A Lei de Alienação parental e o superior interesse da criança

cuidado necessário na aplicação do mencionado dispositivo legal

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15/10/2017 às 23:41
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4 – A desigualdade de gêneros no Judiciário.

A posição social da mulher no curso da História humana sempre foi forçadamente inferior à do homem, e em processos judiciais, a palavra da mulher sempre foi desacreditada. No Código de Manu, por exemplo, encontra-se uma regra (artigo 50) que só permitia às mulheres deporem em processos contra outras mulheres.

No Direito Hebraico (que influenciou o Direito Canônico, que por sua vez influenciou os ordenamentos das sociedades ocidentais) é latente a subordinação da mulher. O apóstolo Paulo de Tarso, por exemplo, ensinou que as mulheres deveriam ficar caladas nos templos. Nos 66 livros que compõem a Bíblia, percebemos coisas extremamente sexistas, tais como:

“ Se a mulher for estuprada na cidade e não gritar o suficiente, deve ser apedrejada até morrer “ (Dt 22:23-24)

“Se o estuprador for apanhado, ele deverá pagar uma quantia ao pai e casar com a estuprada “ (Dt 22:28-29).

O Termo ‘histeria’, hoje considerado um termo médico (aplicado a qualquer indivíduo que apresente os sintomas), tem como origem uma palavra grega que significa ‘útero’, então a histeria era atribuída às mulheres, ditas como histéricas. A história do feminino no mundo sempre colocou a mulher como ser indigno de credibilidade. Quando reclamam contra qualquer coisa, são chamadas de ‘histéricas, exageradas, descontroladas’ e tal discriminação se acentua quando a reclamação é oposta ao comportamento de algum homem.

Inegável a influência de tais preceitos religiosos nas legislações, tanto que o Código Penal Brasileiro tinha o seguinte dispositivo (alterado apenas em 2005, pela Lei 11.160):

“Artigo 107 – Extingue-se a punibilidade:

VII – Pelo casamento do agente com a vítima, nos crimes contra os costumes, definidos nos capítulos I, II e III do Título VI da Parte Especial deste Código”

Tem-se, portanto, que até 2005 era possível casar-se com a vítima para evitar ser punido pelo crime de estupro. Mas ainda que tal dispositivo tenha sido revogado, o Brasil ocupa o vergonhoso 5º lugar no ranking de casamentos infantis[19], e, apesar das mudanças ocorridas na lei em 2009, tribunais brasileiros continuam ignorando a presunção da violência para deixar de punir estupradores de menores[20]. Nossos tribunais continuam aceitando o consentimento da família (como se família pudesse consentir com o cometimento de um crime) para afastar condenação de estupro de vulnerável[21], e o nosso Congresso Nacional quer diminuir a idade de consentimento para 12 anos (Projeto de Lei do Senado n. 236/12).

No livro ‘Debate Interdisciplinar sobre os Direitos Humanos das Mulheres’, organizado por Sidney Francisco Reis dos Santos e Carmem Miranda de Lacerda, defendem os autores que as mulheres enfrentam inúmeras dificuldades para obter guarda e proteção judicial aos seus direitos e aos dos filhos; e de como mulheres tem dificuldade em obter proteção contra parceiros e ex-parceiros violentos por conta da resistência de juízes em aplicar a Lei Maria da Penha e de como as mulheres enfrentam enormes dificuldades nos tribunais:

“O SJC [Sistema de Justiça Criminal] vai expressar e reproduzir a estrutura e o simbolismo de gênero, expressando e contribuindo a reproduzir o patriarcado – assim como o capitalismo. Dizer que é um sistema integrativo do controle social informal significa então que ele atua residualmente no âmbito deste, mas neste funcionamento residual reforça o controle informal masculino e feminino, e os respectivos espaços, papéis e estereótipos a quem devem se manter confinados” (pág. 233)

“...Regra geral, o conjunto probatório nos processos de estupro é extremamente frágil, limitando-se à prova pericial e testemunhal e esgotando-se, muitas vezes, no depoimento da vítima. Isto é facilmente compreensível pelas circunstâncias em que ocorrem. São crimes geralmente praticados em lugares ermos ou na intimidade dos lares, distantes do público e de testemunhas. Esta é a razão, justifica-se, pela qual, nos crimes sexuais, a palavra da vítima e o laudo de exame de conjunção carnal assumem especial relevância, o que, aliás, parece unanimidade em matéria judicial, doutrinária e jurisprudencial.

Mas se exige, contudo, que sua palavra seja corroborada pelos demais elementos probatórios constantes nos autos, conforme o ilustram fragmentos do discurso decisório pesquisado. O que se pode perceber, pelos discursos analisados, é que esses outros elementos probatórios nada mais são do que a vida pregressa da própria vítima. Ora, se o conjunto probatório se reduz, muitas vezes, à palavra da vítima, então está a exigir que sua palavra seja corroborada [...] por sua vida pregressa, pela sua moral sexual ilibada, por seu recato e pudor [...] ao tempo que a vítima é julgada pela sua reputação sexual, é o resto deste julgamento que determina a importância de suas afirmações “ (pág. 235-236)

Se à mulher impõe-se essa dificuldade na defesa em juízo, melhor sorte não socorre às crianças. Apesar de o Estatuto da Criança e Adolescente (Lei 8069/90) ter rompido com a doutrina da situação irregular (Código de Menores, Lei 6.607/79) quando, seguindo o artigo 227 da CF/88, acolheu a doutrina da proteção integral, reconhecendo a criança não como propriedade dos adultos, mas sim como sujeitos de direitos, ainda ecoa em nossa sociedade o resquício de uma época em que as crianças eram objetos de direito e não sujeitos. E por conta deste resquício ideológico-social é que crianças também sofrem no Judiciário:

“[...] e não é diferente em relação às vítimas crianças, cujas palavra goza da mesma falta de credibilidade, embora por outro motivo: não são escutadas, não tem voz, porque a tendência é não se acreditar no que dizem ou e desqualificar a sua versão dos fatos como fantasias infantis.

Ocorre que, pois, é que no campo da moral sexual o sistema penal promove, talvez mais do que qualquer outro, uma inversão de papeis e do ônus da prova. A vítima que acessa o sistema requerendo o julgamento de uma conduta definida como crime – a ação, em regra geral, é de iniciativa privada – acaba por ver-se ela própria julgada (pela visão masculina da lei, pela polícia e da justiça), incumbindo-lhe provar que é uma vítima real e não simulada” (pág. 236).

Recentemente uma menina de 10 anos filmou o próprio estupro para que se desse crédito à sua palavra[22].


5 – Da Lei de Alienação parental; do perigo das falsas acusações de alienação serem usadas para encobrir condutas ilícitas:

Justifica-se o estudo da Alienação Parental pelo Direito pelo fato de que aqui no Brasil, referida síndrome se materializou no Projeto de Lei 4053/2008[23], de autoria do deputado Regis de Oliveira; na propositura o autor assim se justifica:

Cabe sublinhar que a presente justificação é elaborada com base em artigo de Rosana Barbosa Ciprião Simão, publicado no livro “Síndrome da Alienação Parental e a Tirania do Guardião – Aspectos Psicológicos, Sociais e Jurídicos” (Editora Equilíbrio, 2007), em informações do site da associação “SOS – Papai e Mamãe” e no artigo “Síndrome de Alienação Parental”, de François Podevyn, traduzido pela “Associação de Pais e Mães Separados’ – APASE, com a colaboração da associação “Pais para Sempre”. Também colaboraram com sugestões individuais membros das associações "Pais para Sempre", "Pai Legal", "Pais por Justiça" e da sociedade civil.

[...] Também não há, atualmente, definição ou previsão legal do que seja alienação parental ou síndrome da alienação parental[...]”

Em outras palavras, o autor do projeto presume que a alienação parental é de fato uma síndrome existente, quando inexiste qualquer base científica a esse respeito. Além disso, se baseou em dois artigos de dois únicos autores e nas palavras de associações civis e com a colaboração de seis ONGs, das quais quatro se dedicam exclusivamente aos interesses de pais (homens). Não houve amplo debate com a sociedade civil, não houve apresentação de dados estatísticos que demonstrassem que nas disputas de guarda existissem reiterados comportamentos por parte dos guardiões que justificassem a edição de uma lei a respeito. Apenas a voz dos homens, às quais já se dão crédito por conta da estrutura social que vivemos, foram ouvidas:

“[...] retomando a exposição de motivos que acompanhou o projeto de lei nacional, encontra-se a afirmação de que este foi elaborado a partir de livro sobre a síndrome de alienação parental editado por uma associação brasileira de pais separados, bem como de informações e textos traduzidos, disponíveis no site desta e de outras associações, e, ainda, de sugestões de membros participantes das mesmas. Não se encontra, entretanto, qualquer menção aos diversos questionamentos e polêmicas presentes na literatura internacional sobre o tema em apreço. Concebe-se que, no contexto nacional, a ausência dessas discussões sobre a teoria proposta por Gardner veio prejudicar o surgimento de possíveis reflexões e debates sociais, contribuindo para que o assunto fosse difundido como verdade inconteste[...]”[24].

Assim, sem maiores discussões, ouvindo-se apenas uma das partes interessadas (pais), o projeto acabou aprovado, transformando-se na Lei 12.318/2010[25] .

Guarda relevo o fato de que a alienação parental, tal como consta na lei, define que se o guardião se mudar para local distante sem justificativa, fica configurada a alienação (artigo 2º, parágrafo único, inciso VII). Ora, pois o argumento principal para quem defende a alienação é que a criança teria direito ao convívio com o genitor (que não o guardião). Desta forma, o genitor que não possui a guarda também deveria ser proibido de mudar de residência (para uma distante). Como a lei não prevê isso, somente o cônjuge que detém a guarda fica proibido de mudar-se ou tem sua mudança de domicílio condicionada à obrigação de apresentar justificativa.

Se a lei de fato tencionasse preservar os interesses dos infantes, como falsamente afirma no artigo 3º, resguardando o direito dela (criança) ao convívio com o pai, então também o genitor que não detém a guarda teria necessariamente a obrigação de não se distanciar, mas não é isso o que acontece; o genitor que não detém a guarda tem o direito de não exercer o direito de visitação, sem que seja obrigado a exercê-la. Fica evidente que a lei busca proteger não os interesses das crianças, mas sim do adulto que não detém guarda.

Outro aspecto pernicioso da lei determina que o psicólogo ou psiquiatra que fizer os laudos para constatar a alienação parental terá de analisar ‘documentos dos autos’ (§ 1º do artigo 5º), quando o Código de Ética Profissional do Psicólogo (2005) e a Resolução nº 007/2003 determinam de que “[...] os psicólogos, ao produzirem documentos escritos, devem se basear exclusivamente (grifo nosso) nos instrumentais técnicos (entrevistas, testes, observações, dinâmicas de grupo, escuta, intervenções verbais) que se configuram como métodos e técnicas psicológicas para a coleta de dados[...]”. Ou seja: a inovação legislativa se imiscuiu em seara que não lhe pertence ao definir como o profissional fará seu trabalho e fazendo determinação divorciada do regramento desta profissão.

Infelizmente, oporem, o dispositivo mais preocupante desta lei é exatamente aquele que auxiliaria um genitor abusador de defender-se de acusações de abuso sexual, a saber:

“Art. 2º  Considera-se ato de alienação parental a interferência na formação psicológica da criança ou do adolescente promovida ou induzida por um dos genitores, pelos avós ou pelos que tenham a criança ou adolescente sob a sua autoridade, guarda ou vigilância para que repudie genitor ou que cause prejuízo ao estabelecimento ou à manutenção de vínculos com este.

Parágrafo único.  São formas exemplificativas de alienação parental, além dos atos assim declarados pelo juiz ou constatados por perícia, praticados diretamente ou com auxílio de terceiros: 

[...]

VI - apresentar falsa denúncia contra genitor, contra familiares deste ou contra avós, para obstar ou dificultar a convivência deles com a criança ou adolescente”

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Falemos então sobre a falsa denúncia: os crimes de abuso sexual no Brasil são subnotificados e o são por conta de nosso Sistema de Justiça Criminal onde as pessoas que denunciam os abusos geralmente são submetidas a julgamentos de toda sorte ou desacreditadas, além do julgamento social, pois, infelizmente em nosso país, um em cada três indivíduos acredita que a culpa do estupro é da vítima[26].

Um interessante artigo jornalístico da BBC[27] mostra as dificuldades que a vítima enfrenta para denunciar o crime:

"Não é incomum que elas sejam submetidas a uma desconfiança da sua palavra desde o início. Existe até um medo da vítima da estigmatização, do julgamento moral, de não ser acreditada quando procura as instituições. Isso precisa ser reconhecido e combatido", disse a promotora.

"Você tem certeza que vai fazer isso (denunciar)? Essas marcas aí? Estão tão fraquinhas... até você chegar no IML (para fazer exame de corpo de delito), já vão ter desaparecido. Se você denunciar, vai acabar com a vida dele. Ele vai perder o emprego e não vai adiantar nada, porque vai ficar alguns dias preso, depois vai pagar fiança e vai sair ainda mais bravo com você", dizia o delegado a Maria Fernanda.

"Os agentes públicos - da polícia e até do Judiciário - são membros de uma sociedade machista. E reproduzem esses estereótipos às vezes no atendimento dessas mulheres. Falta capacitação", afirmou a promotora.

"O próprio delegado me culpou. Quando eu fui à delegacia, eu não me senti à vontade em nenhum momento. Acho que é por isso que muitas mulheres não fazem denúncias. Tentaram me incriminar, como se eu tivesse culpa por ser estuprada", disse a jovem em entrevista ao Fantástico.

"As investigações podem reproduzir estereótipos de gênero. Nesse caso, existe um vídeo e, mais importante, existe a palavra dela. Por que essas mulheres continuam sendo exaustivamente questionadas, cobradas nos mínimos detalhes? Elas têm suas palavras confrontadas o tempo inteiro, como se desde o início essa palavra não fosse digna de crédito", disse Chakian.

A dificuldade em perseguir a punição acaba desestimulando as denúncias. Em casos de vítimas maiores de idade, a ação é publica condicionada ao interesse da vítima em processar; em casos envolvendo menores, a ação é incondicionada, e isto se dá em razão do fato das crianças e adolescentes gozarem da proteção integral.

Em quaisquer dos casos, uma vez denunciado o crime à polícia, cabe à esta promover a investigação e colher provas suficientes para então submetê-las ao Ministério Público, pois este representa o Estado na busca do jus puniendi, e é a ele que cabe o ônus da prova.

Não obstante ser obrigação do Estado provar a autoria e materialidade do crime, pela Lei de Alienação Parental, eventual falha do Estado em coletar provas necessárias a condenação, acaba colocando sob os ombros do genitor guardião a responsabilidade por provar as acusações. Então veja-se que uma mãe, que crendo nas denúncias de seus filhos, acabe cumprindo sua obrigação legal (ao cuidado e à proteção) e denunciando a prática, corre o risco de, em caso de ineficiência do Estado em buscar as provas da denúncia, sendo injustamente acusada de incidir no inciso VI do parágrafo 2º da Lei 12.318/2010: pode ela ser acusada de alienação parental apenas por defender seu filho.

E o cenário todo pode ainda ficar pior, pois está em discussão o projeto 4.488/2016[28] que quer tornar crime eventual denuncia caso a mãe não o consiga provar:

Art. 3.º – [...]

§ 1.º - Constitui crime contra a criança e o adolescente, quem, por ação ou omissão, cometa atos com o intuito de proibir, dificultar ou modificar a convivência com ascendente, descendente ou colaterais, bem como àqueles que a vítima mantenha vínculos de parentalidade de qualquer natureza.

Pena – detenção de 03 (três) meses a 03 (três) anos § 2.º O crime é agravado em 1/3 da pena:

I – se praticado por motivo torpe, por manejo irregular da Lei 11.340/2006, por falsa denúncia de qualquer ordem, inclusive de abuso sexual aos filhos;

As consequências mais perversas deste projeto, se aprovado, serão que: a) eventual falha do Estado em reunir as provas do crime será imputada à mãe, b) que será criminalizada por tentar proteger o filho, c) em caso de condenação da mãe por tal crime, a guarda será invertida em favor do pai, que pode ser um abusador.

Ainda que cause espanto, isto tem ocorrido amiúde, especialmente nos EUA, onde essa teoria SAP tomou maior crédito. Há um vídeo, disponibilizado pela “Safe Kids Internacional”, onde um rapaz relata como foi retirado da mãe e entregue ao seu pai abusador[29] [30]. Nos tribunais, sob o manto da falsa consideração do melhor interesse das crianças, os especialistas tem priorizado a manutenção das relações entre pais abusadores e seus filhos com o objetivo de assegurar os ‘direitos dos abusadores’[31]. No Brasil, o caso mais notório de inversão de guarda em favor de pai abusador foi o caso Joanna Cardoso Marcenal Marins[32]; o tribunal concedeu a inversão da guarda para o pai André Rodrigues Marins que, segundo o delegado Luiz Henrique Marques Pereira, titular da Delegacia da Criança e Adolescente, ‘sentia prazer em torturar a criança’[33]. Joanna, infelizmente, acabou falecendo em virtude dos maus-tratos e tortura.

Então temos que o uso da SAP para proteger abusadores é um perigo real e não fictício. Necessário pois que os operadores de direito e futuros operadores sejam devidamente instruídos dos perigos de sua aplicação, sob pena de colocar pessoas, em especial crianças, que segundo a Constituição (artigo 227) e a lei ordinária (caput do artigo 4 do ECA) tem de ter seus direitos priorizados de forma absoluta, em sério risco de vida.

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