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Competência legislativa dos entes federados atinente ao gás natural

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4. Competência legislativa pertinente ao gás natural

Elaborar uma norma que gere a estabilidade necessária à indústria gasífera, disciplinando as relações factíveis de conflito implica na abordagem de temática as mais variadas, notadamente em face das implicações sócio-jurídicas que a utilização do energético acarreta à sociedade.

Desta feita, o modelo regulatório a ser implementado, antes de ser uma escolha apriorística por parte dos legisladores, há de ser fruto do amplo debate a ser travado com os atores envolvidos.

A competência legislativa para dispor sobre energia é da União Federal, consoante leitura preliminar do artigo 22, inciso IV da CF/88. Dentro da temática energia, encontra-se inserido o gás natural. Ocorre que, a normatização do gás natural esbarra em outras competências atribuídas aos demais entes federados.

Pelo inciso citado, atribui-se à União a possibilidade de estabelecer princípios específicos e políticas de atuação para a utilização do energético. Como é de bom alvitre que toda norma abebere-se em bases principiológicas, competirá ao referido ente tal atribuição, que servirá de norte para a atuação dos demais integrantes do pacto federativo.

Ademais, a competência ora em estudo permite que se traga à lume definições e especificações técnicas. Entretanto, entendemos razoável que tal atribuição deva ser delegada à agência reguladora do setor, visto a finalidade institucional da mesma. Atualmente, a portaria 104/2002 da Agência Nacional do Petróleo estabelece as especificações para o gás natural vir a ser comercializado em todo o território nacional.

Diante do gás natural encontrado no território brasileiro ser notadamente associado à reservas de petróleo, possível que o ente federal estabeleça metas e critérios para sua pesquisa, exploração, produção, refino, importação/exportação e transporte com o fito de melhor gerir tais atividades. As atividades esculpidas nos incisos I a V do artigo 177 da Carta Constitucional são de competência legislativa da União (CF/88, art. 177, § 1º c/c art. 22, IV). Há de se aplicar, mutatis mutandis a competência adotada quando do feitio da Lei nº 9.478/97.

Fica também ao talante da União o direito para legislar sobre uma nova agência reguladora específica para o setor de gás, atribuir competências a atual agência reguladora – ANP, unificar as agências de energia (ANEEL e ANP), ou mesmo em nada alterar o quadro regulatório vigente.

Frise-se que também compete ao ente em comento estabelecer por ato normativo a participação que o gás natural terá na matriz energética brasileira, e sua correlação com os demais energéticos,

Embora haja a possibilidade do ente federal autorizar aos Estados Membros o direito para legislarem sobre as questões supracitadas (CF/88, art. 22, parágrafo único), diante da relevância que o energético importa para todo o cenário nacional, entendemos como razoável que a legislatura da Lei do gás, nesses tópicos, se dê diretamente pela própria União.

O legislador constituinte originário quando idealizou a vigente Constituição não trouxe um critério definido para a diferenciação do que seja as atividades de transporte e de distribuição local de gás canalizado. Atribuiu competências à União para legislar acerca da atividade de transporte (CF/88, art. 177, IV, §1º c/c art. 22, VIII e XI), enquanto que outorgou poder aos Estados Membros para legislarem sobre os serviços locais de gás canalizado (CF/88, art. 25, § 2º). A diferenciação de cada uma das atividades, fundada nos critérios os mais variados possíveis (variação de pressão, passagem pelo city gate ou mesmo o tipo de interesse envolvido) não elide as dúvidas recorrentes, podendo gerar atrito ao pacto federativo. Embora a Lei do Petróleo tenha trazido definições técnicas para conceituar cada um dos segmentos da cadeia, compete ao Supremo Tribunal Federal a guarda da Constituição, com a conseqüente interpretação de suas normas. Sendo assim, Lei Federal que supra competências atribuídas aos Estados Membros padecerá do vício de inconstitucionalidade por ferir a forma federativa do Estado.

O fato da competência legislativa da atividade de distribuição ter sido outorgada aos Estados Membros apenas com a vigente Constituição Federal leva-nos a afirmação de que patente encontra-se o processo de centrifugação do poder no pacto federativo Brasileiro. É natural que a visão que se tenha da parcela de poder desprendido do ente central para os entes estaduais, neste primeiro momento, seja estrita haja vista o jogo de poder tido entre os entes federados, razão pela qual a interpretação que deve ser feita para a correta compreensão da competência legislativa esculpida no artigo 25, §2º da Constituição Federal há de ser restritiva; a transferência de competência da União para os entes estaduais foi tão somente da legislatura acerca dos serviços de gás, feitos na forma canalizada, serviços estes que se restrinjam ao âmbito Estadual. Todas as demais atividades por meio de dutos ainda se encontram sob o manto legislativo da União.

Diante do poderio que a indústria do gás enseja e a natural tendência de verticalização do setor há de serem feitos questionamentos em face do Direito Econômico. O melhor planejamento da atividade econômica com a normatização das condutas, de forma a garantir o investimento privado e a segurança jurídica necessária aos players envolvidos impõe aos entes federados a necessidade de se incentivar a iniciativa particular (CF/88, art. 174, caput), com o intento de se garantir a livre iniciativa e a propriedade privada (CF/88, art 170 caput e inciso II, respectivamente).

Neste diapasão, a norma maior instituiu competência concorrente à União, aos Estados Membros e ao Distrito Federal para legislarem sobre direito econômico (CF/88, art. 24, inciso I) [7]. Far-se-á necessário a cooperação entre os entes federados para se incentivar os fortes investimentos ao setor, bem como as parcerias entre os agentes públicos e privados.

Atrair e induzir investimentos é condição essencial para a ampliação da infra-estrutura da vasta indústria que se pretende instalar no País, razão pela qual a competência concorrente é instrumento para se atender o interesse nacional sem se desprezar as particularidades regionais.

O atuar dos grandes players da indústria gasífera enseja repercussões a toda sociedade e aos demais particulares envolvidos razão pela qual se faz imperioso o poder central assumir uma postura reguladora em detrimento de condutas absenteísta ou intervencionista dos superados modelos estatais. No intuito de melhor gerir a concorrência, princípio basilar da vigente ordem econômica, a Constituição Federal estabelece como competência da União a reprimenda ao abuso de poder econômico (a ser feita por Lei) que vise à dominação dos mercados, à eliminação da concorrência e ao aumento arbitrário dos lucros (CF/88, art. 173, §4º). Tem-se, no presente momento, o entendimento de que compete aos entes estatais a competência para legislarem sobre a defesa da concorrência nas atividades de distribuição de gás canalizado, atração feita pela inteligência dos §1º e §2º do artigo 25 da Carta Maior. A regulação em matéria de concorrência do setor de distribuição é feita, normalmente, por intermédio das agências estaduais.

Se o princípio da predominância do interesse não é suficiente para dar ensejo à competência legislativa municipal em matéria de serviços locais de gás canalizado entendemos que pode, e deve, servir para firmar a competência em sede de Direito da Concorrência para as demais atividades da indústria gasífera que não se encontrem sobre a égide do ente federal.

Quanto a matéria ambiental, cumpre afirmar que apenas com o advento da Constituição de 1988 é que normas desta natureza passaram a constar em sede constitucional. O meio ambiente é bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações (CF/88, art. 225, caput). O tema ganha importância diante das atividades intrínsecas ao desenvolvimento da indústria do gás natural serem potencialmente causadoras de significativa degradação ao meio ambiente. Neste sentido, o legislador constituinte originário conferiu competência concorrente à União, aos Estados e ao Distrito Federal para legislarem sobre a matéria, havendo a possibilidade do ente municipal atuar quando presente o interesse local. Assim, tem-se a necessária atuação dos diversos entes federados com o intuito de tutelar, pela via legislativa, o referido bem jurídico. Paulo Afonso Leme Machado, leciona sobre o regime de competência traçado em sede constitucional, verbis:

Interessa apontar que as competências ambientais são repartidas entre a União e os estados. Os estados têm competência sem que se precise provar que o assunto tem interesse estadual e/ou regional. Diferentemente, na questão ambiental os municípios precisam articular sua competência suplementar (art. 30, II, da CF) – onde essa suplementariedade é "no que couber" – com o inc. I do artigo citado, onde se aponta a competência natural dos municípios – "legislar sobre assuntos de interesse local". Os estados só encontrarão barreira para legislar em matéria ambiental, quando existir ou vier a existir norma geral federal, quando deverão procurar articular suas legislações com as legislações privativas da União. (MACHADO, 1996)

Assim, não tem os Municípios competência ambiental para editarem normas gerais, cabendo-lhes a missão de legislarem quando presente o interesse local, bem com de suplementarem as legislações federal e estadual. Heraldo Garcia Vitta leciona que na omissão legislativa das entidades políticas competentes, sendo a preservação do meio ambiente um dever de todos e do poder público, detém o Município competência legislativa ambiental, podendo, portanto, editar normas (no estrito campo do interesse local), quando quedarem-se inertes os demais entes federados.

Pelo que podemos perceber, o Município, com a atual Carta Política, ganha posição de destaque no quadro de repartição de competências. Tendo em vista que a referida distribuição de poder legisferante poderá também normatizar o mercado e a indústria do gás natural, necessário tecermos maiores considerações a título de nossas conclusões.

A competência legislativa municipal encontra-se especificada no art. 30, incisos I e II da Constituição Federal. Percebe-se que o texto constitucional não conferiu poderes expressos para o Município legislar sobre assuntos atinentes ao gás natural; qualquer produção de normas nesse sentido há de ser feita por meio de hermenêutica jurídica, com fundamento nos citados incisos. O inciso I trata da competência legislativa municipal exclusiva para legislar sobre assuntos de interesse local. Sendo competência exclusiva, veda-se aos demais entes o poder para legislarem sobre quaisquer assuntos que seja de interesse predominantemente municipal. Embora a dicção "interesse local" utilizada pela Constituição Cidadã possa levar a ambigüidades e imprecisões, a interpretação que ganha espaço é a que correlaciona o interesse protegido com o que seja peculiar, particular, específico, atingindo direta ou indiretamente a comunidade municipal. Não há de se falar que o interesse local seja um interesse exclusivo da base territorial municipal, visto a possibilidade do mesmo extrapolar para demais localidades; deve, em síntese, estar afeto aos cidadãos da localidade.

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Quanto ao inciso II do artigo 30 da Constituição, faculta-se ao ente municipal suplementar a legislação federal e a estadual no que couber. Só podem os Municípios legislarem com base neste inciso quando presente a competência concorrente aos demais entes federados, ou seja, tratando-se de competência exclusiva ou privativa, não há de se falar em competência suplementar municipal. Deve-se ressaltar que, a referida atividade legisferante sempre há de ser feita para atender às necessidades peculiares. O inciso II, do artigo 30 há de ser sempre interpretado sistematicamente com o inciso I já referido. Portanto, existe uma abertura de espaço para o Município editar normas gerais em face da inexistência de Leis federais ou estaduais, ou então, caso as mesmas tenham sido editadas, detalhá-las, quando sua aplicação não atender as peculiaridades intrínsecas à municipalidade.

Embora a temática energia encontre-se centralizada em mãos do ente federal, pelo que foi exposto, percebe-se que os demais entes federados detém competências para legislarem sobre assuntos outros que também importam para a atividade da indústria gasífera. Cada vez mais que o poder flui do pólo central para os extremos, ocorre o retorno do mesmo para o povo, permitindo-se atender aos anseios dos cidadãos. Assim, a democracia reforça-se, sendo dado mais um passo em prol do Estado Democrático de Direito. É de competência dos entes federados, portanto, tornarem realidade o plano estipulado pela Constituição Cidadã; com o advento da Lei que regule o mercado e a indústria do gás natural no Brasil poderemos encontrarmos-nos mais perto de tamanha meta.


Referências

FERREIRA, Pinto. Curso de Direito Constitucional.2. ed. São Paulo : Saraiva, 2001.

MACHADO, Paulo Afonso Leme. Direito Ambiental Brasileiro. 6. ed. São Paulo : Malheiros Editores, 1996.

MAGALHÃES, José Luiz Quadros de. O território do Estado no Direito Comparado: novas reflexões. In. Jus Navigandi: http://jus.com.br/revista/doutrina/texto.asp?id=3156, 05 de abril de 2004.

MENEZELLO, Maria D´ Assunção Costa. Comentários á Lei do Petróleo: Lei Federal nº 9.478, de 06-08-1997. São Paulo : Atlas, 2000.

MIRANDA, Jorge. Teoria do Estado e da Constituição. Rio de Janeiro : Forense, 2003.

MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 10. ed. São Paulo : Editora Atlas S. A., 2001.

NETO, Antonio Jose de Mattos. Competência Legislativa Municipal sobre Meio Ambiente. Revista de Direito Ambiental. São Paulo, n. 14, p. 120 – 133, abr. / jun. 1999.

SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional. 21. ed. São Paulo : Malheiros Editores, 2002.

VITTA, Heraldo Garcia. Da Divisão de Competências das Pessoas Políticas e o Meio Ambiente. Revista de Direito Ambiental. São Paulo, n. 10, p. 93 – 101, abr. / jun. 1998.


Notas

1 Nomeclatura conforme Maria D´ Assunção Costa Menezello.

2 Percebe-se o Estado Unitário desconcentrado quando se tem uma divisão do território em regiões, e, caso necessário, a divisão destas em sub-regiões (províncias ou departamentos). Em cada uma dessas divisões territoriais haverá uma representante do poder central que serve unicamente para aproximar aquele da população local, ou seja, não detém poder decisório, nem personalidade jurídica própria. O Estado Unitário descentralizado, ao seu turno, caracteriza-se pela presença de personalidade jurídica própria dos entes criados, bem como a atribuição de competências administrativas aos mesmos, impedindo-se a ingerência de terceiros e do próprio poder central nas matérias que lhe sejam afetas.

3 Cumpre afirmar que, a contrário senso, não são em todos os casos que o fator território prepondera sobre os demais para a determinação da forma de Estado. Observa-se na história, que países, apesar do vasto território que possuem, adotaram a forma Unitária, como, por exemplo, a China em 1982, notadamente pelo regime político imposto pelo governo Central.

4 Não se deve afastar a hipótese de Países que optaram por serem governados pelo julgo de um poder central com o intuito de se garantir a soberania nacional, apesar das diferenciações e peculiaridades que se apresentam ao longo de seu território.

5 As técnicas tradicionais, segundo José Afonso da Silva, consistem: a) na enumeração dos poderes da União, reservando-se aos Estados os poderes remanescentes; b) na atribuição dos poderes enumerados aos Estados e dos remanescentes à União e c) na enumeração exaustiva das competências das entidades federadas.

6 Cumpre informar que as análises feitas não abarcam as competências legislativas atinentes ao Distrito Federal, visto a competência deste ente ser obtida pelo somatório de competências atribuídas para os Estados federados e os Municípios.

7 Há de ser inserida aqui todas as considerações já referidas acerca do regime de competência concorrente estabelecida pela Constituição Federal de 1988.

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Sobre o autor
Rafael Silva Paes Pires Galvão

Bacharel do curso de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Norte; aluno bolsista do Programa de Recursos Humanos da ANP – PRH-36

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GALVÃO, Rafael Silva Paes Pires. Competência legislativa dos entes federados atinente ao gás natural. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 540, 29 dez. 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/6139. Acesso em: 19 abr. 2024.

Mais informações

Esta monografia foi elaborada sob a orientação do professor Otacílio dos Santos Silveira Neto (mestre em Direito Econômico pela UFPB, advogado, professor da UFRN, pesquisador visitante da ANP).

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