O direito à homossexualidade

19/09/2017 às 11:47
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O artigo discute sobre liminar concedida por juízo federal que abre a possibilidade para que psicólogos tratem homossexualidade como doença e façam terapia de reversão sexual, proibida desde 1999.

No outono de 1933, o campo de concentração nazista de Fuhlsbuttel, no norte de Hamburgo, na Alemanha, foi o primeiro a começar a receber uma nova categoria de presos. Mal desciam dos trens, eram marcados com a letra A, mais tarde substituída por um triângulo cor-de-rosa. Diferentemente de suas intenções em relação aos judeus e ciganos, os soldados nazistas não pretendiam exterminar os homossexuais. Queriam "curá-los". Para isso, os prisioneiros foram submetidos a alguns tratamentos bizarros e cruéis.

Nos campos de concentração da Alemanha nazista, os homossexuais tinham os piores trabalhos e eram vistos como doentes e pervertidos até pelos demais confinados. No campo de Flossenbürg, os nazistas abriram uma casa de prostituição e forçavam os homossexuais a visitá-la. Os gays que se "curavam" eram enviados por "bom comportamento" para uma divisão militar para combater os russos. Outro tratamento oferecido aos homossexuais foi elaborado pelo endocrinologista nazista holandês Carl Vaernet. Ele castrou seus pacientes no campo de Buchenwald e depois injetou doses muito altas de hormônios masculinos, para observar sinais de "masculinização". Estima-se que 55% dos gays que entraram nos campos de concentração morreram - algo entre 5 mil e 15 mil pessoas.

Tudo isso é brutal e odioso.

Psicólogos não podem ser impedidos de atender pessoas que desejam orientação a respeito de sua sexualidade. A decisão é do juiz Waldemar Cláudio de Carvalho, da 14ª Vara Federal do Distrito Federal, ao determinar que o Conselho Federal de Psicologia (CFP) não impeça profissionais de conduzirem esse tipo de atendimento.

Uma ação popular ajuizada por uma psicóloga questiona a Resolução 1/1990, do CFP, que prevê em seu artigo 3º: “os psicólogos não exercerão qualquer ação que favoreça a patologização de comportamentos ou práticas homoeróticas, nem adotarão ação coercitiva tendente a orientar homossexuais para tratamentos não solicitados”. No documento  também se  diz: “Os psicólogos não colaborarão com eventos e serviços que proponham tratamento e cura das homossexualidades”.

Em sede de tutela de urgência, por cognição superficial, noticia-se que foi concedida liminar por juízo federal que abre a possibilidade para que psicólogos tratem homossexualidade como doença e façam terapia de reversão sexual, proibida desde 1999. Uma decisão judicial fez o Brasil recuar 27 anos e considerar a homossexualidade uma doença, classificação que perdeu em 1990 por decisão da Organização Mundial de Saúde (OMS). A liminar expedida pelo juiz federal Waldemar Cláudio de Carvalho autoriza psicólogos a oferecerem terapias de reversão sexual, que ficaram conhecidas como “cura gay”. A medida provocou a indignação do Conselho Federal de Psicologia (CFP), que vai recorrer da decisão, uma “violação dos direitos humanos sem qualquer embasamento científico”, segundo a entidade.

Preliminarmente, considere-se que o remédio proposto é inadequado. Se há interesse de discutir a norma federal, o caminho seria o ajuizamento de ação abstrata em sede de controle concentrado no Supremo Tribunal Federal. 

Incabível, pois, a ação popular. 

A ação popular visa a invalidar atos normativos ou não, inconstitucionais ou ilegais, lesivos ao patrimônio público, visando a uma ação condenatória.

Por sua vez, a representação que já era prevista no artigo 119, I, L  da E.Constitucional n. 1/69,  só referia a lei ou atos normativos em tese. Tal a ideia  que veio desde a Emenda Constitucional n. 16/65, à Constituição de 1946, e que chegou à Constituição de 1988, com o chamado controle concentrado e abstrato da norma constitucional.

Ora, a ação popular não pode fazer, por óbvio, esse papel da Ação Direta de Inconstitucionalidade de cunho eminentemente declaratório.

Caso assim se dê, a resposta a ser dada pelo Poder Judiciário ao jurisdicionado que age no interesse da sociedade, como substituto processual, é a da inadequação da via eleita com a carência de ação.

No mérito, dir-se-á que a medida judicial afronta a Constituição e Convenções Internacionais.

No dia 17 de maio de 1990 a Organização Mundial de Saúde (OMS) retirou a homossexualidade da lista internacional de doenças. Não há muito tempo o mundo todo, até os países mais liberais, lidava com a questão da opção sexual como caso de saúde pública.

Em 1975, a Associação Americana de Psicologia adotou a mesma posição e orientou os profissionais a não lidarem mais com este tipo de pensamento, evitando preconceito e estigmas falsos.

A Constituição Federal de 1988 enuncia, após declinar os princípios e objetivos fundamentais da República, os direitos e liberdades fundamentais. Dentre estes, consagrou, sobremaneira, a liberdade e a igualdade, sem os quais jamais se poderia sustentar a dignidade da pessoa humana, princípio fundamental veiculado no art. 1º, inc. III. Esses enunciados, projetando-se além do discurso vazio, possuem eficácia jurídica, indubitavelmente. Trata-se dos direitos fundamentais, por força dos termos do § 1º do próprio art. 5º; os princípios fundamentais, a seu turno, pela posição privilegiada no texto constitucional e por já compreenderem (...) a bipartição, característica da proposição de Direito em previsão e consequência jurídica.

Trata-se de um princípio impositivo que determina a liberdade de cada um de escolher a sua própria sexualidade.

Estamos diante do tratamento amplo do princípio da igualdade em seu aspecto material e formal. Todos são iguais perante a lei e na lei.

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O princípio da igualdade prevê a igualdade de aptidões e de possibilidades virtuais dos cidadãos de gozar de tratamento isonômico pela lei. Por meio desse princípio são vedadas as diferenciações arbitrárias e absurdas, não justificáveis pelos valores da Constituição Federal, e tem por finalidade limitar a atuação do legislador, do intérprete ou autoridade pública e do particular.

O artigo 5º, caput, da Constituição Federal assegura, mais do que uma igualdade formal perante a lei, uma igualdade material que se baseia em determinados fatores. O que se busca é uma igualdade proporcional porque não se pode tratar igualmente situações provenientes de fatos desiguais.

A experiência no exterior é muito clara nesse sentido.

A Suprema Corte do Canadá (Symes v. Canada, 1993) e a Suprema Corte dos Estados Unidos (Loving v. Virginia, 1967). A primeira assentou que uma discriminação não pode ser justificada apontando-se para outra; a segunda rejeitou a tese de que inexiste discriminação pelo fato de a lei permitir a todos de mesma raça o casamento e proibir, também a todos, o casamento interracial: o fato da aplicação igual não imuniza a legislação do pesado ônus da justificação cuja 14ª Emenda tem tradicionalmente requerido de leis estaduais relativas à raça.

A Suprema Corte do Havaí, por sua vez, desenvolveu raciocínio exatamente nesses termos, decidindo que a discriminação por orientação sexual configura verdadeira discriminação sexual (Baehr v. Lewin, 1993). No mesmo ano, a Corte de Apelações da Califórnia decidiu (Engel v. Worthington) que a recusa de um editor quanto à inclusão da foto de um casal homossexual em livro de recordações constituía discriminação sexual.

O Direito canadense possui outros precedentes nesse sentido (considerando a discriminação por orientação sexual como espécie do gênero discriminação sexual). Exemplos disso são as decisões em University of Saskatchewan v. Vogel (1983, caso em que se recusava a Richard North, companheiro de Chris Vogel, benefício em plano dentário) e em Bordeleau v. Canada (1989, onde se concluiu que discriminação com base no sexo também alcança discriminação envolvendo orientação sexual).

A Corte Europeia de Direitos Humanos, examinando hipóteses de discriminação por orientação sexual, sob a ótica do art. 8º da Convenção Europeia de Direitos Humanos (qualquer um tem o direito ao respeito a sua vida familiar e privada, seu lar e sua correspondência, firmou sua diretriz ao apreciar o caso Dudgeon v. UK (1981), no qual foi questionada a proibição penal, oriunda da Irlanda do Norte, de atividade sexual entre homens: a proibição legal de atos homossexuais privados entre adultos acordes de mais de 21 anos de idade viola o direito do querelante no que se refere à vida privada sob o art. 8º. Tal entendimento foi repetido nos casos Norris v. Ireland (1988) e Modinos v. Cyprus (1993). Em Dudgeon, a Corte entendeu que a proibição em tela foi (...) desproporcional às metas que buscavam ser atingidas. 

A  Convenção Americana de Direitos Humanos, da qual o Brasil também é signatário, dispõe: 

 Toda pessoa tem direito a que se respeite sua integridade física, psíquica e moral.

 Toda pessoa tem direito à liberdade e à segurança pessoais.

 Toda pessoa tem direito ao respeito de sua honra e ao reconhecimento de sua dignidade.

 Ninguém pode ser objeto de ingerências arbitrárias ou abusivas em sua vida privada, na de sua família, em seu domicílio ou em sua correspondência, nem de ataques ilegais a sua honra ou reputação.

Toda pessoa tem direito à proteção da lei contra essas ingerências ou esses ataques.

 Todas as pessoas são iguais ante a lei. Em consequência, têm direito, sem discriminação, a igual proteção da lei.

Assim há proibição de discriminação sexual, há o  reconhecimento da dignidade da pessoa humana e do resguardo da privacidade como fundamentos regentes do nosso ordenamento em matéria de orientação sexual.

Tal é o que se vê no mundo democrático, não se podendo conviver com perseguições, pensamentos anacrônicos, já ultrapassados.

A decisão acima noticiada contribui, de forma perigosa e dolorosa, para perseguições àqueles que têm a sua livre opção sexual, mandamento constitucional imperativo.No passado, durante o nacional-socialismo alemão, de triste memória, de forma já historiada, tivemos condutas ultrajantes de perseguição e afronta a direitos humanos que não devem se repetir. 

O Superior Tribunal de Justiça  reconheceu  o casamento civil entre pessoas do mesmo sexo. Quatro dos cinco ministros da quarta turma do tribunal decidiram autorizar o casamento de um casal de gaúchas que viviam juntas há cinco anos e desejam mudar o estado civil.

A decisão que beneficia o casal gaúcho não pode ser aplicada a outros casos, porém abre precedente para que tribunais de instâncias inferiores ou, até mesmo, cartórios adotem posição semelhante.

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Sobre o autor
Rogério Tadeu Romano

Procurador Regional da República aposentado. Professor de Processo Penal e Direito Penal. Advogado.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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