006, p. 79). Fora esta exceção, posicionamentos existem em caminho contrário às lições acima.
Consoante trabalho de Gomes, Ribeiro e Cruz (2013), o art. 5.º, LV, da Constituição Federal, é garantidor da existência do contraditório em sede policial, não podendo servir de obstáculo às ultrapassadas definições entre processo e procedimento, tampouco o fato de mencionar acusados, e não indiciados, não pode vir a ser um impedimento à sua aplicação na fase preliminar. Lopes Junior, citado pelos mesmos autores, inclusive, refere ser inegável que o indiciamento representa uma acusação em sentido amplo, por isso o legislador empregou acusados em geral, com um sentido muito mais amplo que a mera acusação formal e com o intuito de proteger também o indiciado. Corroborando com o explicitado, Pintos Junior (2013) alega que não há como o inquérito policial fugir à regra constitucional, isso porque a partir do indiciamento há um litígio entre Estado e indiciado, ou mesmo uma acusação em caráter não formal através da imputação; logo, esta lide ou acusação informal transforma o inquérito policial em processo no sentido amplo.
O STF já decidiu pela inaplicabilidade da garantia constitucional do contraditório e da ampla defesa ao inquérito policial, que não é processo, porque não destinado a decidir litígio algum, ainda que na esfera administrativa, mas entendeu ser ele objeto de direitos fundamentais do indiciado em seu curso, entre os quais o de fazer-se assistir por advogado, o de não se incriminar e o de manter-se em silêncio. Acrescentou-se na decisão que, do plexo de direitos dos quais é titular o indiciado – interessado primário no procedimento administrativo do inquérito policial –, evidencia-se a prerrogativa do advogado de acesso aos autos respectivos, explicitamente outorgada pelo Estatuto da Advocacia (Lei n.º 8906/94, art. 7º, XIV), isto porque a oponibilidade ao defensor constituído esvaziaria uma garantia constitucional do indiciado (art. 5º, LXIII), que lhe assegura, quando preso, e pelo menos lhe faculta, quando solto, a assistência técnica do advogado, que este não lhe poderá prestar se lhe é sonegado o acesso aos autos do inquérito sobre o objeto do qual haja o investigado de prestar declarações; assim, o direito do indiciado, por seu advogado, tem por objeto as informações já introduzidas nos autos do inquérito, não as relativas à decretação e às vicissitudes da execução de diligências em curso; dispõe, em consequência a autoridade policial de meios legítimos para obviar inconvenientes que o conhecimento pelo indiciado e seu defensor dos autos do inquérito policial possa acarretar à eficácia do procedimento investigatório (HC 90232 /AM-Amazonas, DJ 02.03.2007 - Relator Ministro Sepúlveda Pertence, 1.ª T., j. em 18/12/20060). Tal decisão, admitindo, pelo menos basicamente, a existência do contraditório e da ampla defesa no caderno apurativo, veio a se consolidar, em 2011, pela edição da Súmula Vinculante n.º 14: “É direito do defensor, no interesse do representado, ter acesso amplo aos elementos de prova que, já documentados em procedimento investigatório realizado por órgão com competência de polícia judiciária, digam respeito ao exercício do direito de defesa”.
Faz vulto a esta verificação o estudo realizado por Pintos Junior (2013) em que, citando lição de Lopes Junior, diz-nos que a prova que é colhida na fase do inquérito e trazida integralmente para dentro do processo acaba mascarando a decisão final do julgador, tendo em vista que a eleição de culpa ou inocência é o ponto nevrálgico do ato decisório e pode ser feita com base nos elementos do inquérito policial, disfarçada com um bom discurso. Dessa forma, diante da parte final do art. 155, alterado pela Lei n.º 11.690/08, afirma que existe sim contraditório no procedimento policial, já que, se o juiz pode fundamentar suas convicções em elementos normativos colhidos na investigação prévia, em sendo provas cautelares, irrepetíveis (como as perícias) e antecipadas, por óbvio, ao menos naquele momento, o aludido princípio deve ser observado de pronto, não cabendo dar ao investigado apenas o contraditório diferido, quando já denunciado e réu, mostrando-se tardio e ineficaz.
Princípio da vedação das provas ilícitas
Com esteio no art. 5.º, LVI, da Carta Magna, são inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meios ilícitos.
Segundo Bonfim (2009, p. 48),
o princípio constitui, em verdade, uma vedação a que o juízo adote, como elemento de convencimento no curso do processo penal elementos de prova obtidos por meios considerados ilícitos. O valor “justiça” não é absoluto, mas relativo. Nesse sentido, não pode ser perseguido à tout prix. Assim, conquanto o processo penal tenha por finalidade a busca pela verdade real, esse valor encontra limites em outros valores tutelados pelo ordenamento jurídico, principalmente nos direitos e garantias fundamentais assegurados ao cidadão. Provas obtidas por meios ilegítimos, portanto, não devem influir na formação do convencimento do juiz.
Rangel (2009, p. 434) informa que no STF o entendimento hodierno é de que a prova colhida em decorrência de uma prova obtida por meio ilícito é inadmissível no processo penal, pois ilícita por derivação, acarretando a nulidade do processo; dessa forma, aduz que se o Estado lança mão de um expediente inidôneo (entenda-se ilícito) para descobrir o fato investigado, tudo o que for descoberto que tiver relação direta com a ilicitude da prova estará contaminado.
Portanto, ainda que o mandamento constitucional fale em processo, nada impede – ao contrário, autoriza –, que tal princípio diga respeito também ao inquérito policial, precisamente na atuação da autoridade policial e seus agentes na busca da verdade.
Princípio da verdade real
Este princípio é próprio do processo penal, já que no civil o juiz deve se conformar com a verdade trazida aos autos pelas partes (verdade formal), embora não seja um mero espectador inerte da produção de provas. De acordo com o ensinamento de Tourinho Filho (2005, p. 39), no processo penal, pelas suas características singulares, torna-se mais fácil chegar à adequatio intelectus et rei. Por outro lado, continua, mesmo na justiça penal a procura e o encontro da verdade real, além de se fazerem com as naturais reservas oriundas da limitação e falibilidade humanas, submetem-se a certas restrições do próprio ordenamento jurídico que impedem tal busca. Outro não é o pensamento de Capez (2006, p. 23) ao informar que, mesmo nos sistemas em que vigora a livre investigação das provas, a verdade alcançada será sempre formal, pois não se há de negar o adágio jurídico: o que não está nos autos não está no mundo. Mirabete (2003, p. 44), contudo, adverte que existem motivos impedindo o conhecimento da verdade real, a saber: a transação permitida, por exemplo, nas ações privadas com o perdão do ofendido; a omissão ou desídia de querelante podendo provocar a perempção, além de existir inúmeras outras causas de extinção da punibilidade que podem impedir a descoberta da verdade real. No mesmo sentido, Capez (2006, p. 28-9) elenca o rol de exceções ao princípio estudado:
[...] a impossibilidade de juntada de documentos na fase do art. 406 do CPP, a impossibilidade de exigir prova no plenário do júri, que não tenha sido comunicada à parte contrária com antecedência mínima de três dias (CPP, art. 475), a inadmissibilidade das provas obtidas por meios ilícitos (CF, art. 5.º, LVI), os limites para depor de pessoas que, em razão de função, ofício ou profissão, devam guardar segredo (CPP, art. 207), a recusa de depor de parentes do acusado (CPP, art. 206), e as restrições à prova, existentes no juízo cível, aplicáveis ao penal, quanto ao estado de pessoas (CPP, art. 155).
No âmbito da Justiça Penal verifica-se uma necessidade insofismável em relação ao restabelecimento da verdade, dado a relação que o Estado tem de ferir a liberdade individual. Portanto, este princípio só deve ser exercido contra aquele que praticou o crime, na medida de sua responsabilidade. A investigação preliminar, assim, não encontra limites na forma ou na iniciativa das partes, ressalvada a vedação constitucional das provas obtidas por meios ilícitos (BECCHARA, CAMPOS, 2006).
No ensino de Godoy Neto (2009, p. 189-90) o princípio da verdade real tem o escopo de estabelecer que o jus puniendi do Estado seja exercido somente contra quem praticou a infração, nos exatos limites de sua culpa, estando, assim, excluída do procedimento policial a verdade formal, que pode ser criada até por omissões das partes, sendo, para o autor, tal verdade afirmante de simples ficções. Acrescenta, ainda, que para o sucesso da ação penal futura devem ser colhidas as provas materiais anteriormente ao seu início; dessa forma, produzida no inquérito policial, deve servir de base à ação penal ou como fundamento à sua rejeição, sendo, portanto, alicerce à ação penal. O caderno investigatório, então, contém a justa causa para a instauração ou rejeição do processo, além de serem as provas colhidas pelo órgão designado constitucionalmente para tal desiderato.
Quanto a este princípio inserto no inquérito policial, Barros (2002, p. 212) ainda esclarece:
Independentemente da avaliação feita a posteriori pelo julgador, uma coisa é estreme de dúvida: a autoridade policial e todos os seus auxiliares têm o dever de procurar desvendar a verdade sobre o fato criminoso. As investigações hão de ser impulsionadas com esse propósito. E é com base na verdade formatada nessa fase que se coloca em funcionamento a engrenagem que dá sustentação ao jus puniendi estatal.