Uma decisão recente do juiz Hamilton Gomes Carneiro, da 132ª Zona Eleitoral de Goiás, que concedeu o direito a um advogado, por meio de uma ação ordinária, de ser candidato nas próximas eleições sem estar filiado a um partido político, mostra que estamos adentrando num novo modelo eleitoral, que necessita ser urgentemente debatido e estudado para não cairmos na armadilha de mais uma “pseudo solução democrática”, o que está em jogo nessa questão modificará todas as estruturas partidárias do país e a sua apreciação jurídica e social não devem passar em branco, o que esperar dessa ruptura com o atual modelo? Será que a solução dos nossos problemas políticos passa pela diminuição dos poderes dos partidos? Aumentará a participação popular? A democracia ganhará?
Sabemos que em matéria eleitoral muitos transtornos batem as nossas portas. Há claros erros que passivamente acompanhamos a cada dois anos, quando os cidadãos de nosso país devem, obrigatoriamente, a contragosto de muitos, comparecer às urnas para eleger seus representantes, mesmo quando nenhum os representa, transtornos que são jogados para debaixo do tapete, vide que a tão falada reforma política não saiu do papel mais uma vez, e que são uma clara afronta a um sistema democrático sadio, problemas repetitivos e de conhecimento de todos.
Mas um fato recente chamou a atenção do mundo político do país, com todos os problemas que temos atualmente, uma situação ganhou grande repercussão e já está no STF para análise, com relatoria do ministro Roberto Barroso. Um juiz de Goiás concedeu o direito a um advogado, de poder, por livre e espontânea vontade, sem necessidade de filiação partidária, disputar as eleições do próximo ano. Ao ler a decisão do meretíssimo, sobreveio-me algumas indagações, dúvidas e a certeza de que precisaria analisar o fato juridicamente com cuidado.
A referida decisão vai de encontro com a nossa Constituição, e isso salta aos olhos, qualquer pessoa que se debruçar sobre o Art 14, § 3º, de nossa Lei Maior, verá que no inciso V a filiação partidária é obrigatória para as condições de elegibilidade. Para termos o direito de sermos votados, temos que estar filiados.
Art. 14. A soberania popular será exercida pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, com valor igual para todos, e, nos termos da lei, mediante:
§ 3º São condições de elegibilidade, na forma da lei:
I - a nacionalidade brasileira;
II - o pleno exercício dos direitos políticos;
III - o alistamento eleitoral;
IV - o domicílio eleitoral na circunscrição;
V - a filiação partidária
Se ele não se baseou na Constituição, qual foi a fundamentação usada pelo nobre magistrado?
Ele se utilizou de Tratados Internacionais dos quais o país é signatário, que possuem força de emenda constitucional. Dentre eles, a Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), que estabelece que todo cidadão tem o direito de votar e ser votado, conforme o Art. 23. do referido dispositivo.
Artigo 23. Direitos políticos
1. Todos os cidadãos devem gozar dos seguintes direitos e oportunidades:
a. de participar na direção dos assuntos públicos, diretamente ou por meio de representantes livremente eleitos;
b. de votar e ser eleitos em eleições periódicas autênticas, realizadas por sufrágio universal e igual e por voto secreto que garanta a livre expressão da vontade dos eleitores; e
c. de ter acesso, em condições gerais de igualdade, às funções públicas de seu país.
2. A lei pode regular o exercício dos direitos e oportunidades a que se refere o inciso anterior, exclusivamente por motivos de idade, nacionalidade, residência, idioma, instrução, capacidade civil ou mental, ou condenação, por juiz competente, em processo penal.
O Juiz ainda se debruça sobre o Art. 5º, § 2º, que explicita que os direitos e garantias fundamentais não possuem na Constituição um rol taxativo, mas exemplificativo, estando esses espalhados em Leis e Tratados que sigam os princípios vigentes de nossa Carta Magna.
Art. 5º
§ 2º Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federal do Brasil seja parte.
Observemos a justificativa do magistrado em sua decisão:
Explana que o Brasil é signatário da Convenção sobre Direitos de Pessoas com Deficiência e do Pacto de São José da Costa Rica sendo que em tais tratados internacionais possibilitam que qualquer cidadão tenha o direito de se candidatar, de votar e ser votado, de participar da vida política e pública. Saliente que estando plenamente vigentes no Brasil, estes Tratados revogam expressamente diversos dispositivos constitucionais, dentre os quais, o art. 14, § 3º, inciso V, da Constituição Federal, que determina como condição de elegibilidade, o cidadão estar filiado a algum partido político.Argumenta que os Tratados Internacionais que normatizam garantias de direitos individuais ingressam em nossa órbita jurídica, equiparados às emendas constitucionais e havendo conflito com as nossas regras constitucionais vigentes, prevaleceria àquela que resguarda o direito individual do cidadão. Conclui, que por tal motivo, já há norma jurídica possibilitando candidaturas avulsas no Brasil, não havendo necessidade de manifestação de nosso legislativo.(Decisão na íntegra abaixo)
O que temos que levar em consideração é que a nossa Carta Magna e o nosso Código Eleitoral não proíbem o cidadão de se investir como candidato. A nossa Constituição está em pleno acordo com os Tratados Internacionais dos quais somos signatários. A única questão é que ela coloca a condição da filiação partidária como maneira de organização do entrelace político do pais, ou seja, a nossa Constituição e o nosso Código eleitoral, sendo normas mais abrangentes, devem ser levados em consideração por serem juridicamente mais extensivos. Observem o Art. 3º do nosso Código Eleitoral(Lei 4737/65):
Art. 3º Qualquer cidadão pode pretender da investidura em cargo eletivo, respeitadas as condições constitucionais e legais de elegibilidade e incompatibilidade. (Lei 4737/65)
Caberá ao STF dirimir e resolver, como Corte Máxima do país, esse conflito, que repassa por algumas indagações, que vão um pouco além da própria lei:
Qual a função dos partidos políticos? As candidaturas avulsas engrandecerão a democracia?
Apesar das constantes críticas ao modelo político de nosso país, e compactuo, como qualquer cidadãos, dessas críticas, é inegável que os partidos possuem um objetivo. Cada partido representa uma ideia, ideologia, maneira de se pensar uma realidade, por mais que não gostemos deles e dos membros que os compõem, não podemos fugir da visão de que, quando alguém se filia a determinado partido, ele se alinha mentalmente à visão político-doutrinária daquela sigla. Alguém filiado ao PSOL, por exemplo, é um claro adepto do socialismo e de pautas mais progressivas, diferente daqueles que são filiados aos Democratas, de pautas mais conservadoras, favoráveis a uma política mais neoliberal. É claro que em ambos os exemplos cabem exceções, mas, no geral, é essa a regra.
Notem que, por meio da sigla, se conhece um pouco dos seus componentes, dando um norte para a população poder entender a linha de pensamento de seus possíveis representantes. Se as candidaturas fossem avulsas, seria possível saber qual ideia ou visão de mundo está apregoada em certo indivíduo? Claro que não! A não ser as pessoas que o conhecem com mais proximidade, que tenham contato rotineiro com o candidato. E quem perde com isso é o próprio povo, que passará a perder a referência que tinha com o candidato filiado.
Os partidos políticos servem para dar esse caminho e enfraquecê-los é abater essa referência, é simplesmente afirmar que a ideologia a ser coloca em prática vem em segundo plano, quando não é isso que ocorre mundo afor. A ideologia de um representante do povo é o alicerce de seu plano político, interferindo diretamente na vida de cada cidadão. Será que, de fato, as candidaturas avulsas ajudam no processo democrático?
A filiação partidária atrapalha a participação popular ?
Vamos ser bem honestos, quem não gosta de política não passará a gostar por não precisar mais estar em um partido. A política, em seu sentido amplo, é participação, independentemente de onde seja, com o objetivo de criar laços para se alcançar algo, ou seja, política é algo coletivo e sempre o será. Não se faz política de forma individualizada, e isso prescinde a partidos políticos, quem gosta de discutir os problemas de seu bairro, de cobrar dos deputados de seu estado melhorias, faz por gosto, e a filiação partidária não irá atrapalhá-lo. Simplesmente o cidadão escolhe uma sigla convergente com suas ideias. Ele é livre para escolher qualquer um dos 35 partidos atualmente formados, e não deixa de participar, quem deixa de participar e continuará deixando é o cidadão que não tem gosto pela participação política, o que é uma grande maioria em nosso país.
Um estudo comparado: Como são as candidaturas no mundo?
O direito, como uma ciência social dinâmica e universal, não pode fechar-se dentro de uma caixa e esconder os olhos da realidade que o cerca. Observar como se dá o processo político na maior parte do mundo é de extrema importância para termos ideia do que devemos seguir e de qual estrutura de candidaturas mais se coaduna com a nossa realidade.
As candidaturas avulsas dão certo onde existem? Vamos a alguns dados (Segundo levantamento e estudo da ACE Project: https://d335luupugsy2.cloudfront.net/cms/files/16076/1487338241candidaturas+avulsas.pdf)
A maioria dos países (95/43%) permite candidaturas avulsas nas eleições presidenciais e legislativas.
Entre 26/11% permitem apenas nas eleições presidenciais.
Nós estamos numa minoria (21/9%) dos que não permitem as candidaturas avulsas em nenhuma hipótese.
Analisando os dados e os países podemos tirar alguma conclusão?
Não! Há uma dispersão nesses dados, países de fraca democracia possuem o sistema de candidaturas avulsas como a Somália, a Índia, Congo, Iêmen, entre outros que não são exemplo de modelo democrático.
E existem países exitosos como a Suécia, com um dos maiores IDHs do mundo, que não permitem o sistema de candidaturas avulsas, assim como o Brasil.
Ou seja, por meio do estudo comparado, não é possível termos uma conclusão de que as candidaturas avulsas engrandecem a democracia.
Conforme decisão do magistrado, não há necessidade de manifestação do legislativo para tratar das candidaturas avulsas?
Partindo agora para uma questão mais jurídica, todos sabemos que o que está no texto constitucional só pode ser mudado através de emenda, com o rito e procedimento dificultosos inerente a ela, isso é claro para todos, há uma impossibilidade de se permitir a revogação de um artigo constitucional, no caso tratado o Art 14, § 3º, por meio de uma decisão judicial, é inconcebível. E, sem dúvidas, o STF analisará e colocará na balança essa situação, que, sem dúvidas, é simples de se entender. Sem emenda, não há do que se falar em revogação do texto constitucional.
Estamos claramente num momento de intensa necessidade de mudanças. Não suportamos mais as afrontas constantes do mundo político. Mas, devemos ter cuidados com as ideias superficiais que são pregadas no nosso dia a dia. A decisão desse magistrado e sua repercussão deve ser analisada com cautela, nos detalhes jurídicos que lhe cabem.
Acredito, e aqui vai uma humilde opinião, que o STF não permitirá as candidaturas avulsas para as próximas eleições. Está claro que o Art 14, § 3º, inciso V, deve ser levado em conta. E só há uma maneira de mudar isso, por meio de uma emenda constitucional, pois os Tratados são genéricos, extensivos e não tratam diretamente da filiação partidária.
Decisão do juiz na íntegra: https://s.conjur.com.br/dl/tre-go-candidatura-avulsa.pdf