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O Caso dos Exploradores de Caverna sob a perspectiva da nova hermenêutica constitucional

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20/07/2018 às 15:30
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Quais os apontamentos necessários para se julgar procedente ou improcedente as acusações feitas aos espeleólogos? Reflete-se sobre a possibilidade de tal julgamento ser interpretado na nova hermenêutica.

INTRODUÇÃO

O presente ensaio se fundamenta no livro O caso dos exploradores de caverna, obra do jurisfilósofo Lon L. Fuller. A narrativa discorre quanto à necessidade de sobrevivência do grupo de espeleólogos perante uma situação extraordinária, no anseio da continuidade existencial.

O relato fictício é inspirado em dois casos reais e igualmente polêmicos, ambos de naufrágios em alto-mar, nos quais os sobreviventes se envolveram em homicídios que mais tarde foram postos à apreciação da justiça. Fuller fundamenta-se no estado de desespero e na falta de esperança dos envolvidos, na escolha da vítima pela sorte e no homicídio seguido de canibalismo.

Na obra, cinco espeleólogos ficam aprisionados em uma caverna depois de um desmoronamento. Ao correr dos dias, sem sucesso no resgate, sem alimentos e desnutridos, tomam a difícil decisão de sortear alguém para servir de alimento aos demais. Após o trigésimo segundo dia, são, finalmente, resgatados. Os quatro sobreviventes são levados a julgamento pelo homicídio cometido na caverna. Mesmo gerando uma expressiva comoção na sociedade, os quatro réus foram condenados à forca.

Em um caso extraordinário como este, o crime deve ser estudado a fundo assim como sua devida sanção. Aplicar a lei de maneira sistemática, sem o estudo adequado do caso, pode resultar no que diz ser a máxima do direito: o excesso de justiça redunda em injustiça - “summus ius, summa iniuria”.

Motivo este, que o julgamento dos espeleólogos, sofreria um desfecho diferente se interpretado sob a Nova Hermenêutica Constitucional, com primazia na adequação, ponderabilidade e proporcionalidade. Por essa razão, este trabalho tem como objetivo trazer o caso fictício ao ordenamento brasileiro e discuti–lo pelo viés da Constituição Federal, do Código Civil e do Código Penal.


2.  DESENVOLVIMENTO

2.1. Thomas Hobbes e O Senhor das Moscas[1]

Thomas Hobbes foi um cientista político e filósofo inglês, que em sua obra Leviatã elaborou uma discussão política acerca da legitimidade em um governo escolhido racionalmente, bem como as razões que levam um indivíduo a se assujeitar as normas de um estado. Este estudo culminou numa doutrina considerada a base da visão moderna de Estado, que visa resguardar a dignidade da pessoa humana, o Bem Comum, e os meios de íntegra sobrevivência.

Segundo Hobbes, anteriormente ao Pacto Social, o homem vivia em um Estado de Natureza, ambiente que favorecia a necessidade da luta pelos seus bens, gerando medo, angústia e competição. O homem estaria numa relação de guerra contra tudo e contra todos, conforme o seguinte trecho:

[...] durante o tempo em que os homens vivem sem um poder comum capaz de os manter a todos em respeito, eles se encontram naquela condição a que se chama guerra. Uma guerra que é de todos os homens contra todos os homens. A guerra não consiste apenas na batalha, ou no ato de lutar, mas naquele lapso de tempo durante o qual a vontade de travar batalha é suficientemente conhecida. Daí a noção de tempo deve ser levada em conta quanto à natureza da guerra, do mesmo modo que quanto à natureza do clima. Tal como a natureza do mau tempo não consiste em dois ou três chuviscos, mas numa tendência para chover que dura vários dias seguidos, também a natureza da guerra não consiste na luta real, mas na conhecida disposição para tal, durante todo o tempo em que não há garantia de não haver beligerância. Todo o tempo restante é de paz. (HOBBES, 2003, p. 98).

Com o propósito de explanar a teoria de Hobbes, merece atenção o longa-metragem O Senhor das Moscas, baseado no livro “Lord of the Flies” de William Golding. Na película, o avião de um grupo de crianças cai em uma ilha deserta do oceano pacífico. As crianças, sozinhas, sem representante legítimo, a princípio decidem eleger o novo líder e selar um arcaico contrato social. São escolhidos por votação dois líderes, com peculiaridades opostas. O primeiro, com eixo na racionalidade adota como meta o resgate de todos. O segundo, provido de irracionalidade e violência, visava meios fáceis e básicos para sobreviver, visto que não acreditava que seriam localizados.

Ao longo dos dias, sem resposta positiva de resgate, o instinto natural se destaca e o grupo racional perde os integrantes até restar apenas dois membros. Diante de tal estado emocional, suas faculdades são tão afetadas, que procuram matar o líder rival, sem nenhuma justificativa plausível.

Destarte, é notória a complexidade da aplicação das normas bem como o cumprimento.

2.2. Estado de Necessidade e o Direito Penal[2]

Há estado de necessidade, quando o sujeito, para se salvar, ou salvar terceiro de perigo atual, que não foi causado por ele e tampouco tem o dever de enfrentá-lo, sacrifica inevitável e razoavelmente o bem jurídico de outrem. Logo, o estado de necessidade é tido como causa de excludente de ilicitude, segundo a qual, não se pode exigir conduta diversa do indivíduo que age nessas circunstâncias, vez que estas são excepcionais. Eis a previsão legal do estado de necessidade no Código Penal Brasileiro:

Art. 23. - Não há crime quando o agente pratica o fato:

I - em estado de necessidade;

II - em legítima defesa;

III - em estrito cumprimento de dever legal ou no exercício regular de direito.

Art. 24. - Considera-se em estado de necessidade quem pratica o fato para salvar de perigo atual, que não provocou por sua vontade, nem podia de outro modo evitar, direito próprio ou alheio, cujo sacrifício, nas circunstâncias, não era razoável exigir-se.

1º - Não pode alegar estado de necessidade quem tinha o dever legal de enfrentar o perigo.

2º - Embora seja razoável exigir-se o sacrifício do direito ameaçado, a pena poderá ser reduzida de um a dois terços.

Frente à situação de terror, medo e desespero em ter sua vida ceifada, Whetmore que falava pelo grupo, perguntou quantos dias ainda seria necessário esperar para que fosse concluído o resgate. Pergunta essa que teve como resposta, caso não houvesse mais desmoronamentos, no mínimo mais uns dez dias. No entanto, em seguida recebem uma resposta negativa quanto a conseguirem sobreviver por todo esse tempo sem alimento. Neste momento, na tentativa de solucionar o sofrimento, um dado é lançado com o pretexto de decidir quem abdicaria da vida em prol do grupo. Constata-se nesse acontecimento um sinal de impulsividade que se caracteriza pelo comportamento marcado de reações rápidas e instantâneas. Em vista disso, nota-se a presença do estado de necessidade como excludente de ilicitude a fim de provar a inexistência de crime.

2.3. Sigmund Freud e o estudo da impulsividade[3]

Sigmund Freud foi um médico neurologista que desenvolveu o que hoje é à base da psicanálise. Esse deixou para a sociedade um amplo patrimônio, que engloba a transformação provocada pela descoberta do inconsciente, retira das mãos do indivíduo seu último triunfo, o ego não impera mais na mente, pois há um vasto território nela que ele desconhece, e sobre o qual não possui controle absoluto. Isto é, grande parte das ações humanas é coordenada pelo inconsciente, uma área que o homem pouco conhece.

Freud segmenta os impulsos em dois tipos: instinto de vida (Eros) e instinto de morte (Tanatos). Para ele a impulsividade primária é a perda de controle sobre vontade e desejo. Todavia, por outra vertente é a ausência de contenção sobre comportamentos agressivos.

Completa o painel dos comportamentos impulsivos aqueles determinados por erros de diversas funções inibitórias, sendo essas atribuições definidas por emoções negativas assim como medo, tristeza e repulso; a inibição ensejada por processos cognitivos como planejamento, ponderação e deliberação; o bloqueio mais complexo dos sentimentos aflitivos, que dispõe sobre os elementos antecedentes (afeto e cognição), ampliado do ofício da empatia, que resulta na aquisição de um código de valores para a gestão do convívio em sociedade. Desse modo a impulsividade mostra-se como:

A impulsividade é descrita como uma característica do comportamento marcada por reações rápidas e não planejadas, em que a avaliação das consequências não é realizada, ou o é apenas de forma parcial, focando-se preferencialmente em aspectos imediatos em detrimento das consequências em longo prazo. A impulsividade também pode ser compreendida como um fenômeno dinâmico, um desequilíbrio entre as funções propelentes e inibitórias do comportamento. Por vezes, impulsos e desejos não apresentam alterações mórbidas, nem de intensidade, mas as inibições são pobremente estruturadas, ocasionando perda de controle periódica. Outras vezes se dá o contrário, os freios estão presentes, porém os impulsos são vividos de forma intensa e, de forma recorrente, superam a inibição. (TAVARES, ALARCÃO, 2008, p. 19).

2.4. Omissão dos agentes do Estado[4]

Compreende-se por omissão todo ato de abstenção de agir, bem como o descuido ou a inobservância de realizar uma obrigação. Logo, no momento em que um indivíduo se recusa a fazer algo com um fim determinado ou não, este está cometendo uma omissão. Em algumas situações condiz com a jurisprudência, podendo ser entendida como um delito, convertida a quem realiza, voluntariamente ou não, em crime. Eis a previsão da omissão de socorro no Código Penal Brasileiro:

Art. 135. - Deixar de prestar assistência, quando possível fazê-lo sem risco pessoal, à criança abandonada ou extraviada, ou à pessoa inválida ou ferida, ao desamparo ou em grave e iminente perigo; ou não pedir, nesses casos, o socorro da autoridade pública:

Pena - detenção, de 1 (um) a 6 (seis) meses, ou multa.

Parágrafo único. A pena é aumentada de metade, se da omissão resulta lesão corporal de natureza grave, e triplicada, se resulta a morte.

Assim, quando é omitida ajuda à outra pessoa que está desamparada e desprotegida, sua omissão pode ser entendida como um crime por descuido ou negligência. Vale ressaltar que deixar de prestar socorro a quem pode vir a estar em risco não é crime. Para que haja omissão de socorro é preciso que o perigo seja não só grave, mas iminente. Segue o trecho de uma publicação do jornal Folha de S.Paulo[5] para um caso ocorrido em Ribeirão Preto no estado de São Paulo:

Por exemplo, se você sabe que alguém bate no filho sempre que bebe, e sabe que aquela pessoa chegou embriagada em casa, haveria um perigo iminente para o filho, ainda que o pai não tenha de fato começado a cometer a violência. Ou seja, ainda que seja possível que a violência não venha a ocorrer (por exemplo, se ele acaba dormindo no sofá antes de chegar ao quarto do filho) ela é iminente no sentido de ser muito provável de acontecer em um futuro muito próximo. A lógica aqui é que se o perigo já estivesse em ocorrência, não seria iminente e sequer perigo: ele seria uma violência certa e presente.

Explicado o fundamento de omissão acima, os representantes do estado não podem se silenciar perante aquele que necessite de ajuda. Mesmo que um representante não seja capaz de solucionar um problema, ele tem por dever, procurar uma resposta ou amparo de um responsável qualificado.

Quando o grupo de resgate consegue contato com os espeleólogos presos, afirma que levaria mais uns dez dias até serem resgatados, então o resgate é questionado sobre as chances de sobrevivência do grupo sem nenhum alimento, os médicos respondem com pessimismo, aumentando ainda mais o desespero dos exploradores. Sem alternativas e fora do juízo perfeito devido às circunstâncias, Whetmore pergunta aos médicos se poderiam sobreviver os próximos dias caso se alimentassem de carne humana. Os médicos, mesmo relutantes, afirmam que sobreviveriam até o resgate chegar. Com um pouco de lucidez, Whetmore solicita o amparo legal do estado para sua questão, ele não recebe uma resposta clara, conforme o trecho:

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[...] Whetmore, então perguntou se havia entre os presentes um juiz ou outro oficial do governo que pudesse responder tal questão, nenhum dos presentes se apresentou como conselheiro. Perguntou ainda, se um padre ou um ministro poderia sugerir algo, porém, ninguém se qualificou. Após isso, nenhuma mensagem foi recebida de dentro da caverna e, assumiu-se erroneamente que a bateria do comunicador dos exploradores havia descarregado. (FULLER, 2008, p.19)

É procedente para este Estado que ficou em silêncio diante de tal proposta, condenar os espeleólogos por sua única alternativa de sobrevivência? Pergunta bárbara aos que estão em juízo perfeito e com meios básicos para sobrevivência, mas coerentes àqueles que diante da morte eminente e sem alternativas, somadas as faculdades mentais severamente abaladas por fatores psicológicos e biológicos.

Logo, o Estado tem grande importância do ato cometido pelo grupo, visto que não impediu o crime quando teve a oportunidade de responder a pergunta de Whetmore. Dessa forma, o Estado não preveniu um crime que ainda não tinha ocorrido, por clara omissão. Inclusive o Estado age como cúmplice nesta questão. Somado a omissão do estado, a sociedade dos espeleólogos contribui negativamente para o caso, visto que eles sabiam que o grupo de exploradores era experiente, e os veteranos certamente carregavam equipamento de comunicação em suas explorações de cavernas. A sociedade dos espeleólogos poderia ter entrado em contato com o grupo assim que souberam do caso, evitando que passassem tantos dias para serem resgatados e o consequente homicídio. Logo ela foi negligente ao não considerar o fato.

Ainda, conforme explicado por Ayrton Figueiredo[6], delegado de polícia do RS, é estabelecido no Código Penal Brasileiro, em seu art. 13, §2º:

 “A omissão é penalmente relevante quando o omitente devia e podia agir para evitar o resultado. O dever de agir incumbe a quem: a) tenha por lei obrigação de cuidado, proteção ou vigilância; b) de outra forma, assumiu a responsabilidade de impedir o resultado; c) com seu comportamento anterior, criou o risco da ocorrência do resultado”.

A constituição, bem como o código civil brasileiro, institui a responsabilidade subjetiva do Estado, dos danos causados pelos seus agentes da Administração Pública. Segue primeiramente o artigo da Constituição Federal de 1988:

Art. 37, §6º: As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa.

Adiciona-se o seguinte artigo do Código Civil Brasileiro:

Art. 43. As pessoas jurídicas de direito público interno são civilmente responsáveis por atos dos seus agentes que nessa qualidade causem danos a terceiros, ressalvado direito regressivo contra os causadores do dano, se houver, por parte destes, culpa ou dolo.

Destarte, o Estado é tão responsável pelo homicídio quanto os próprios exploradores, não havendo uma legitimidade para usar seu poder de imperium e condenar os quatro sobreviventes. Também, se o julgamento prosseguir, este deve levar em consideração o estado fisiológico e emocional, pois é um caso totalmente extraordinário, bem como responsabilizar os demais envolvidos na omissão durante todo o processo de resgate.

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Sobre a autora
Ana Luisa Martins da Silva

Discente do 6º período do curso de direito da Faculdade de Direito do Sul de Minas. Pouso Alegre – MG.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVA, Ana Luisa Martins. O Caso dos Exploradores de Caverna sob a perspectiva da nova hermenêutica constitucional. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 23, n. 5497, 20 jul. 2018. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/60779. Acesso em: 19 abr. 2024.

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