Aplicação dos deveres de cooperação do Código Civil

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16/10/2017 às 07:26
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4. DEVERES DE CONSIDERAÇÃO NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL

A despeito do fundamento central dos deveres de consideração residir na boa-fé objetiva, concretizada hoje como cláusula geral no Código Civil brasileiro, é possível também extrair fundamento constitucional para a origem destes deveres, o que se dá por meio dos Princípios da Solidariedade, da Dignidade da Pessoa Humana e da Justiça Social, todos positivados na Lei Maior.

Prevista em nosso ordenamento jurídico no Art. 3º, inciso I da Constituição Federal[15], a solidariedade se apresenta como um dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, como verdadeiro princípio constitucional.

A palavra solidariedade presume a ideia de um vínculo, de relação estreita e forte, entre vários sujeitos ou partes e, além disso, em se tratando de sujeitos humanos, a ideia de responsabilidade um para com o outro, no sentido de erguer ou amparar o debilitado, de assistência moral, de ajuda ao próximo, de verdadeira cooperação entre pessoas, daí seu vínculo e influência sobre os deveres de consideração ora estudados nesta tese.

Na filosofia, a solidariedade partiu de Aristóteles, com a ideia de justiça, amizade e caridade. Aristóteles na Antiguidade Clássica posiciona a amizade como algo que precederia a própria Justiça, já que as pessoas amigas, uma vez amistosas reciprocamente, não precisariam da justiça. A amizade para Aristóteles se dá por questões emocionais e não racionais, sendo uma reciprocidade de interesses, reciprocidade na companhia, no querer bem da outra pessoa.

Assim, se é possível colaborar, o sujeito passa a ter este dever. A solidariedade passa a estar presente nas relações particulares muito além de um dever moral. Desta forma, muito embora o fundamento central dos deveres de consideração seja a boa-fé objetiva, é certo que os deveres colaterais de lealdade, honestidade, confiança, proteção, etc, estão absolutamente influenciados pela ideia da solidariedade.

Dentro de nossa jurisprudência, o princípio da solidariedade por si só ainda aparece de forma tímida para fins de responsabilidade civil, estando mais associado aos processos envolvendo direito de família. No entanto, veja-se julgado do Tribunal de Justiça Paulista, que a par de reconhecer a solidariedade como um dever a ser observado, condenou vizinho que se recusava a pagar contribuição pecuniária para associação de bairro que cuidava dos interesses de todos os moradores das ruas ali adjacentes, sem que tivessem estabelecido vínculo contratual com cada um deles, ou algum tipo de permissão ou autorização, veja-se:

“Cobrança. Prestação de serviços por parte de associação de moradores de loteamento. Local com portarias, veículos com radiotransmissor, conservação de vias públicas e jardinagem. Fornecimento de água deve ser excluído da verba pleiteada, uma vez que o imóvel do réu não possui construção e não consta consumo do produto. No mais, deve prevalecer o princípio da solidariedade. Enriquecimento sem causa não pode sobressair. Apelo provido em parte.” (TJSP – Apelação Cível com revisão n 304.085-4/8-00 – Rel. Natan Zelinschi de Arruda – jugto em 11.01.2007)

Este tipo de decisão, calcada sobretudo em um dever de solidariedade entre particulares, ainda não é maioria em nossa jurisprudência, mas dentro do estudo do Direito, vem ganhando espaço, já que  a solidariedade hoje aparece como cláusula geral, ganhando força no sentido de dever, em muito relacionada com a boa-fé e os deveres de consideração dela decorrentes.

A seu turno, o princípio da Dignidade da Pessoa Humana, na qualidade de valor absoluto, foi positivado logo no Art. 1, inciso III da Constituição Federal[16], sendo possível dizer que o ser humano, assim, foi colocado como centro do ordenamento jurídico, sendo ele o princípio e a razão de todo direito.

O princípio da Dignidade Humana, a bem da verdade, parece possuir dois viés distintos, quais sejam, o primeiro deles ligado aos mecanismos de proteção das próprias pessoas, garantindo tratamento humano, não degradante, digno, protetivo da integridade física e psicológica, pensado muito mais sob o discurso geral dos direitos humanos, que transbordam o próprio plano nacional e transcendem para um pensamento macro do sistema.

A dignidade humana, até pelo status constitucional de máxima importância que possui, em sintonia com o direito civil privado, determina um comportamento humano baseado especialmente na ética, na boa-fé, da probidade, e na função social que deve estar presente nos contratos, na propriedade e em todos os demais institutos regulados e protegidos pelo ordenamento. Novamente citando o Professor Donnini,[17] que conclui utilizando-se das palavras do grande Miguel Reale: “Agir de acordo com o princípio da dignidade da pessoa humana é o mesmo de atuar embasado na ética.”

Outro princípio decorrente da dignidade da pessoa humana é o da justiça social, previsto no caput do art. 170 da Constituição Federal. Esse princípio está ligado à igualdade e vinculado com uma política de justiça social. A relação entre eles acontece na medida em que a igualdade preconizada na Constituição Federal no caput do art. 5º tem por objetivo realizar a dignidade do ser humano para que seja efetivada justamente a justiça social do art. 170, caput, da Carta Republicana, que por sua vez não existirá se em dada relação jurídica houver a ruptura dos deveres de consideração.[18]

O conceito de justiça social surgiu em meados do século XIX ligado ao conceito de equidade social, cuja ênfase reside justamente no respeito aos direitos humanos e ao desenvolvimento das classes menos favorecidas por meio de oportunidades.

Portanto, tendo em vista que o sistema jurídico hoje é complexo, exigindo cada vez mais que haja diálogo entre cada uma das fontes de lei, tem-se que os deveres de consideração estudados nessa dissertação não decorrem exclusivamente da boa-fé objetiva positivada no Código Civil, mas podem também ser extraídos a partir da Constituição Federal, hoje de amplo alcance social e humano, especialmente pelos princípios da dignidade da pessoa humana, da solidariedade e da justiça social.


5. RESPONSABILIDADE PRÉ-CONTRATUAL

Não há que se falar em formação de contrato sem que as partes tenham passado por um momento anterior, ou seja, momento das tratativas. Nesta fase ocorre a discussão, a negociação, cujo objetivo é amadurecer as ideias e os objetivos em comum das partes, o que, posteriormente, resultará na formação do contrato. Esta fase que antecede o pacto é chamada pré-contratual[19].

Superada a classificação inicial, faz se necessário estabelecer a distinção entre a fase pré-contratual, objeto deste estudo, uma vez que não confunde com contrato preliminar ou pré-contrato. Isso porque na primeira as partes estão atraídas para a formação do contrato, enquanto que no contrato preliminar ou pré-contrato as partes já se encontram sob o prisma contratual, inclusive, com todos os requisitos essenciais do contrato a ser celebrado. Aliás, distinção muito bem pontuada por Silvio de Salvo Venosa[20]:

(...) Todavia, quando falamos de responsabilidade pré-contratual, esta decorre justamente de danos causados na fase de negociações, fora do contrato, indenizáveis sob a égide do artigo 1866 [...]. Na esfera dos negócios mais complexos, é comum que as partes teçam considerações prévias, ou firmem até mesmo um protocolo de intenções, mas nessas tratativas preliminares ainda não existem os elementos essenciais de um contrato [...]. Gozando o pré-contrato de todos os requisitos de um contrato, seu inadimplemento é examinado sob o prisma contratual. O contrato preliminar estampa uma fase da contratação, porque as partes querem um contrato, mas não querem que todos os seus efeitos operem de imediato. Como negócio jurídico, porém, goza de autonomia. Enfatizamos que a figura ora estudada afasta-se das negociações preliminares referidas, estampadas por simples manifestações sem caráter vinculativo.

Assim, quando as partes estão negociando determinada contratação, seja de forma verbal ou escrita, gerando uma confiança recíproca de que o trato será concretizado, estarão vinculados à boa-fé, assumindo uma obrigação implícita de prosseguir, de modo que abandonar ou desistir da negociação, desde que cause prejuízo ao outro, ocasionaria responsabilidade civil pré-contratual (culpa in contrahendo).

A culpa in contrahendo[21], surgiu na Alamenha por intermédio de Ihering, em 1861, diante de seu inconformismo com a injustiça que se acometia quando uma parte confiava genuinamente na declaração de vontade da outra, e depois se deparava com a invalidade do contrato.[22]Ou seja, a ideia central desta teoria é a de que contratantes devem agir de forma a evitar prejuízo, pois do contrário deverão responder pela sua inobservância.

A partir do estudo realizado por Ihering surgiram várias outras obras em diversos países, tais como Itália, França, Portugal, Argentina e, finalmente no Brasil, sendo objeto de estudo em 1959 por Antônio Chaves, através de sua obra Responsabilidade pré-contratual[23]

Nesse sentido, a jurisprudência[24] brasileira vem caminhando cada vez mais pela aplicação da teoria culpa in contrahendo:

Ao que se tem dos autos, a recorrida, instada pela BMW, afirmou sua intenção de vir a contratar, adiantando, nessa oportunidade, os documentos exigidos para a formalização do contrato definitivo, inclusive o depósito prévio. Concluiu-se, portanto, que a partir daí surgiu a responsabilidade pré-negocial, ou seja, da fase preliminar do contrato, tema oriundo da conhecida culpa in contrahendo.

.......

Na espécie, a responsabilidade pré-contratual discutida não decorre do fato de a tratativa ter sido rompida e o contrato não ter sido concluído, mas do fato de uma das partes ter gerado à outra, além da expectativa legítima de que o contrato seria concluído, efetivo prejuízo material.

.......

Ao que se tem, portanto, diante do quadro fático soberanamente analisado pelas instâncias ordinárias, restaram comprovados: o consentimento prévio mútuo, a afronta à boa-fé objetiva com o rompimento ilegítimo das tratativas, o prejuízo e a relação de causalidade entre a ruptura das tratativas e o dano sofrido.

Desta forma, podemos concluir que a violação dos deveres de cooperação, tratados neste estudo, vão de encontro com a teoria da culpa in contrahendo, uma vez que as partes deverão agir com honestidade, não só durante a execução do contrato, mas principalmente na fase pré-contratual, momento das tratativas, onde as partes deverão agir sempre com lealdade, prestando todas as informações, proteção e, por fim, o sigilo, pois caso contrário deverão responder por eventuais prejuízos.

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CONCLUSÃO

O estado social em que vivemos hoje, que influenciou na formação do direito moderno, permite uma certa flexibilidade dos contratos. Os contratos devem ser cumpridos, o pacta sunt servanda continua existindo, porém ele não é mais intangível, assim como era antes, pois agora existem previsões diante da própria constituição, surgindo a partir disso, os deveres de cooperação.

Os deveres de cooperação, conhecidos também como deveres acessórios, laterais ou deveres de conduta, são normas de comportamento, ou seja, a liberdade das pessoas agora sofre um contorno pelo ordenamento jurídico, o comportamento das partes no trato da vida civil passa a ser norteado pelos deveres de cooperação.

Estes deveres têm uma base legal, de onde é possível extrair seu fundamento, visto que eles não estão na Lei, o código civil não traz a finalidade de tais deveres. E essa é a grande chave da questão, pois se não estão expressos na lei acaba por gerar um certo questionamento.

Porém o artigo 422 do Código Civil de 2002, artigo este que trata da boa-fé objetiva, diz como as partes deverão se comportar quando forem firmar o contrato e durante a formação, segundo a boa-fé objetiva.

Assim, é possível verificar que a boa-fé objetiva serve como base para o surgimento dos deveres de cooperação. Sendo assim, a partir disso, possível extrair um fundamento civil deles, bem como, do ponto de vista constitucional, através do princípio da solidariedade, da dignidade e da justiça social.

O dever de lealdade exige que a parte atue com honestidade e transparência.

O dever de informação determina que a parte deve comunicar toda e qualquer informação relevante ao negócio, sob pena de violar os deveres de consideração na fase pré-contratual.

O próprio nome já remete à ideia de seu significado, sigilo, ou seja, a parte detém de informações durante a fase pré-contratual, não sendo admitido a divulgação de tais informações.

Diante disso, estes são os deveres de cooperação que não estão previstos na lei, mas que tem como base o artigo 422, do CC, que foram sistematizados na Alemanha e que agora seguem uma tendência mundial de aplicação, assim como Portugal e Espanha. A ideia é que o Brasil também adota a teoria dos deveres de cooperação nas fases anterior e posterior ao contrato.

A fase pré-contratual chama atenção justamente por não se encontrar disposta em nenhum “contrato” e apesar disso, ainda contar com dispositivos legais, tais como os mencionados durante o trabalho, capazes de fazer com que as partes exijam certas posturas daqueles com quem estão contratando, atribuindo, portanto, certo limite até mesmo à liberdade de interpretação das partes.

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Sobre o autor
ANA LUÍSA MARCOS FRANCISCO

Acadêmica de Direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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