Bem de família e as hipóteses de penhora e impenhorabilidade à luz da legislação e do superior tribunal de justiça

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10/10/2017 às 19:17
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O bem de família é um instituto existente no sistema jurídico brasileiro que visa proteger o imóvel que a família reside, tomando-o impenhorável, ou seja, livre de execuções por dívidas, salvo as exceções previstas na legislação.

O bem de família é um instituto existente no sistema jurídico brasileiro que visa proteger o imóvel que a família reside, tomando-o impenhorável, ou seja, livre de execuções por dívidas, salvo as exceções previstas na legislação.

É de ser ressaltada a importância do bem de família, pois dá à entidade familiar certa tranquilidade e a garantia de que o lar onde residem está blindado, seguro.

Nessa vereda, a Lei n. 8.009/90 trata da impenhorabilidade do bem de família, disciplinando também os casos em que o bem de família está sujeito a penhorabilidade.

No que concerne à impenhorabilidade, existem duas espécies de bem de família, quais sejam, o legal, previsto na Lei n. 8.009/90, e o voluntário, previsto no Código Civil.

Segundo o professor Silvio de Salvo Venosa (2008, p. 2), família são "as pessoas que vivem sob um mesmo teto, sob a autoridade de um titular". Vale dizer que a Constituição Federal prevê no artigo 226 que a família é a base da sociedade, possuindo urna proteção especial.

Nesse sentido, a Carta Magna ampliou o conceito tradicional de família, incluindo também a união estável e a comunidade formada por um dos pais e seus filhos, a chamada família monoparental.

Pois bem, ante a proteção da família pelo Estado é que surgiu o instituto do bem de família, que é a proteção do bem imóvel onde reside a família.

Maria Helena Diniz (2002, p. 192) define bem de família como sendo:

Um instituto originário dos Estados Unidos, que tem por escopo assegurar um lar a família ou meios para o seu sustento, pondo-a ao abrigo de penhoras por débitos posteriores a instituição, salvo as que provierem de tributos relativos ao prédio, ou de despesas condominiais.

Já o professor Álvaro Villaça Azevedo (2002, p. 28) ensina que:

Bem de família é o meio de garantir um asilo à família, tornando-se o imóvel onde a mesma se instala domicílio impenhorável e inalienável, enquanto forem vivos os cônjuges e até que os filhos completem sua maioridade.

Ressalta-se que a legislação não definiu o bem de família, sendo indispensável a contribuição da doutrina.

Pois bem, a impenhorabilidade do bem de família é tratada no nosso ordenamento no Código Civil e em lei infraconstitucional. Portanto, existem duas espécies em que o bem de família é impenhorável.

A primeira é o chamado bem de família legal, previsto na lei federal 8.009, de 29 de marco de 1.990, que dispõe sobre a impenhorabilidade do bem de família, sendo entendimento sólido do STJ[2] que a impenhorabilidade do bem de família é questão de ordem pública, não admitindo renúncia pelo titular.

Ainda sobre esse diploma legal, importante invocarmos a Súmula n. 205 do STJ a qual prescreve que “a Lei 8.009/90 aplica-se à penhora realizada antes de sua vigência”.

Tal espécie independe de registro, operando nos termos da lei, e o seu fim é a proteção do patrimônio próprio do casal, ou de entidade familiar de um único imóvel.

Vejamos o que dispõe a Lei n. 8009/90:

Art. 1º O imóvel residencial próprio do casal, ou da entidade familiar, é impenhorável e não responderá por qualquer tipo de dívida civil, comercial, fiscal, previdenciária ou de outra natureza, contraída pelos cônjuges ou pelos pais ou filhos que sejam seus proprietários e nele residam, salvo nas hipóteses previstas nesta lei.

Parágrafo único. A impenhorabilidade compreende o imóvel sobre o qual se assentam a construção, as plantações, as benfeitorias de qualquer natureza e todos os equipamentos, inclusive os de uso profissional, ou móveis que guarnecem a casa, desde que quitados.

Art. 2º Excluem-se da impenhorabilidade os veículos de transporte, obras de arte e adornos suntuosos.

Parágrafo único. No caso de imóvel locado, a impenhorabilidade aplica-se aos bens móveis quitados que guarneçam a residência e que sejam de propriedade do locatário, observado o disposto neste artigo.

Pelo fato de a Lei n. 8.009 ser do ano de 1990, a sociedade avançou e se transformou, tendo surgido algumas questões que não foram disciplinadas pela norma, como exemplo, o caso de devedor solteiro ou pessoa viúva.

Após muita discussão, o STJ editou a Súmula n. 364 a qual estabelece que “o conceito de impenhorabilidade de bem de família abrange também o imóvel pertencente a pessoas solteiras, separadas e viúvas.”

Com isso, é irrelevante se a moradia é constituída por uma família, de modo que, como se trata de um direito social previsto na Constituição Federal, que é o direito à moradia, o que a norma visa proteger é a garantia de habitabilidade do devedor.

Ademais, segundo dispõe os § 4º e § 5º, do art. 226, da CF, deveres e direitos referentes à sociedade conjugal são exercidos igualmente pelo homem e pela mulher, sendo a família qualquer comunidade formada por homem, mulher e prole, sendo irrelevante a existência ou não de casamento.

Outro ponto que sempre gerou debates processuais era sobre a possibilidade de penhora de único imóvel residencial do devedor que era objeto de locação, tendo o STJ pacificado essa lide no sentido de, nos termos da Súmula n. 486, decidir que “é impenhorável o único imóvel residencial do devedor que esteja locado a terceiros, desde que a renda obtida com a locação seja revertida para a subsistência ou a moradia da sua família”, de sorte que um dos argumentos utilizados pela Corte é o de que, mesmo não residindo no único imóvel que lhe pertence, o devedor utiliza o valor obtido com a locação desse bem como complemento da renda familiar, ficando, assim, atendido o objetivo da norma que é o de garantir a moradia familiar ou a subsistência da família.

Nesse norte, surge também a questão daquele devedor que possui um terreno ainda não edificado. Seguindo o espírito da lei e os parâmetros do STJ, o mais justo seria que esse bem também devesse ser declarado bem de família, desde que no futuro ele fosse objeto de construção da residência própria do devedor ou até mesmo de renda advinda de alugueres.

O STJ[3] vem analisando essa questão e entendendo que “o fato do terreno encontrar-se desocupado ou não edificado são circunstâncias que sozinhas não obstam a qualificação do imóvel como bem de família, devendo ser perquirida, caso a caso, a finalidade a este atribuída.”

Destaca-se que a lei ampara não só o imóvel como impenhorável, mas também a construção, plantações, benfeitorias, equipamentos, móveis que guarnecem a casa, bem como os móveis quitados que guarneçam a moradia do locatário, ficando caracterizado seu fim protetor da família.

O atual CPC complementou e acabou alterando essa regra, tendo os inc. II e III do art. 833 do CPC determinado que são impenhoráveis os móveis, os pertences e as utilidades domésticas que guarnecem a residência do executado, salvo os de elevado valor ou os que ultrapassem as necessidades comuns correspondentes a um médio padrão de vida, bem ainda os vestuários, bem como os pertences de uso pessoal do executado, salvo se de elevado valor.

Portanto, o que deve ser analisado é se os bens móveis em geral que guarnecem a residência são ou não de alto valor e até mesmo se tais bens podem ser considerados como supérfluos. Com a nova disposição da lei processual, corrigem-se as injustiças cometidas em muitos processos executivos nos quais os únicos bens passíveis de excussão eram os bens móveis do executado e que não podiam ser penhorados ante a proteção legal.

Ainda quanto aos móveis, importante dizer que a lei não protege os veículos, obras de arte e adornos suntuosos, os quais podem ser considerados como não essenciais.

Não se pode esquecer que a legislação prevê a impenhorabilidade do imóvel somente quando se tratar de dívida civil, comercial, fiscal, previdenciária ou de outra natureza. Logo, a lei não é totalmente protetora, não isentou o imóvel da família plenamente de responder por dívidas, prevendo em alguns casos a penhora do bem familiar.

Sobre a forma e o momento processual para se invocar a impenhorabilidade, o STJ[4] detém amplo entendimento de que “a impenhorabilidade do bem de família pode ser alegada em qualquer momento processual até a sua arrematação, ainda que por meio de simples petição nos autos”.

Vale dizer que esse marco temporal é limitado quando já houver decisão anterior acerca do tema, ocorrendo, então, a preclusão consumativa, conforme precedentes do STJ[5].

A segunda espécie é chamada de bem de família voluntário, previsto no Código Civil.

Nessa espécie, a família possui mais de urna propriedade e destina parte deste patrimônio para se instituir o bem de família, devendo não ultrapassar um terço do patrimônio líquido ao tempo da instituição.

É o que prescreve o Código Civil:

Art. 1.711. Podem os cônjuges, ou a entidade familiar, mediante escritura pública ou testamento, destinar parte de seu patrimônio para instituir bem de família, desde que não ultrapasse um terço do patrimônio líquido existente ao tempo da instituição, mantidas as regras sobre a impenhorabilidade do imóvel residencial estabelecida em lei especial.

Parágrafo único. O terceiro poderá igualmente instituir bem de família por testamento ou doação, dependendo a eficácia do ato da aceitação expressa de ambos os cônjuges beneficiados ou da entidade familiar beneficiada.

Art. 1.712. O bem de família consistirá em prédio residencial urbano ou rural, com suas pertenças e acessórios, destinando-se em ambos os casos a domicílio familiar, e poderá abranger valores mobiliários, cuja renda será aplicada na conservação do imóvel e no sustento da família.

Nesse enfoque, é de vital importância a lição do professor Caio Mario da Silva Pereira (2001, p. 286):

A expressão família é aqui tornada em sentido estrito, de sorte a considerar-se apto a promover a criação do nosso homestead aquele que esteja na chefia da sociedade conjugal (o marido e, em sua falta, a mulher), excluindo-se, portanto, a instituição em benefício de pessoas que não sejam o cônjuge e os filhos, ainda que parentes sob a dependência econômica do pretendente à instituição.

Pablo Stoize Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho (2006, p.310) define bem de família como sendo:

E o prédio destinado pelos chefes de família ao exclusivo domicílio desta, mediante especialização no Registro Imobiliário, consagrando-lhe uma impenhorabilidade limitada e uma inalienabilidade relativa.

Tal hipótese é pouco utilizada, tendo em vista que exige ato voluntário do proprietário, sem contar os gastos com o respectivo registro. O presente instituto também tem pouca repercussão social, pois uma parcela muito pequena da população brasileira possui mais de um imóvel para destinar como bem de família.

De outro norte, as possibilidades e penhora do bem de família também se encontram na Lei 8.009/90, especificamente no artigo terceiro, senão vejamos:

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Art. 3º A impenhorabilidade é oponível em qualquer processo de execução civil, fiscal, previdenciária, trabalhista ou de outra natureza, salvo se movido:

I - em razão dos créditos de trabalhadores da própria residência e das respectivas contribuições previdenciárias;           (Revogado pela Lei Complementar nº 150, de 2015)

II - pelo titular do crédito decorrente do financiamento destinado à construção ou à aquisição do imóvel, no limite dos créditos e acréscimos constituídos em função do respectivo contrato

III - pelo credor da pensão alimentícia, resguardados os direitos, sobre o bem, do seu coproprietário que, com o devedor, integre união estável ou conjugal, observadas as hipóteses em que ambos responderão pela dívida;      

IV - para cobrança de impostos, predial ou territorial, taxas e contribuições devidas em função do imóvel familiar;

V - para execução de hipoteca sobre o imóvel oferecido como garantia real pelo casal ou pela entidade familiar;

VI - por ter sido adquirido com produto de crime ou para execução de sentença penal condenatória a ressarcimento, indenização ou perdimento de bens.

VII - por obrigação decorrente de fiança concedida em contrato de locação.

Assim, se a dívida versar sobre algumas hipóteses do artigo terceiro supra, não há que se falar em impenhorabilidade.

Nesse sentido, o inciso I fora revogado Lei Complementar nº 150, de 2015, de modo que é impenhorável o bem familiar se a dívida se originar de créditos de trabalhadores da própria residência e respectivas contribuições, como é o caso dos empregados domésticos.

Já inciso II prevê a penhora para os casos decorrentes de crédito do financiamento destinado à construção ou aquisição do imóvel, evitando-se assim o enriquecimento sem causa. O STJ[6] vem entendendo que “a exceção à impenhorabilidade prevista no artigo 3º, II, da Lei n. 8.009/90 abrange o imóvel objeto do contrato de promessa de compra e venda inadimplido.”

O inciso III trata da penhora para o credor de pensão alimentícia, por possuir um caráter alimentar e ser uma questão de sobrevivência de quem necessita dos alimentos, de modo que, desde a edição da Lei nº 13.144/15, estão resguardados os direitos, sobre o bem, do seu coproprietário que, com o devedor, integre união estável ou conjugal, observadas as hipóteses em que ambos responderão pela dívida.

No inciso IV a penhora é possível quando se tratar de créditos de impostos, taxas e contribuições em função do imóvel familiar, ou seja, pode ocorrer a penhora por se tratar de obrigações geradas pela própria coisa, onde o próprio imóvel deve responder, como exemplos, podemos citar o IPTU as dívidas condominiais[7].

No que tange ao inciso V a penhora também é possível quando for o caso de execução de hipoteca sobre o imóvel oferecido corno garantia real pelo casal ou entidade familiar, onde, além de esse ato se tratar de liberalidade do devedor, mais uma vez o que se pretende evitar é o enriquecimento sem causa.

O inciso VI permite a penhora do bem de família quando o imóvel foi adquirido com produto de crime ou para execução de sentença penal condenatória a ressarcimento, indenização ou perdimento de bens. Ressaltando-se que este inciso é o mais justo entre os previstos no artigo terceiro, pois prevê a possibilidade de a vítima ser indenizada, bem como servir de mais um tipo de sanção ao ofensor pela prática de um ilícito penal, além do que se evita o enriquecimento ilícito.

Já no que concerne o inciso VII a penhora é permitida por obrigação decorrente de fiança concedida em contrato de locação. Não se pode perder de vista que este inciso era o mais polémico, pois tanto a doutrina quanto a jurisprudência divergiam acerca de uma possível inconstitucionalidade, sob a tese de que a Emenda Constitucional n. 26, de 14 de fevereiro de 2.000, que estendeu o rol dos direitos sociais, teria incluído como direito social o direito à moradia, de modo que o que se discutia era se o inciso ofendia ou não o direito social à moradia, bem como a dignidade da pessoa humana.

O STJ pacificou a controvérsia ao firmar a Súmula n. 549 que assevera ser “legítima a penhora de apontado bem de família pertencente a fiador de contrato de locação, ante o que dispõe o art. 3º, inciso VII, da Lei n. 8.009/1990.”

O Plenário do Supremo Tribunal Federal, no exame do RE 612.360- RG, Rel. Min. Ellen Gracie, DJe de 03.09.2010, reconheceu a existência da repercussão geral da questão constitucional, Tema n. 295/STF, em apreço e, no mérito, reafirmou sua jurisprudência sobre o tema, em precedente que restou assim ementado:

CONSTITUCIONALIDADE DA PENHORA DO BEM DE FAMÍLIA DO FIADOR. RATIFICAÇÃO DA JURISPRUDÊNCIA FIRMADA POR ESTA SUPREMA CORTE. EXISTÊNCIA DE REPERCUSSÃO GERAL.

Além do mais, é entendimento sólido do STJ[8] de que “é possível a penhora do bem de família de fiador de contrato de locação, mesmo quando pactuado antes da vigência da Lei n. 8.245/91, que acrescentou o inciso VII ao art. 3º da Lei n. 8.009/90.”

Não obstante às hipóteses legais de exceção à impenhorabilidade do bem familiar, importante ressaltar o entendimento sumulado do STJ, por meio da Súmula n. 449, a qual prescreve que “a vaga de garagem que possui matrícula própria no registro de imóveis não constitui bem de família para efeito de penhora.”

Em que pese esse entendimento do STJ, o fato é que essa decisão não é a mais adequada e justa, pois a garagem faz parte do imóvel. Fazendo uma analogia, é o mesmo que, se o devedor residisse numa casa térrea, ele estivesse impedido de usar sua garagem em razão da penhora! Ora, patente a violação ao princípio da igualdade e também do direito à propriedade.

A súmula deveria ter especificado mais, de modo a incluir a expressão “desde que reste comprovado que o morador não utiliza para fins de garagem de seu veículo”. Assim, poderiam ser penhorados as garagens que servem de renda dos devedores, pois é sabido que esse é um ramo imobiliário muito praticado e rentável.

Por fim, o Superior Tribunal de Justiça[9] assentou entendimento de que “afasta-se a proteção conferida pela Lei n. 8.009/90 ao bem de família, quando caracterizado abuso do direito de propriedade, violação da boa-fé objetiva e fraude à execução.”

Conclui-se, portanto, que o bem de família é um instituto existente no nosso ordenamento jurídico que visa assegurar que o imóvel da entidade familiar fique isento de responder por dívidas, havendo, atualmente, duas espécies de não penhora do bem de família, um previsto no Código Civil, nos artigos 1.711 a 1.722, e a outra na Lei 8.009/90.

Tal proteção existe em razão de a nossa Carta Maior definir a família como sendo a base da sociedade, recebendo proteção especial do Estado.

Diversamente das hipóteses de impenhorabilidade, há casos em que o bem de família pode ser penhorado, e tais permissões encontram-se no artigo terceiro da Lei 8.009/90 e teses jurisprudenciais dadas pelo STJ.

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Sobre o autor
Thiago Chianca Oliveira

Especialista em Direito Processual Civil e Direito Público (administrativo, ambiental, constitucional e tributário). Advogado, inscrito na OAB/MS. Sócio do Escritório Godoy & Chianca - Advocacia e Consultoria Jurídica, sediado em Campo Grande, MS, com atuação nos ramos do direito agrário, civil e público.

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Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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