Aplicação dos deveres de cooperação do Código Civil

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16/10/2017 às 07:26
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O presente estudo tem como finalidade analisar a aplicação dos deveres de cooperação na fase externa do contrato, ou seja, na fase das tratativas, conhecida como fase pré-contratual.

RESUMO: O presente estudo tem como finalidade analisar a aplicação dos deveres de cooperação na fase externa do contrato, ou seja, na fase das tratativas, conhecida como fase pré-contratual, ocasião na qual a margem de interpretação dos direitos e deveres de cada uma das partes são consideravelmente amplos, principalmente por não estarem expressamente previstas em lei e nem pactuado pelas partes, mas ainda exigindo de fato um dever jurídico em relação às partes envolvidas, capaz de gerar responsabilidade. Assim, as partes deverão agir em cooperação com sua contraparte, cujo objetivo é não causar prejuízo a outra parte da relação. Desta forma, analisaremos, por meio deste estudo, o surgimento dos deveres de cooperação, bem como, a classificação de cada um deles, traçando um paralelo com o Código Civil, sob o aspecto da boa-fé objetiva e também sob a ótica Constitucional, através do princípio da Dignidade da Pessoa Humana, da Solidariedade e da Justiça Social, além de sua consequência em caso de inobservância e, por fim, será demonstrada a crítica levantada em relação ao tema.


INTRODUÇÃO

É sabido que o contrato é o acordo de duas ou mais vontades na conformidade da ordem jurídica, destinado a estabelecer uma regulamentação de interesse entre as partes, com o escopo de adquirir, modificar ou extinguir relações jurídicas de natureza patrimonial[1].

Assim, com força de lei, o contrato delimita os direitos e deveres das partes, de modo que em sendo descumprido, estaremos diante de responsabilidade civil, a ensejar reparação ao prejudicado, por parte daquele que descumpriu sua obrigação.

Ocorre que determinados comportamentos e condutas são esperados das partes contraentes antes mesmo da efetivação da avença, enquanto estão em tratativas e negociações preliminares, de forma que atualmente o direito caminhou no sentido de exigir das partes obrigações acessórias, vinculadas às regras de condutas éticas, não estabelecidas no instrumento.

Estes deveres acessórios, popularmente conhecido como deveres de cooperação e/ou colaboração, devem ser observados pelos contraentes, não só na fase de cumprimento do contrato, mas também na fase pré-contratual, ou seja, na fase que antecede a formação do contrato, fase das negociações preliminares.

Desta forma, o presente trabalho busca estudar as obrigações e, principalmente, responsabilidades não descritas no contrato, não pactuadas, mas que hoje se aceitam como implícitas, de maneira que devem ser observadas e cumpridas previamente à formação da avença, exigindo-se uma conduta leal e honesta das partes.

O objetivo principal deste trabalho é demonstrar que os deveres de cooperação são verdadeiras obrigações jurídicas, capazes de gerar responsabilidade civil, caso não sejam aplicados pelas partes envolvidas na relação.

Estes deveres – lealdade, informação, sigilo e proteção – devem estar presentes em toda contratação, principalmente antes, sendo sua inobservância fator isolado e suficiente para viciar um negócio jurídico e ocasionar responsabilidade civil.

Sendo assim, a fim de ressaltar a importância da aplicação destes deveres, iniciaremos a análise do contexto histórico, passando pelo conceito dos deveres, discorrendo pontualmente sobre cada um deles, traçando um paralelo entre o Código Civil e a Constituição Federal e, por fim, será analisada a responsabilidade na fase pré-contratual e sua crítica.


1 CONTEXTUALIZAÇÃO HISTÓRICA

Para se chegar ao estudo dos chamados deveres de cooperação se faz necessário contextualizar o momento social, uma vez que, assim como a sociedade, o Direito também evolui, sendo imprescindível a compreensão desta fase de transformação.

Partiremos a partir do período da pós-modernidade, pois este pode ser considerado como um pensamento filosófico que se contrapõe à chamada modernidade, sendo a tecnologia o maior marco revolucionário deste tempo. Entre as características marcantes provocadas e vividas pelo homem nesta era pós-moderna tem-se a globalização, unificadora das fronteiras do planeta, a tecnologia na potência máxima, um Estado poluidor e devedor, liberdade plena, vazio moral e ético, culto à estética, ao exibicionismo, e a transformação da busca da felicidade em uma verdadeira imposição ou obsessão.

A sociedade pós-moderna é verdadeiramente uma sociedade de massa, onde a própria segurança jurídica passa a ser uma preocupação eminente, já que todos passam a viver vazio e incertezas. É como se o ser humano perdesse o controle da sua própria vida, afastando-se cada vez mais da promoção do bem comum.

O grande sociólogo alemão Ulrich Beck[2] afirma que em verdade somos testemunhas oculares de uma ruptura com a modernidade, a qual se destaca dos contornos da sociedade industrial clássica, assumindo nova forma, agora chamada sociedade de risco. Interessante ainda ressaltar que o pensador nos coloca tanto como sujeitos, como objeto desta mudança.

Ulrich Beck vai além, e nos faz concluir que vivemos no anonimato, onde a sociedade se transforma em um grande laboratório em que não é possível saber quem é o responsável pelas experiências que vêm sendo realizadas, mas que atingem a todos:

“Políticos dizem que não estão no comando, que eles no máximo regulam a estrutura para o mercado. Especialistas científicos dizem que meramente criam oportunidades tecnológicas: eles não decidem como elas serão implementadas. Gente de negócios diz que está simplesmente respondendo a uma demanda dos consumidores. A sociedade tornou-se um laboratório sem nenhum responsável pelos resultados do experimento. ”[3]

O jurista e filósofo brasileiro Alceu Amoroso Lima[4], já na década de 60, identificava uma crise que estava por vir, onde há perda da fé no próprio direito decorrente do individualismo, que culminaria em algo que chamou de desumanização do direito, onde a racionalidade excessiva, o positivismo impessoal passaria a ser aplicado mecanicamente, esvaziando o direito como ciência autônoma, e submetendo-o a outros interesses, principalmente à economia.

É fato que estamos hoje inseridos em uma sociedade de massa, onde a lesão a direitos se propaga na mesma velocidade da informação.

Parte destas características sociais foram resultado da própria Revolução Francesa, que ao assumir o poder, trouxe a ideia de liberdade ampla, de propriedade privada intangível, de patrimonialismo, com mínima intervenção do Estado. Fez isso por meio da lei, já que quem as editava era justamente a classe dominante burguesa, de forma que o magistrado possuía pouco campo de atuação, de interpretação.[5] Com isso, no Direito Civil, a proteção do indivíduo estava, a bem da verdade, projetada sobre seus interesses econômicos e seu patrimônio.

O Código Civil brasileiro de 1916, assim como outras codificações civis alienígenas pós Revolução Francesa foi editado em meios a esta influência, coincidindo com os últimos reflexos de um momento histórico marcado pelo individualismo, daí seu caráter mais patrimonialista, mais formal.

Ocorre que, após as duas grandes guerras, o mundo ocidental passou a ingressar em uma nova era, onde o patrimonialismo passou a dar espaço para anseios sociais, para o reconhecimento da dignidade humana.

Não foi por outra razão que Miguel Reale, idealizador de maior destaque do Código Civil de 2002, buscou acomodá-lo sobre novos pilares, agora sociais, passando a dar ênfase à dignidade da pessoa humana e a prestigiar novos valores. Não é à toa que se diz ser um código marcado pela eticidade, socialidade e operabilidade.

Um exemplo claro e marcante do código vigente foi a presença da boa-fé objetiva[6]. A boa-fé passou a nortear o comportamento das pessoas no trato da vida civil, exigindo delas normas de conduta ligadas à ética, honestidade, lealdade, situação impensada na codificação anterior, de estrutura formal rígida, com pouco espaço para interpretação.

Veja-se que construir valores éticos como orientadores da conduta humana é um grande desafio, já que a cultura patrimonialista ainda está entranhado nas gerações que dela experimentaram (e que educam a geração seguinte). Isso fica claro até quando se analisa decisões judiciais proferidas por magistrados de longa carreira, justamente porque esses juízes estudaram por muitos anos a legislação anterior, de característica liberalista, individualista, não sendo tarefa difícil notar a forte ideologia patrimonialista em seus convencimentos, resquício de seu tempo.

Hoje, falar em colaboração entre as partes adversas em um cenário capitalista de forte e intensa concorrência, não deixa de soar como uma contradição, mas é esse o maior desafio destes tempos, de maneira que se torna, extremamente, necessária à aplicação dos deves de cooperação.


2 DEVERES DE CONSIDERAÇÃO

Os deveres de cooperação têm origem na doutrina alemã[7], sendo mais tarde objeto de estudo pelo direito espanhol, francês, argentino e, finalmente, pelo direito brasileiro, tendo o renomado professor Rogério Ferraz Donnini[8], estabelecido a classificação destes deveres com tamanha clareza:

É importante salientar que os deveres acessórios têm por finalidade evitar que uma das partes, utilizando-se de meios inadequados, impróprios, inconvenientes, contrários a uma relação obrigacional justa, equânime, equilibrada, cumpra de forma inexata, inconveniente, a prestação acertada, sem, contudo, violar os termos contratuais ou mesmo disposição legal específica, que regule uma dada situação, mas causando, é bem de ver, prejuízos à outra parte.

Os deveres acessórios são, na realidade, impostos numa relação obrigacional com o fim de evitar que situações dessa natureza fiquem desamparadas pela simples ausência de um dispositivo legal específico ou de uma cláusula no contrato que preveja expressamente um certo comportamento. Por essa razão, o descumprimento desse dever, que é imanente da relação obrigacional, gera, caso haja prejuízo à outra parte, a obrigação de indenizar, com fundamento na violação da cláusula geral de boa-fé, que impõe às partes deveres de lealdade, informação e proteção (deveres acessórios).

Ou seja, os deveres de cooperação exigem uma conduta de confiança entre as partes contratantes, antes mesmo de formalizar ou concretizar uma avença, sendo uma espécie de colaboração que irá transcender os limites objetivos ou temporais do contrato

A exigência de observância destes deveres e a necessidade de cooperar com o outro, passa a ser mais que obrigação moralmente desejável, concretizando verdadeira obrigação jurídica, que se não observada pode gerar responsabilidade civil

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O desatendimento de um comportamento ético é capaz de gerar dano, como, por exemplo, informação insuficiente sobre o uso de um produto que venha a se danificar, havendo, por parte daquele que rompeu com tal dever, a responsabilidade por eventuais prejuízos.[9]

Ainda que a finalidade principal de uma obrigação seja satisfazer interesses do credor, é necessário que isso ocorra hoje dentro dos limites do ordenamento jurídico e dos valores por ele eleitos, especialmente dentro do conceito de dignidade da pessoa humana (CF, art. 1º, III). É necessário que o próprio credor assuma uma posição de cooperação e colaboração para o adimplemento.[10]

Desta forma, é possível notar que os deveres de cooperação devem estar presentes em toda contratação, inclusive antes, sendo sua inobservância fator isolado e suficiente para viciar um negócio jurídico, passando-se a partir de agora a discorrer sobre cada um destes deveres.

2.1 DEVER DE LEALDADE

O dever de lealdade obriga as partes a absterem-se de comportamentos que possam falsear o objetivo do negócio ou desequilibrar o jogo das prestações por elas consignadas, pressupondo que as partes atuem de forma honesta, retilínea, prestigiando a confiança que a outra parte deposita no negócio, sendo uma vertente da própria concepção de boa-fé objetiva (mais adiante analisada).

 2.2 DEVER DE INFORMAÇÃO

A palavra informação significa ato ou efeito de informar-se; dados acerca de algo ou alguém; comunicação ou notícia trazida ao conhecimento de alguém ou do público; instrução, direção; conhecimento amplo e bem fundamentado.[11]

Este dever está relacionado a uma comunicação clara e, principalmente, honesta entre os sujeitos, ou seja, a informação será a comunicação de determinados atos ou fatos e o dever de informação será justamente o dever jurídico de proceder a esta comunicação.

Durante as negociações preliminares, por exemplo, poderá surgir a necessidade de uma das partes esclarecer dúvidas sobre os mais variados aspectos da relação contratual que se pretende firmar, de modo que a contraparte está, pelo dever de informação, obrigada a esclarecê-las.

Além disso, o dever de informação possui viés positivo e negativo. O primeiro seria com relação às informações prestadas efetivamente, que não poderiam ser dúbias, incompletas, obscuras, imprecisas ou contraditórias. Já com relação ao viés negativo, este estaria relacionado à omissão de informações essenciais ao negócio.

Desta forma, o dever de informação está ligado aos aspectos de difícil constatação, onde o detentor desta tem o dever de noticiar ao outro, a fim de que este tenha conhecimento sobre tudo aquilo envolvido na relação.

2.3 DEVER DE SIGILO

O dever se sigilo remete a ideia de não prejudicar o outro com a divulgação de informação ou dados, já que durante a fase preliminar, pode se tornar imprescindível que uma parte preste à outra informações confidenciais, fazendo com que a outra parte se abstenha de transmitir tais informações, fato que poderia ocasionar prejuízos de toda ordem à contraparte, sendo o dever de sigilo, um dever de consideração a ser observado como decorrente da boa-fé objetiva, justamente o estudo que aqui se propõe.


3. DEVERES DE CONSIDERAÇÃO NO CÓDIGO CIVIL – BOA-FÉ OBJETIVA

Os deveres de lealdade, sigilo, informação e proteção, não vêm positivados no texto do Código Civil vigente. A despeito de alguns dispositivos disciplinarem situações específicas, como o dever de informação nos contratos de transporte[12], o fato é que não se confundem com os deveres de consideração propostos neste trabalho como regra de conduta.

Embora aqueles deveres não estejam positivados no texto do código, o fundamento central de onde decorrem, reside na boa-fé objetiva, que impõe um comportamento honesto, leal, colaborativo.

É sabido que a boa-fé surge como algo exterior ao sujeito, que lhe impõe, sendo responsável em exigir um comportamento ético entre as partes e, principalmente, evitar lesões à estas, de modo que, a liberdade de contratar deve ser exercida em consonância com os fins sociais do contrato, resultando nos valores da boa-fé[13].

Segundo Maria Helena Diniz[14], a boa-fé não só está ligada a interpretação do contrato, mas também sobre o interesse social de segurança das relações jurídicas, uma vez que as partes deverão agir com lealdade, honestidade, honradez, probidade (integridade e caráter), denodo e confiança recíprocas, procedente de boa-fé, esclarecendo os fatos e conteúdo das cláusulas, procurando o equilíbrio nas prestações, respeitando o outro contratante, não atribuindo a confiança depositada, procurando cooperar, evitando o enriquecimento indevido, não divulgando informações sigilosas e etc.

Assim, é a partir da boa-fé objetiva, hoje concretizada no Código Civil brasileiro no art. 422, que os deveres de consideração passam a ser obrigação jurídica imposta a todos no tráfico da vida civil, seja quando estão em tratativas preliminares de negociação, quando deverão se portar da forma mais honesta e colaborativa possível, seja porque estão formalmente vinculadas por um contrato, seja ainda quando já adimpliram obrigações reciprocamente assumidas, momento que subsistirão obrigações laterais de parte a parte. Nos três casos, a inobservância dos deveres de consideração acarretará responsabilidade civil.

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Sobre o autor
ANA LUÍSA MARCOS FRANCISCO

Acadêmica de Direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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