RESUMO: Tem por finalidade o presente trabalho analisar o aparente conflito de normas existente no ordenamento jurídico brasileiro, no que dispõe à doação de órgãos, tecidos e partes do corpo post mortem. Tais normas se referem ao artigo 4º da Lei nº 9.434/97, com atual redação dada pela Lei nº 10.211/2001, que trata da autorização dos familiares para a retirada de órgãos, tecidos e partes do corpo humano e o artigo 14 do Código Civil de 2002, que permite o ato de disposição do próprio corpo pela vontade declarada em vida pelo de cujus. O aparente conflito surge a partir da autonomia do doador em vida, ao manifestar-se positivamente em relação a doação de seus órgãos após a morte, de conformidade com a ordem civilista e, em contrapartida, a necessidade de autorização familiar para a realização da remoção dos órgãos, consoante a legislação especial, Lei de Transplantes, independente da vontade do doador. É nesse contexto que se busca verificar o papel da família no processo de doação de órgãos, assim como os aspectos jurídicos dos citados dispositivos legais. Partindo da contextualização geral sobre o tema, analisamos o aspecto histórico dos transplantes, assim como os requisitos para que qualquer ser humano, maior de idade, possa tornar-se um potencial doador. Em especial, explora-se a evolução histórica da lei especial (9.434/97) que trata da doação de órgãos, tecidos e partes do corpo humano, assim como, os direitos de personalidade do Código Civil vigente. Ademais, não se deixa de analisar os direitos fundamentais, em principal o da dignidade da pessoa humana, assim como o biodireito e a bioética e seus princípios. Para a conclusão de que o conflito de normas é apenas aparente, utiliza-se a hermenêutica jurídica e a ponderação para a solução de conflito, demostrando a grande importância em se considerar a autonomia da vontade do potencial doador acima de tudo, entendimento enfatizado e demonstrado pelo enunciado, oriundo da jornada de direito civil, assim como pelo projeto de lei que tramita no Congresso Nacional e pelos doutrinadores, havendo assim uma orientação fornecida a comunidade jurídica quanto à interpretação da legislação civil.
Palavras-chave: Doação de órgãos post mortem. Lei de Transplantes. Código Civil.
SUMÁRIO:1 INTRODUÇÃO. 2 TRANSPLANTES DE ÓRGÃOS E TECIDOS. 2.1BREVE NOTAS HISTÓRICAS SOBRE A EVOLUÇÃO DO TRANSPLANTE DE ÓRGÃO E TECIDOS NO MUNDO. 2.2 HISTÓRICO DO TRANSPLANTE DE ÓRGÃO NO BRASIL. 2.3 CONCEITO DE TRANSPLANTE, DOADOR E RECEPTOR. 2.4 REQUISITOS DO POTENCIAL DOADOR. 2.5CLASSIFICAÇÃO DOS TRANSPLANTES. 3 DIREITOS FUNDAMENTAIS, BIOÉTICA E BIODIREITO NA QUESTÃO DAS DOAÇÕES DE ÓRGÃOS E TECIDOS. 3.1 CONCEITO E DIMENSÃO JURÍDICA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS. 3.2DESDOBRAMENTOS JURÍDICOS DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS.3.2.1 Direito da personalidade.3.2.2 Dignidade da pessoa humana. 3.2.3 Direito fundamental à vida.3.2.4 Direito à integridade física.3.2.5 Direito à liberdade.3.2.6 Direito à saúde.3.2.7 Direito ao próprio corpo.3.3 BIOÉTICA: CONCEITO E PRINCÍPIOS.3.3.1 Abordagem conceitual da bioética.3.3.2 Princípios da bioética: Princípio da autonomia; Princípio da Beneficência, Princípio da Justiça.3.4 BIODIREITO: notas conceituais.3.5 O PAPEL DA BIOÉTICA E DO BIODIREITO NOS TRANSPLANTES DE ÓRGÃOS HUMANOS.4 TRASPLANTE DE ÓRGÃOS E TECIDOS POST MORTEM: CONFLITO APARENTE ENTRE A AUTONOMIA DA VONTADE DO DOADOR E AUTORIZAÇÃO DA FAMÍLIA DO DOADOR.4.1 DOAÇÕES DE ÓRGÃOS E TECIDOS POST MORTEM: ESTUDOS PRELIMINARES.4.1.1 Evolução do conceito de morte.4.1.2 Critérios de determinação da morte encefálica.4.2TRANSPLANTES DE ÓRGÃO E TECIDOS NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO: A LEI DE TRANSPLANTES E O CÓDIGO CIVIL BRASILEIRO. 4.3. O CONSENTIMENTO DO DOADOR E O TRANSPLANTE POST MORTEM. 4.4 APARENTE CONFLITO ENTRE O ARTIGO 14º DO CÓDIGO CIVIL E O ARTIGO 4º DA LEI Nº 9.434/97.5 CONCLUSÃO.REFERÊNCIAS.ANEXOS.
“Um dia, um doutor determinará que meu cérebro deixou de funcionar e que basicamente minha vida cessou. Quando isso acontecer, não tentem introduzir vida artificial por meio de uma máquina. Ao invés disso, deem minha visão ao homem que nunca viu o sol nascer, o rosto de um bebê ou o amor nos olhos de uma mulher. Deem meu coração a uma pessoa cujo coração só causou intermináveis dores. Deem meus rins a uma pessoa que depende de uma máquina para existir, semana a semana. Peguem meu sangue, meus ossos, cada músculo e nervos de meu corpo e encontrem um meio de fazer uma criança aleijada andar. Peguem minhas células, se necessário, e usem de alguma maneira a que um dia um garoto mudo seja capaz de gritar quando seu time marcar um gol, e uma menina surda possa ouvir a chuva batendo na sua janela. Queimem o que sobrar de mim e espalhem as cinzas para o vento ajudar as flores nascerem. Se realmente quiserem enterrar alguma coisa, que sejam minhas falhas, minhas fraquezas e todos pecados ao diabo e a minha alma a Deus. Se quiserem lembrar de mim, façam-no com um ato bondoso ou dirijam uma palavra delicada a alguém que precise de vocês. Se vocês fizerem tudo o que estou pedindo, viverei para sempre.”[1]
A crescente evolução científica, mais precisamente a ocorrida durante a segunda metade do século passado, em que o homem buscou incansavelmente prolongar a vida humana, fez com que chegasse a realidades inimagináveis, e é dentro dessa evolução que surge a prática dos transplantes de órgãos, tecidos e partes do corpo humano post mortem.
A ideia de substituir órgãos doentes por sadios, garantindo um prolongamento da vida, acompanha a humanidade há muito tempo, contudo, o êxito nesses procedimentos só ocorreu com o desenvolvimento de técnicas cirúrgicas recentes e com a evolução das drogas imunológicas.
A evolução tecnológica e científica e o sucesso das cirurgias de transplante permitiram a acessibilidade aos procedimentos por parte da população como um todo, muito embora a demanda por tecidos, órgãos e partes do corpo humano seja maior que a oferta. Portanto, apesar de ser a mais notável conquista da medicina moderna, representando o melhor meio de salvar milhares de vidas, o tema enfrenta grandes questões éticas, morais e estritamente legais. Daí a importância e a necessidade de uma análise cautelosa sobre a prática.
A temática proposta para desenvolver este trabalho é a tensão presente entre os princípios fundamentais do direito à personalidade, garantidor do direito de autonomia por parte do de cujus na escolha da determinação do seu corpo em vida para depois da morte. Neste contexto, a disposição gratuita do corpo humano por motivo altruístico de um lado e, de outro, o direito resguardado pela lei especial em garantir à família o direito legal de consentir ou não a retirada dos órgãos do familiar para fins de transplantes, não dispõe de nenhum dispositivo legal que determine o respeito à decisão daquele que faleceu, podendo a família descumprir se assim o desejar.
Diante do aparente confronto entre o artigo 14 do Código Civil e o artigo 4º da Lei nº. 9.434/97, qual interpretação pode ser considerada mais adequada? A vontade da família se sobressairá em qualquer meio, sem nenhuma limitação a este poder conferido pelo artigo 4º da lei específica? É possível considerar que o direito de personalidade no que se refere à disposição do próprio corpo no artigo 14 do Código Civil é válido? Tem-se, portanto, um conflito de duas disposições legais: o artigo 14 do Código Civil Brasileiro e o artigo 4º da Lei nº. 9.434/97.
Justificada a escolha do tema, vê-se a importância da remoção de órgãos para fins de transplantes, prática que suscitou e suscita debates polêmicos, ainda mais quando analisados sob o forte preceito cultural e religioso que influenciam o comportamento de inúmeras pessoas.
O interesse pelo estudo do tema não se limita apenas na busca de conhecimentos mais profundos sobre o assunto, mas também em entender de onde surge essa barreira social em relação a esses procedimentos e, sobretudo, pela própria experiência vivenciada há alguns anos quando ocorreu a morte de uma irmã de meu pai, e mesmo ela informando em vida seu desejo de ser doadora de órgãos, sua vontade sucumbiu aos preceitos cultural e religioso da família ao negar o atendimento a sua autonomia de dispor dos órgãos de seu corpo .
Na realização deste trabalho utilizou-se de ampla pesquisa bibliográfica nos acervos pertinentes, assim como pesquisas em sites especializados e monografias publicadas. O tema em questão "Transplante de órgãos, tecidos e partes do corpo humano post mortem" não permite a utilização de questões jurisprudenciais. Sendo assim, este trabalho segue o procedimento monográfico e a técnica de pesquisa é basicamente bibliográfica.
Quanto ao método de abordagem utilizou-se o do pensamento dedutivo, uma vez que parte da apresentação do instituto do transplante de órgãos na legislação brasileira para se chegar a demonstração da interferência dos familiares na escolha da pessoa referente a doação de órgãos após a morte para fins de transplante, com natureza qualitativa.
No que se refere aos principais autores da fundamentação teórica, podemos citar: Maria Helena Diniz, Rodrigo Pessoa Pereira da Silva in Maria de Fátima Freire de Sá, Pablo Stolze Gagliano, Francisco do Amaral, Antônio Chaves, Renata Vanzella Barbieri, Zuleica Regina de Araújo Loureiro, Paulo Bonavides, entre muitos outros.
O trabalho está dividido em 3 capítulos, alguns subdivididos em seções. O primeiro capitulo intitulado Transplantes de órgãos e tecidos, faz uma breve introdução sobre o tema, seguido pela apresentação do contexto histórico dos transplantes de órgãos e tecidos no mundo, apresentando por fim conceitos, requisitos e legislação pertinente.
O segundo capitulo, cujo titulo é Direitos fundamentais, bioética e biodireito na questão das doações de órgãos e tecidos, discute a importância dos institutos da bioética e do biodireito e seu impacto na área da saúde no que diz respeito as novas descobertas e a forma de controlar o uso desses avanços preservando, acima de tudo, o direito à dignidade da pessoa humana, e outros princípios constitucionais de extrema importância.
O último capitulo, intituladoTransplantes de órgãos e tecidos post mortem: Conflito aparente entre a autonomia da vontade do doador e autorização da família do doador, analisa a evidente tensão entre o artigo 4º da Lei nº 9.434/97 e o artigo 14 do Código Civil Brasileiro, o confronto entre os princípios do direito da personalidade que garante o direito da manifestação em vida do potencial doador e a lei especial que outorga á família o poder decisório para consentir ou não a retirada dos órgãos do ente falecido, descumprindo, se desejar, a vontade expressa do morto.
Assim, diante de todo contexto e normas envolvidas em discussão, o presente trabalho questiona a existência do conflito entre duas citadas disposições legais, buscando uma evidente interpretação dos dispositivos que regulamentam a prática dos transplantes de órgãos post mortem, apresentando ao final uma proposta de adequação do artigo 4º da lei de transplantes, sem intensão de modificá-lo, apenas acrescendo a manifestação de vontade do doador, ainda em vida.
2 TRANSPLANTE DE ÓRGÃOS E TECIDOS
Diante da falência natural dos órgãos do corpo humano, oriundas de doenças irreversíveis, crônicas ou agudas, em que os tratamentos existentes não mais surtiriam efeito aos pacientes, a medicina gradativamente foi identificando recursos necessários a garantir a continuidade da vida natural, surgindo dessa forma a técnica biomédica de transplante de material orgânico semelhante.
Contudo com o avanço e aperfeiçoamento dessa técnica, observou-se o aumento do número de doentes necessitando de transplante de órgãos para sobreviver. Isso provocou a necessidade de disciplinar-se juridicamente a matéria.
Ainda assim, a produção normativa não conseguia acompanhar no mesmo ritmo a velocidade das ciências da vida, nem mesmo resolver os problemas oriundos do forte impacto social provocado por tal inovação. Como consequência, surgiu a necessidade de se criar uma disciplina a fim de fornecer parâmetros para experimentação do corpo humano, introduzindo princípios norteadores do respeito da autonomia do doador, surtindo apenas o benefício e nunca o malefício. [2]
2.1 BREVE NOTAS HISTÓRICAS SOBRE A EVOLUÇÃO DO TRANSPLANTE DE ÓRGÃOS E TECIDOS NO MUNDO
A perda de um ente querido é sempre uma situação complicada e difícil de ser aceita por toda a família, contudo é nesse momento que a perda pode ser substituída por um ato de solidariedade e esperança àquelas pessoas que estão há anos em filas de espera de um transplante de órgãos.
A prática de transplantes não é uma técnica recente; existem dados da antiguidade, talvez até lendários de sua ocorrência, momentos de erros e acertos, por quanto atualmente os transplantes representam a melhor terapia e chance de recuperar vidas.[3]
“A intervenção cirúrgica para a retirada de órgãos, tecidos ou parte do corpo encontra registros, inclusive, bíblicos. Bela também a lenda dos Santos Cosme e Damião [...].” [4]
Reza a lenda que o primeiro transplante foi feito pelos Santos Cosme e Damião, na Sicília, no século III. O sacristão duma igreja sofria de gangrena e teve uma de suas pernas amputadas. Os Santos Médicos procuraram no cemitério local e o único cadáver disponível era de um negro etíope. Fizeram o transplante que teve êxito, com o único senão de o paciente ter levado o resto de seus dias com pernas de cores diferentes.[5]
A técnica de transplantar órgãos se espalhou por todo o mundo, tendo seus primeiros registros a partir do século XIX e início do século XX. Contudo as chances de obter-se sucesso nas cirurgias eram poucas, tendo em vista que os métodos cirúrgicos eram rudimentares e não existiam medicamentos que combatessem a rejeição dos órgãos transplantados.
“Mas, sem dúvida alguma, o marco na história dos transplantes deu-se no dia 3 de dezembro de 1967, na Cidade o Cabo, África do Sul, onde o médico Cristian Barnard realizou com êxito o primeiro transplante de coração.” [6]
Foram meses de preparação da equipe médica. O maior problema encontrado pela equipe era a existência de um doador compatível. Encontrado o doador, uma mulher de 25 anos, Denise Ann Darval, que havia sido atropelada e cuja morte encefálica foi diagnosticada, realizou-se então o transplante cardíaco no paciente Louis Washkansky, que já apresentava mínimas chances de continuar vivendo. Contudo, 18 dias após a cirurgia o paciente veio a falecer, devido a infecções no organismo que estava fraco e em virtude de altas doses de radiação aplicada pelo médico para impedir a rejeição.[7]
Ainda na África do Sul, tivemos um caso interessante na cidade de Clive, quando um rapaz negro doou o seu coração a um homem branco. Em país onde se encontrava instalado o princípio do apartheid, o fato causou polêmicas. Se o coração de um negro pode salvar um branco, por que ambos não gozam dos mesmos direitos políticos e sociais? [8]
“Mas foi somente pela adoção dos princípios basilares da moderna cirurgia, com refinamento instrumental, anestesia, antissepsia, antibioticoterapia, combate á rejeição etc., que o transplante de órgãos e tecidos passou a ser considerado um método científico”.[9]
Atualmente, a pratica dos transplantes é algo rotineiro. Sua demanda é muito maior do que a capacidade de realização, pois é por meio desse procedimento que inúmeros pacientes a beira da morte, encontram uma luz no fim do túnel ou seja, a chance de ganhar mais alguns anos de vida. Tudo graças as diversas pesquisas que conseguiram encontrar os meios necessários para aobtenção de sucesso nos transplantes. [10]
2.2 HISTÓRICO DO TRANSPLANTE DE ÓRGÃOS NO BRASIL
No que se refere a evolução histórica dos transplantes de órgãos, o que se percebe é que por muitos anos a humanidade insiste em buscar e garantir o prolongamento da vida, tendo a história dos transplantes trilhado os mesmos caminhos da medicina. [11]
Diante do contexto doação de órgãos, a primeira manifestação legislativa sobre o assunto no Brasil, foi a introdução da Lei nº. 4.280/63, que dispunha sobre a extirpação de órgãos e tecidos da pessoa falecida para fins de transplante. Essa possui como determinação para doação, a autorização do doador em vida por escrito, ou do cônjuge e na falta desse dos parentes até o segundo grau, oumesmo dos responsáveis pelo corpo. Nesse dispositivo poderia haver a escolha da pessoa receptora, e não havia menção sobre a gratuidade da doação. Nessa época só se extraía córneas, artérias e ossos. [12]
Após, tem-se a Lei nº. 5.479/68, que revogou o dispositivo anterior, mantendo a necessidade de autorização do doador. Agora, além de maiores capazes poderem dispor de tecidos e de órgãos, a lei inclui como possíveis doadores, menores e incapazes. Outra novidade estava expressa na lei: a possibilidade de retirada de órgãos e tecidos do corpo vivo, assim como a disposição expressa da gratuidade na doação. [13]
Contudo, o diploma legal nunca foi regulamentado, o que causou grandes dificuldades para sua efetiva aplicação. No contexto social aumentava-se o número da demanda por órgãos e se observava a insuficiência de dispositivos legais existentes. Na tentativa frustrada de sanar o problema, nossos legisladores criaram diversos instrumentos legais referentes ao tema, como por exemplo, aquele que diminuía a pena do detento que optasse por doar órgãos, sempre com o objetivo geral de aumentar o número de doadores. [14]
A Constituição Federal de 1988 trouxe em seu texto dispositivo específico sobre o tema, no artigo 199, § 4º. Dessa forma a fim de tornar efetivo o preceito legal e diante de diversas tentativas de regulamentar a matéria sem sucesso, foi aprovado pelo Congresso Nacional a Lei nº 8.489/92, que dispõe sobre a retirada e o transplante de tecidos, órgãos e partes do corpo humano, com fins terapêuticos e científicos. Posteriormente, em 1993, foi regulamentada pelo Decreto nº. 879, que pretendeu em seu bojo dar mais flexibilidade a doação, mas não trouxe grandes inovações.[15]
A expressão cadáver foi substituída por “corpo humano”; estendeu-se a responsabilidade criminal dos infratores; trouxe a necessidade de notificação de todos os casos caracterizados como emergencial, assim como adotou o critério de morte encefálica. [16]
Quanto à intenção do doador, ficou determinado que se o mesmo não se manifestasse em vida, a família poderia autorizar agora de forma verbal. Tudo girava em torno do intuito de aumentar o número de doadores. Contudo, não se obteve sucesso. A demanda continuou crescendo, como ocorre nos dias atuais. [17]
Grave era a situação que se encontravam aqueles que aguardavam em fila a espera por um doador, não sendo diferente atualmente. Com o intuito de buscar aumentar, de alguma maneira o número de doadores de órgãos, tecidos e partes do corpo humano, o legislador editou a Lei nº 9.434/97, em análise no presente trabalho. Em virtude de inesperadas criticas e problemas advindos de sua interpretação, surge em 2011 a Lei nº. 10.211, que alterou dispositivos da lei, hoje conhecida como Lei dos Transplantes, em vigor. [18]
2.3 CONCEITO DE TRANSPLANTE, DOADOR E RECEPTOR
Muito frequentemente se fala de enxertos e transplantes como sendo termos sinônimos. Necessário se faz estabelecer as diferenças entre ambos.
Entende-se enxerto como “a secção de uma porção do organismo próprio ou organismo alheio, com fins estético e terapêutico, sem exercício de função autônoma. Chama-se também enxertos plásticos”.[19]
Transplante é o termo empregado para explicar o procedimento cirúrgico em que se retiram órgãos, tecidos ou partes do corpo de um ser, vivo ou morto, e se transplanta para um organismo doente, com a finalidade terapêutica. [20]
Para Antônio Chaves,“Transplante é a amputação ou ablação de órgãos, com função própria, de um organismo para instalar-se em outro, a fim de exercer neste as mesmas funções que no anterior. Também são chamados enxertos vitais ou, simplesmente, transplantes.” [21]
Na doação de órgãos temos o doador e o receptor. O doador é aquele que consentiu com a retirada de órgãos, tecidos ou partes do seu corpo, saudáveis, para fins de transplante. O receptor é aquele indivíduo doente que receberá o órgão, tecido ou parte do corpo do doador e terá, dessa forma, a oportunidade de salvar ou melhorar a qualidade de sua vida.
2.4 REQUISITOS DO POTENCIAL DOADOR
A Lei nº. 9434/97, também conhecida como Lei dos Transplantes, é composta por 25 artigos divididos em seis capítulos, respectivamente:
I – Das disposições gerais; II – Da disposição post mortem de tecidos, órgãos e partes do corpo humano para fins de transplante; III – Da disposição de tecidos, órgãos e partes do corpo humano vivo para fins de transplante ou tratamento; IV – Das disposições complementares; V – Das sanções penais e administrativas; VI – Das disposições finais.
Regulamentada pelo Decreto nº. 2.268/97, cria e organiza o SNT – Sistema Nacional de Transplantes, subordinado ao Ministério da Saúde.
O Sistema Nacional de Transplantes funciona a partir das unidades executivas, as CNCDO´s (Centrais de Notificação, Captação e Distribuição de Órgãos), que além de coordenar as atividades de transplantes, também promove a inscrição de potenciais receptores em uma lista, conhecida como lista única, o que permite a localização mais rápida e precisa para a verificação da compatibilidade. [22]
Fundamental é a existência da lista única, na qual cada Estado Brasileiro necessita cadastrar as pessoas que precisam de órgãos. Conforme preceito da lista, só poderá ser desrespeitada caso os testes de compatibilidade entre o doador e o receptor não forem positivos.
O sistema de lista única funciona basicamente pelo critério de verificação do tempo de espera da inscrição do receptor, existindo para cada tipo de órgão, tecido ou parte do corpo. Possui três níveis de integração: listas nacionais, estaduais e regionais. [23]
“Em virtude de inesperadas [...] consequências advindas da edição do referido texto legal, surge em 23 de março de 2001 a Lei nº. 10.211” [24]., que alterou alguns dispositivos daquele instrumento legislativo, dessa forma acreditando por fim nos problemas surgidos.[25] Essas alterações serão apresentadas gradativamente no corpo do texto.
Posterior a pequena análise feita à lei de transplantes e sua alteração, discutiremos, conjuntamente, os dois dispositivos (Lei nº. 9434/97 e Lei nº. 10.211/01) para melhor vislumbrarmos os requisitos necessários a um potencial doador pós- morte.
O artigo 1º da Lei nº. 9434/97 permite, em conformidade com a Constituição Federal, no artigo 199 § 4º, a disposição gratuita de tecidos, órgãos e partes do corpo humano, sendo vetada de qualquer forma a comercialização, ou seja, qualquer ato de cessão onerosa dos mesmos. Apesar da proibição expressa, deixemos claro que existe o comércio clandestino e ilegal de órgãos e tecidos. E segundo Rodrigo Pessoa Pereira da Silva, “não faltam aqueles que chegam a defender a tese da venda de partes do corpo humano, por mais absurda que nos possa parecer.” [26]
“O paragrafo único do artigo 2º, exige para a realização de transplante, que o doador se submeta a todos os testes de triagem para diagnóstico de infecção e infestação.” [27] Contudo, conforme pesquisas demostram, apesar da exigência da lei, nem sempre é possível a realização destes testes, por obstáculos que o sistema enfrenta, falta de aparelhos especializados ou muitas vezes recursos financeiros.[28]
O artigo 3º exige para a retirada dos órgãos, tecidos e partes do corpo humano, a constatação de morte encefálica, que deverá ser diagnosticada por dois médicos, mediante a utilização de critérios clínicos e tecnológicos, definidos por resolução do Conselho Federal de Medicina e que não participem da equipe de remoção e transplante. Importante salientar que se admite a presença do médico de confiança da família do falecido, para que constate a morte cerebral, desde que este não demore em comparecer ao local indicado, tornando por este motivo inviável a posterior retira da parte doada. [29]
Constatada a morte encefálica, que deverá ser consequência de processo irreversível e de causa conhecida, considera-se o paciente um potencial doador. No Brasil, o diagnóstico de morte encefálica é definido pela Resolução CFM nº. 1.480/97, baixada pelo Conselho Federal de Medicina, que define os critérios do mesmo.[30]“Primeiramente se registra no prontuáriomédico um Termo de Declaração de Morte Encefálica. Nele serão descritos os elementos do exame neurológico que demostram ausência dos reflexos do tronco cerebral, bem como o relatório de um exame complementar”.[31]
Segundo a ABTO (Associação Brasileira de Transplante de Órgãos), para constatar-se o diagnóstico de morte encefálica é necessário certificar-se de que:
“1 Paciente tenha identificação e registro no hospital; 2 A causa do coma seja conhecida e estabelecida; 3 O paciente não esteja hipotérmico, ou seja, temperatura abaixo de 35º graus; 4 O paciente não seja usuário de drogas depressoras do Sistema Nervoso Central e por fim 5 O paciente não esteja em hipotensão arterial ou pressão baixa, significa que a sua pressão arterial é mais baixa do que o esperado”. [32]
Certificados os primeiros procedimentos, o paciente continuará sendo submetido a dois exames que avaliam a integridade cerebral. A resolução CFM nº. 1480/97, determina que os exames devam ser feitos por médicos não participantes das equipes de captação e transplante, e há a necessidade de intervalo entre um exame e outro que será determinado de acordo com a idade do paciente.[33] Após o cumprimento do segundo exame, é realizado um exame complementar que demostra: Ausência de perfusão sanguínea cerebral; ou Ausência de atividade elétrica cerebral; ou Ausência de atividade metabólica cerebral. [34]
Importante enfatizar que se o hospital onde se encontra o paciente não tiver meios ou condições de constatar e confirmar a morte encefálica, deveimediatamente informar profissionais habilitados mais próximos, para que estes realizem os procedimentos conforme a resolução determina.[35]
Depois de realizados os procedimentos conforme a resolução do Conselho Federal de Medicina determina, será documentada a morte encefálica, cabendo a partir dai o direito clínico da instituição onde se encontra o paciente, comunicar o fato aos responsáveis legais, se houver, e à Central de Notificação, Captação e Distribuição de Órgãos a que estiver vinculada, informando a unidade onde se encontra o internado, aos quais será cientificado nome, idade e causa da morte. Essa notificação é compulsória, ou seja, do já consentimento familiar de doação ou mesmo da condição do potencial doador se tornar um doador efetivo. [36]
Após a constatação da morte encefálica, inicia-se o processo de autorização, quando então a família é consultada e orientada sobre o procedimento de retirada de órgãos, tecidos e partes do corpo do falecido. O médico do hospital, responsável pelo paciente, ou o médico da equipe de captação, noticia a morte do paciente e a real possibilidade de utilização dos órgãos para doação. Caberá a partir daí ao cônjuge ou parente capaz, da linha reta ou colateral até o segundo grau, a autorização, que será lavrada em documento escrito e firmado por duas testemunhas presentes quando da verificação da morte. [37]
Wlademir Lisso demostra a importância do consentimento das partes para o procedimento cirúrgico:
Assim, a obrigação de reconhecer, em relação bilateral que se estabelece na doação de órgãos e transplante, os direitos do doador e do receptor, do primeiro, de ver respeitada a doação de órgãos expressa ou presumida realizada em vida, pelos seus familiares por ocasião da morte; do segundo, de receber todos os esclarecimentos necessários á decisão de sofrer ou não a cirurgia de transplante, considerada ainda de risco. [38]
Havendo a autorização, ocorre a retirada dos órgãos e tecidos para fins de transplante e tratamento no organismo do receptor, que é identificado no relatório enviado pela instituição hospitalar ao órgão gestor estadual do SUS. Realizado o procedimento cirúrgico, o cadáver deverá ser recomposto, para então ser entregue a família ou responsáveis pelo sepultamento ou cremação. [39]
Todavia, ocorrendo morte sem acompanhamento médico ou mesmo de causa não conhecida, há a necessidade de esclarecimento de um suposto crime. A retirada de órgãos e/ou tecidos do cadáver para fins de transplante ou tratamento, deve ocorrer apenas após a autorização do patologista ou legista do serviço de verificação de óbito responsável pela investigação exposta no relatório de necropsia. [40]
Conforme determina o artigo 5º da Lei 9.434/ 97, em se tratando de menor incapaz, caberá a ambos os pais, ou responsáveis legais que expressamente, permitam a remoção pós-morte de órgãos, tecidos e partes do corpo humano. Já em concordância com o artigo 6º é vetado, de qualquer forma, dispor de órgãos de pessoa não identificada.
Contudo, nem sempre foi assim. Não imperava na legislação brasileira o sistema de consentimento familiar e para melhor entendimento será apresentado uma exposição sobre os sistemas de disposição de órgãos, tecidos e partes do corpo humano:
a) Consentimento (opting-in system): exige a anuência expressa do doador ou de sua família. Adotado no México, na Inglaterra, nos Países Baixos, Turquia e, atualmente, no Brasil. Os Estados Unidos adotaram sistema semelhante, denominado “pedido requerido” (requiredrequest), previsto no UniformAnatomicalGift, instrumento legislativo que trata do assunto. Segundo este, o hospital ou o médico deve informar a família sobre a possibilidade da doação dos órgãos do paciente;
b) Consentimento presumido (opting – out System): baseia-se no princípio de que todo cidadão é doador de órgãos. Caso não seja, deverá ele fazer a opção negativa. José Roberto Goldim[41] subdivide esse sistema em forte (Áustria, Dinamarca, Polônia, Suíça e França) e fraco (Finlândia, Grécia, Itália, Noruega, Espanha e Suécia), sendo que o primeiro possibilita ao médico que retire órgãos de todo e qualquer cadáver, enquanto o segundo apenas dos que não declarem objeção a esse procedimento; e
c) Manifestação compulsória: propõe que todos os cidadãos, quando se tornarem capazes devem optar formalmente pela doação ou não de seus órgãos. Exige, portanto, a manifestação do indivíduo, sem presunção positiva ou negativa, cabendo ao legislador disciplinar eventual silêncio. Ainda não adotado em nenhum país, podendo ser o Canadá o primeiro país a adotá-lo.[42]
Na sistemática da lei, anterior a sua reforma, a doação de órgãos implicava em um procedimento que se seguia a partir da decisão pelo doador, ou seja, consistia no desejo expresso do doador manifestado em vida, sendo este maior de idade, através da carteira de identidade civil, carteira de habilitação ou carteira profissional. Na ausência do documento, a retirada de órgãos apenas iria se presidir a partir da concordância e anuência dos familiares, cônjuge, ascendente e descendente. [43]
Dessa forma o artigo 4º da Lei 9.434/97, anterior a sua reforma, ao adotar o sistema de doação presumida, conforme se observa em seu conteúdo, gerou grandes polêmicas tanto na comunidade médica e jurídica. [44]
Art. 4º Salvo manifestação em contrário, nos termos dessa Lei, presume-se autorizada a doação de tecidos, órgãos ou partes do corpo humano, para fins de transplante ou terapêutica post mortem.
“Tal artigo estipulava que todo cidadão era presumidamente doador de órgãos e tecidos, a não ser que se manifestasse em sentido contrário”.[45]
Os parágrafos do artigo em questão apontavam o procedimento a ser seguido caso o cidadão optasse por não ser doador: bastava que o mesmo comparecesse a quaisquer dos órgãos responsáveis por gravar a expressão “doador” nos documentos estipulados e utilizar a expressão “não doador”.
Contudo, a vontade expressa pelo doador não era invariável. Se por acaso, a escolha inicial fosse mudada, era possível sua reforma, a qualquer instante. Apesar disso, se por ventura houvesse dois documentos legalmente validos, com diferentes opções, prevaleceria aquele cuja emissão tivesse sido mais recente, e havendo ausência por parte do doador, a escolha caberia a família. [46]
Embora imperasse na legislação o consentimento presumido, os médicos ainda continuavam a consultar os familiares e a requererem sua autorização para o procedimento, por força do Código de Ética Médica. [47]
Em relação a atuação dos médicos, o Código de Ética determinava: “é vetado ao profissional da área “efetuar qualquer procedimento médico sem esclarecimento e o consentimento prévio do paciente ou de seu responsável legal, salvo em eminente perigo de vida”“.[48]
Conforme se observará, o objetivo altruístico do legislador ao determinar a doação presumida de órgãos, não saiu como o esperado, pois o respectivo dispositivo foi imediatamente atacado por grande parte da doutrina, que argumentava diversos pontos, por entender ser este uma afronta ao ordenamento jurídico vigente. [49] Contudo, embora minoria, existia aqueles que apontavam sua opinião favorável quanto ao dispositivo de lei, pois este continuava a garantir a decisão individual e consciente por parte da população. [50]
Diante da crescente discussão o sistema foi modificado de presumido para expresso, diante da reforma de dispositivos pela Lei nº. 10.211/2001.
Em concordância com Wlademir Lisso, em análise do artigo revogado:
Verifica-se, em relação á lei revogada, que somente as pessoas que já haviam adquirido, dentro do processo evolutivo, consciência social preocupada com o bem coletivo e com o bem-estar do seu próximo, optavam pela doação a partir da conclusão de um processo de conscientização. A maioria das pessoas simplesmente não tomava conhecimento do assunto, principalmente como decorrência da situação geral da humanidade, excessivamente presa ás necessidades materiais e ás atividades desenvolvidas para seu atendimento. Observa-se, na sociedade contemporânea, preocupação constante em relação á solução de problemas imediatos e, se mediatos, sempre voltados para o retorno que pode se verificar concretamente no campo material.[51]
Sendo assim, apesar das diversas críticas e posicionamentos levantados, ainda existiam, mesmo que em minoria, aqueles que acreditavam que o referido artigo e a presunção de ser doador, não levariam as pessoas a se tornarem doadores contra sua vontade, pois ainda restava a possibilidade de uma decisão livre e consciente por parte da população. Talvez o melhor argumento que se encaixa à situação seria a falta de conhecimento do procedimento por parte da população. [52]
2.5 CLASSIFICAÇÃO DOS TRANSPLANTES
O transplante de órgãos, tecidos e partes do corpo humano é considerado a melhor alternativa de tratamento e, em alguns casos a única, quando se busca salvar a vida humana. Hoje os transplantes podem ser classificados em: xenotransplante, o autotransplante, o isotransplante e o alotransplante.
Segundo a professora Sílvia Mota, “xenotransplante é a denominação dada aos procedimentos que utilizam órgãos ou tecidos de outras espécies de animais para substituir os de um ser humano”.[53]
Diante do pequeno número de doadores e, consequentemente do grande número de pessoas que morrem esperando na fila por transplantes, cientistas vêm desenvolvendo estudos nessa área,cujos objetivos são a descoberta de novas tecnologias. Contudo, sofrem grandes problemas de caráter clínico, ético e legal.
Concorrente tem-se o autotransplante, no qual o paciente utiliza-se de órgãos ou tecidos de seu próprio corpo para serem utilizados posteriormente em implantes em outra parte do seu corpo. Nessa situação não ocorre rejeição, e a esse tipo de procedimento pode também ser chamado de transplante autólogo. [54]
O isotransplante ocorre com gêmeos univitelinos, ou seja, o doador e receptor são gêmeos, pessoas com características genéticas idênticas. Nesses casos, assim como no autotransplante, não ocorre rejeição dos órgãos, tecido ou parte do corpo humano transplantado. [55]
Temos ainda o alotransplante. Considerado o mais comum dos transplantes é o tema deste estudo. Nesse caso, o doador e o receptor são pessoas de mesma espécie, contudo não possuem características genéticas idênticas, também é conhecido como transplante alogênico. [56]
Importante frisar que o rol apresentado não é taxativo. Existem diversos doutrinadores que apresentam outras classificações de transplante, os quais não foram considerados importantes para o estudo em questão, apresentado apenas os considerados mais comuns.