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Os embriões como destinatários de direitos fundamentais

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26/12/2004 às 00:00
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4.Direito Subjetivo Fundamental

A definição de direito subjetivo é controvérsia antiga no direito privado. Dentre várias definições dignas de respeito, somos partidários da elaborada por Manoel Duarte Gomes da Silva, em seu Esboço De Uma Concepção Personalista do Direito, para quem o direito subjetivo "(...) envolve um conjunto de vínculos jurídicos (poderes no sentido de licitude, poderes de produzir efeitos jurídicos ou poderes potestativos, deveres especiais, ônus ou deveres livres...) por meio dos quais a lei assegura a efectiva aplicação daquela coisa ou bem à realização do referido fim concreto: um conjunto de vínculos jurídicos por meio dos quais a lei afecta juridicamente a coisa ou bem à consecução de um fim concreto de pessoa ou pessoas determinadas. (...) A Lei não cria, propriamente, o direito subjetivo. O que ela faz é recortar, da exigência ontológica de realização do homem, certo aspecto respeitante a determinado fim de pormenor, para lhe garantir a satisfação nesse aspecto. A matéria do direito subjetivo existe no próprio homem e é inseparável dele(...)"

Ainda que haja um núcleo central que atenda aos conceitos de direito subjetivo privado e público, para este último o conceito deve atender a outras necessidades.

Para José Carlos Vieira de Andrade, os direitos subjetivos fundamentais representam posições jurídicas subjetivas individuais, universais e fundamentais, Contudo, há a necessidade de se distinguir as garantias institucionais dos chamados direitos-garantia, já que os direitos individuais de salvaguarda da dignidade humana não são susceptíveis de ser imputados a cada uma das pessoas concretas.

As regras e princípios constitucionais que garantem a liberdade e a integridade dos indivíduos em matéria penal, e outras relacionadas ao processo penal, são direitos-garantia. A "garantia" está presente em seu caráter instrumental, para a ação do Estado, de proteção de outros direitos, esses sim, designados direitos-direitos ou direitos-liberdades.

4.1. Titularidade dos direitos fundamentais

Alguns direitos fundamentais podem possuir em sua estrutura limitações, geralmente relativas a maioridade dos cidadãos, para sua titularidade, como, v.g., o direito de sufrágio ou de contrair casamento, mas isto não quer dizer que se esteja condicionando o exercício deste direito a um certo grau de capacidade. Na verdade, o próprio direito se limita em atingir um determinado grupo de pessoas que se encontrarem em uma posição jurídica pré-estabelecida.

No que se refere à antiga dicotomia civilística capacidade de gozo e de exercício, devemos adiantar que não se aplica tão rigidamente em matéria de direitos fundamentais, por uma razão bem simples: um possível condicionamento de exercício que possa suprimir ou diminuir os direitos fundamentais constitui, por si só, uma infringência ao próprio direito, portanto uma norma ou ato inconstitucional. Contudo, por impossibilidade biológica/psicológica há certos sujeitos, como os menores e incapazes, que necessitam do auxílio de mecanismos de defesa de seus interesses para defesa ou anseio de direitos fundamentais. Tais mecanismos se concretizam através da representação legal de seus interesses. Por isso, a tutela de direitos fundamentais dos incapazes é plenamente possível e, por consequência, a dos embriões, sejam eles implantados ou pré-implantatórios.

Importante, mais uma vez, referir a distinção anteriormente feita entre os embriões implantados e pré-implantatórios. No primeiro caso, a tutela subjetiva de seus interesses será possível através da representação legal por quem obtiver o poder-parental respectivo ou, no caso de conflitos de interesses, por curador designado, mais especificamente, curador ao ventre.

Recentemente, no Brasil, tem-se discutido muito acerca da possibilidade de se conseguir, através de alvará judicial, autorização para se interromper a gravidez no caso de comprovada inviabilidade de o feto se manter vivo após o parto. De lado a problemática quanto ao conteúdo de tais pedidos, adiantamos que os Juízes têm designado, diante do conflito de interesses entre os "pais" e o nascituro, curadores à lide quando, na verdade, deveriam nomear curadores ao ventre.

No direito norte-americano, a questão tem estado mais complexa. Já existem bastantes casos em que a causa de pedir diz respeito a fatos ocorridos contra o nascituro, como responsabilização dos pais ou dos médicos no caso de anomalia resultante de uma gravidez mal resguardada ou erro médico. As Cortes americanas, ainda que sem uma unidade no tema, têm dado ganho de causa ao nascituro sob o fundamento de ser ele desde a concepção um right-holder.

A questão que se coloca é mais complexa quando se elabora, como já se elaborou, toda uma doutrina na parte de responsabilidade civil na qual se imputa aos pais e, principalmente mãe, responsabilidade pelos danos ocorridos ao nascituro durante a gestação. Já há caso nesse sentido, sendo o pioneiro Bonbrest v. Kotz, que concedeu ao feto uma ação pelas conseqüências dos danos ocorridos em fase pré-natal, desde que ele nasça vivo – mesmo que dure alguns segundos, quando, então, a responsabilidade dos pais será por homicídio. Se o feto não chegar a nascer, a legitimidade para a propositura da referida ação deixa, igualmente, de existir.

A tormenta, segundo Carl Wellman, reside no fato de que como podem tais direitos serem denominados unborn rights se estão condicionados ao nascimento com vida? Se eles não possuem esse direito caso venham não nascer, então não possuem direito algum e, por consequência, se não possuem direito algum, não há como lhes transmitir propriedade ou garantir indenização por danos ocorridos antes do nascimento. Ainda, se os direitos fossem realmente incorporados antes do nascimento, mesmo que sob condição, porque não poderiam intentar suas ações ainda dentro do útero, já que é princípio basilar do direito americano que that cause of action acrues to the individual on the occurrence of injury causing damages. Segundo o autor, essa exceção à regra generalizada do direito americano ocorre por opção legislativa pois não há nada que impeça aos legisladores formularem uma regra de direitos incondicionais ao nascituro. Para ele, a opção por tornar a aquisição de direitos condicionais dá-se em razão das diferenças existentes entre os possíveis direitos dos nascituros. Quando se trata do direito de propriedade, por exemplo, fica mais fácil imaginar a imposição da condição do nascimento com vida pois a função da transmissão, que é garantia de subsistência do futuro nascido, será efetivada, realmente, com o nascimento. Todavia, quando se trata das possíveis injúrias sofridas pelo nascituro, a condição do nascimento se esvai e perde a razão de ser, já que, para o autor americano, qualquer injúria sofrida pelo nascituro poderá ser argüida por seus pais que, ordinariamente, são quem representa seus interesses.

4.2. Antigas referências à proteção do nascituro

Embora toda a problemática envolvendo a questão dos direitos dos embriões seja moderna e relacionada, de alguma forma, com o avanço da medicina, podemos encontrar estudos, da época do direito romano, nos quais já há referência à proteção dos nascituros.

Segundo Jose Maldonado y Fernandez Del Torço, a proteção dos direitos do concebido abarcava diversos aspectos: "se protege su vida, castigándose el aborto y prohibiendo enterrar a la mujer encinta antes de que fuese extraído el feto. Se protegen los derechos de família que pueda llegar a tener con relación al padre y se assegura su satatus libertatis cuando la madre fué libre en el momento de la concepción o en algún otro durante el período de gestación, aunque después llegase a ser esclava. Pero los que muestran mejor la verdadera natureza del principio, son sus efectos en el campo hereditario(...) El requisito que exige para la capacidade de suceder la existecia en el mometo de la muerte del causante viene, pues, a entenderse que se cumple con que el sucesor esté en ese instante concebido, aunque no haya nacido todavía. Incluso es possible que en algún caso especial la condición del concebido pudiesse llegar a ser mejor que la del ya nacido."

As antigas referências demonstram que o instituto responsável pela salvaguarda dos direitos do nascituro era o da curadoria ao ventre, que, como o próprio termo diz, procurava resguardar os interesses daqueles que ainda se encontravam no ventre materno.

4.3. A representação dos embriões que se encontram fora do ventre

Partindo-se da premissa de que é possível a nua-titularidade em matéria de diretos fundamentais e que os embriões abrigados em útero materno podem ser representados, de acordo com o objeto da demanda, ora por seus representantes legais ora pela curadoria ao ventre, resta a seguinte indagação: quais seriam os legitimados para defender os interesses dos embriões de laboratório?

Também neste caso interessará o objeto da demanda. Podem existir disputas pela futura inseminação do embrião, discussões acerca do direito à implantação – no caso de contratos, ilícitos, de "mãe de aluguel" – contendas sobre o direito de destruir embriões excedentários etc...

Como já tivemos a oportunidade de mencionar, no caso de aborto por deformidade comprovada do feto, causa não justificada pelo direito brasileiro, os Tribunais têm nomeado curador à lide para a defesa dos interesses do feto. Não entendemos correta tal nomeação visto que não é a lide que se deve defender.

No caso das disputas envolvendo mãe biológica e mãe "contratante", somos da opinião de que deverá prevalecer a legitimidade da mãe biológica, mesmo tendo havido contrato de dação, já que o direito não deve ratificar transações ilícitas.

Em suma, por se tratar de parte totalmente incapaz é mister que lhe seja sempre designado um representante legal, provavelmente através de um membro do Ministério Público, para que se possa ter certeza de que seus direitos serão corretamente defendidos. O membro do Ministério Público, através de sua curadoria aos concepturos, deverá ser sempre chamado à lide, mesmo que o embrião, ainda não implantado, esteja sendo representado por sua mãe "biológica".


5. Conflito "aparente"de normas constitucionais.

Não há como resguardar, em parte, os direito à vida do embrião e sua dignidade, por isso, o método alemão da ponderação de interesses não tem lugar nessa seara. Aqui, valerá a teoria dos limites imanentes. No caso da procriação assistida deve considerar uma situação anômala aquela em que prevê o sacrifício de alguns embriões ou sua destinação às pesquisas em troca do direito, aparentemente protegido em caráter absoluto, do direito de procriar. Esse direito colocado nesse aspecto ilimitado não existe, não pode ter sido previsto pelo legislador constituinte e não é, portanto, um direito fundamental.

Assim, em se tratando do direito fundamental mais importante que há (direito à vida e dignidade da pessoa humana), não pactuamos do entendimento de que haverá situações que tais direitos deixarão de prevalecer mas poderá acontecer de haver limites imanentes em tais princípios.

Em assim sendo, haverá momentos que o direito, embora aparentemente esteja protegendo situações como as do direito de procriar, por exemplo, não tutelará determinadas hipóteses para salvaguardar direitos mais importantes, como, nesse caso, o direito à vida e dignidade humana do embrião humano.


6. Conclusão

Estudiosos preocupam-se em incentivar legisladores para a elaboração de leis que protejam os embriões humanos. Enquanto isso, continua a corrida desenfreada – e amoral – pelo conquista do podium da biotecnologia, sendo os embriões humanos os mais prejudicados.

Este trabalho teve a pretensão de demonstrar, obviamente de forma pouco aprofundada, que a vida e dignidade dos embriões humanos não são dependentes de textos normativos para se manterem protegidas. Ao revés, dispositivos constitucionais e diplomas estrangeiros, que devem ser tratados como normas materialmente constitucionais, já são impositivas e, portanto, devem ser respeitadas.

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Admitindo-se que o embrião é pessoa humana desde o momento da concepção, já o colocamos como sujeito receptor de todas as disposições constitucionais que tratam dos direitos fundamentais, dentre elas, o próprio direito à vida.

Claro que normas mais específicas não precisam ser ignoradas. Todas as questões que envolvem embriões humanos são muito complexas e, pior, serão cada vez mais comuns, dado o avanço da medicina biotecnológica.

O importante é saber que desde já podemos contar com mecanismos emergenciais, já que são poucos os que tratam especificamente das contendas envolvendo embriões humanos, de caráter geral que podem ser utilizados, enquanto legislações específicas não são elaboradas, para proteção da vida e dignidade dos embriões humanos, evitando, assim, sua manipulação como fossem eles meros objetos de estudo ou meros objetos satisfatórios dos casais que pretendem, sob qualquer custo, gerar um filho.

Não há razão para se continuar agindo de forma lacunosa. Não há razão para se continuar a autorizar medidas que ataquem direitos fundamentais desses seres inofensivos.

É hora de se aplicar as normas constitucionais a esses casos. Tais normas referem-se à proteção da pessoa humana. Nesse caso, de aplicação mais do que imediata.


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Sobre a autora
Maria Claudia Chaves

Advogada, RJ e Mestranda em Ciências Jurídicas na Universidade Clássica de Lisboa

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CHAVES, Maria Claudia. Os embriões como destinatários de direitos fundamentais. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 537, 26 dez. 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/6098. Acesso em: 25 abr. 2024.

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