No final do mês de setembro deste ano, a presença de crianças em uma performance protagonizada por um homem nu deu início a uma grande polêmica nas redes sociais. Fotos e vídeos registrados no Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM) mostraram uma garotinha tocando as mãos e os pés de um artista, que estava nu e deitado imóvel no chão. Em outra imagem que circulou na Internet, quatro meninas apareciam de mãos dadas com o artista. As críticas se multiplicaram e a direção do museu se apressou em dizer que as crianças estavam acompanhadas dos pais e que a apresentação aconteceu uma única vez e que não seria repetida[1].
A direção do museu errou ao não ter evitado a entrada de crianças na sala onde estava sendo realizada esse tipo de apresentação artística. Embora a performance pudesse não ter qualquer conteúdo ou inspiração erótica, uma criança pode não compreender ou discernir adequadamente sobre sua natureza. A criança, como pessoa humana em processo de desenvolvimento, tem direito à informação e à cultura, bem como acesso a espetáculos artísticos, desde que se respeite sua condição peculiar (art. 71 do ECA).
O que me impressionou, no entanto, foi a contrarreação a essa indignação inicial das pessoas ao contato das crianças com a performance perpetrada pelo homem nu. Algumas vozes alardearam que se estava fazendo uma “censura” à arte. Ora, ninguém quis proibir ou recriminou a performance do homem nu em si, apenas o seu contato com crianças se entendeu inapropriado.
Guardadas as devidas proporções, fenômeno semelhante aconteceu em relação a um ponto da “Reforma Eleitoral”. No Projeto de Lei da Câmara n° 110, de 2017, que modifica a Lei 9.504/1997 (Lei Eleitoral) no artigo 57-B, havia sido incluído um parágrafo (§ 6º.) que atribuía aos provedores de serviços na Internet a obrigação de suspensão de conteúdo ofensivo falso ou que incitasse o ódio contra candidato, partido ou coligação. De logo, vozes se levantaram e passaram a bradar que a medida legislativa instituía a censura na Internet. Mesmo setores da imprensa tradicional ecoaram esse discurso[2]. A ANJ (Associação Nacional de Jornais), a ABERT (Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão), a ANER (Associação Nacional de Editores de Revistas) e a ABI (Associação Brasileira de Imprensa) se pronunciaram contra a medida. O Comitê Gestor da Internet (o CGI.br) também publicou nota, pedindo o veto do dispositivo, o que terminou ocorrendo.
Acredito que a reação foi exagerada e num tom alarmista. Chegaram a pronunciar que “o Brasil não vive o fantasma de práticas tão explícitas de censura desde o fim da ditadura militar”[3] e que a medida legislativa representava “grave ameaça ao regime democrático”[4]. A reação foi tanta e tão desmedida que até o deputado que havia proposto a medida, Dep. Áureo Ribeiro (SD-RJ), se assustou e ele mesmo solicitou ao Presidente Temer que vetasse o artigo atacado[5].
Realmente, houve uma dose de exagero. Os órgãos tradicionais da imprensa brasileira ficaram preocupados sem razão com uma certa “insegurança jurídica” na redação do dispositivo, mas o fato é que o artigo de lei vetado não se dirigia a eles de nenhuma maneira, pois só teria aplicação limitada a redes sociais e sites e aplicativos que oferecem sistemas e plataformas para publicação de conteúdo informacional pelos usuários, sem qualquer tipo de controle editorial prévio. A regra visava a permitir que, uma vez notificados, esses sites e aplicativos retirassem, no prazo de 24 horas, conteúdo informacional ofensivo de caráter falso ou que incitasse o ódio, apenas para verificação da identidade do usuário que fez a postagem do material informacional dessa natureza. Tinha espectro limitado à propaganda eleitoral na Internet, que já é regulada por lei (Lei n. 9.504/97), alcançando, portanto, somente candidatos e partidos devidamente registrados e durante período certo.
Para se constatar o seu alcance, observe-se a redação do dispositivo vetado:
“Art. 57-B. A propaganda eleitoral na internet poderá ser realizada nas seguintes formas:
§ 6º A denúncia de discurso de ódio, disseminação de informações falsas ou ofensa em desfavor de partido, coligação, candidato ou de habilitado conforme o art. 5o C, feito pelo usuário de aplicativo ou rede social na Internet, por meio do canal disponibilizado para esse fim no próprio provedor, implicará a suspensão, em no máximo vinte e quatro horas, da publicação denunciada até que o provedor certifique-se da identificação pessoal do usuário que a publicou, sem fornecimento de qualquer dado do denunciado ao denunciante, salvo por ordem judicial”;
Como se pode notar, a regra se dirigia apenas aos sites e aplicativos que permitem a publicação instantânea pelos usuários de conteúdo informacional. São essas plataformas e redes sociais que oferecem mecanismos de publicação por qualquer pessoa e que não fazem a checagem de modo efetivo da identidade dos utentes de seus serviços on line. Isso é perigoso e precisa de regulamentação apropriada porque permite que qualquer pessoa, escondendo sua identidade real, possa se utilizar desses sistemas informáticos para difamar outros indivíduos e cometer crimes. O dispositivo vetado (§ 6º. do art. 57-B) nem sequer determinava a remoção pura e simples de conteúdo, mas tão-somente a suspensão “da publicação denunciada até que o provedor certifique-se da identificação pessoal do usuário que a publicou”. Ou seja, não se estava criando um sistema de “notice and takedown”[6], mas apenas uma suspensão temporária para fins de checagem da identidade do intermediário da comunicação informática (usuário da plataforma) responsável pela inserção da notícia ou informação denunciada como ofensiva ou odiosa. Uma vez o provedor se certificando que a informação não havia sido postada por nenhuma espécie de “troll”[7], ele poderia com toda a segurança retorná-la, para o mesmo local e endereço originalmente posta. A eliminação da publicação só seria adotada em caso de não comprovação da identidade da pessoa que a realizou.
Nessas circunstâncias, não me pareceu que a proposta legislativa tivesse qualquer caráter de “censura”; muito pelo contrário, era de espectro bastante limitado e nem sequer impunha qualquer tipo de remoção de conteúdo, frise-se. Tudo indica que a intenção era combater a disseminação do chamado “discurso do ódio” (hate speech) e sobretudo a difusão de informação falsa na rede mundial de comunicação, em redes sociais e blogs de discussão, durante o período da propaganda eleitoral[8]. Na verdade, o se pretendia não era estabelecer uma espécie de “filtro” à livre disseminação de ideias e informações, mas tão-somente impedir a utilização de identidade falsa na rede com o objetivo de influir no processo eleitoral. É sempre bom lembrar que nossa Constituição impôs limites à liberdade de expressão, ao vedar o anonimato (art. 5º., IV).
O problema com as fake news, espalhadas comumente em redes sociais e outras plataformas de difusão de conteúdo produzido livremente, é um assunto que gera preocupação de todos os governos de países desenvolvidos, que buscam também formas de combater a incitação ao ódio, propaganda de terrorismo, propaganda extremista de cunho racial (como neo-nazismo), disseminação de pornografia infantil, entre outros males. Diferentemente de anos atrás, ganha corpo o sentimento de que os provedores têm que atuar de forma ativa na remoção desse tipo de conteúdo. Sobretudo a partir do início deste ano, deputados do parlamento da União Europeia convergem no sentido que se deve impor multas aos provedores quando não tomem providências na remoção de material visivelmente ilícito[9]. Durante muitos anos se observou uma espécie de “laissez-faire” regulatório, mas agora as autoridades de diversos países clamam por um esforço de atualização da legislação, para fazer face ao problema dos conteúdos ilegais. A Alemanha já aprovou lei que permite multar as plataformas da Internet que não retirarem conteúdo de hate speech em 24 horas[10]. A União Européia caminha no mesmo sentido, tendo sugerido a aprovação de legislação semelhante em todos os países integrantes do bloco[11].
Tem-se em mente que o princípio da liberdade de expressão e o direito à informação continua como pedra de toque dos sistemas democráticos e a Internet deve manter sua característica de uma rede aberta e descentralizada, mas que se deve buscar um equilíbrio e proporcionalidade na preservação de outros direitos e garantias de proteção da personalidade humana. Os provedores de serviços e controladores de “plataformas” na Internet devem ser obrigados a construir sistemas mais bem adaptados para remover material visivelmente ilícito, a exemplo de propaganda terrorista, abuso sexual de crianças, discurso do ódio e coisas do gênero.
Se tivesse sido aprovada a emenda do Dep. Áureo Ribeiro, no futuro poderíamos evitar aqui no Brasil problema de interferência no processo eleitoral semelhante ao que aconteceu nos Estados Unidos. Como se sabe, russos criaram contas falsas no Google, Facebook e Twitter e, por meio delas, publicaram notícias falsas e compraram publicidade, para influenciar as eleições norte-americanas do ano passado[12].
Por isso tudo, minha estranheza diante de tão acirrado movimento contra a proposta de inserção do § 6º. no art. 57-B da Lei 9.504/1997. É certo que a emenda do Dep. Áureo Ribeiro foi feita de última hora, sem permitir um maior amadurecimento da proposta, o que gerou desconfiança sobre ela. Teria sido muito mais produtivo se tivesse sido feita com bastante antecedência, para permitir debate mais aprofundado e racional, com todos os esclarecimentos à sociedade. Mas mesmo assim, a reação contra ela foi demasiadamente exagerada.
Em outubro do próximo ano teremos eleições gerais no Brasil, incluindo a de Presidente da República. Vamos torcer para que o pleito não perca sua legitimidade, tornando-se uma guerra de “manipulação eleitoral digital”, travada entre trolls e hackers com as armas da comunicação falsa (fake news).
Notas
[1] Ver notícia publicada no Correio Braziliense, em 29.09.17, acessível em: http://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/brasil/2017/09/29/internas_polbraeco,630101/interacao-de-criancas-com-homem-nu-no-mam-em-sao-paulo-gera-polemica.shtml
[2] A Folha de São Paulo publicou uma matéria correta, destacando trechos do texto legal e dos pontos de vista a favor e contra. Mas o título da reportagem, no entanto, já era preconceituoso contra o projeto de lei, pois falava em “censura” de conteúdo. Ver a matéria, publicada sob o título “Reforma política permite censura de conteúdo mesmo sem ordem judicial”, em 05.10.17, acessível em: https://www1.folha.uol.com.br/poder/2017/10/1924626-emenda-em-reforma-politica-obriga-suspensao-de-publicacao-apos-denuncia.shtml
[3] Ver notícia publicada em: https://porta23.blogosfera.uol.com.br/2017/10/06/comite-gestor-recomenda-veto-ao-artigo-da-lei-eleitoral-que-censura-a-rede/?cmpid=copiaecola
[4] Ver a matéria, publicada sob o título “Reforma política permite censura de conteúdo mesmo sem ordem judicial”, em 05.10.17, acessível em: https://www1.folha.uol.com.br/poder/2017/10/1924626-emenda-em-reforma-politica-obriga-suspensao-de-publicacao-apos-denuncia.shtml.
[5] Ver notícia publicada no site da Agência Brasil, em 06.10.17, acessível em: http://agenciabrasil.ebc.com.br/politica/noticia/2017-10/temer-sanciona-fundo-eleitoral-mas-veta-censura-na-internet-e-limite-de
[6] “Notice and takedown” quer significar que o provedor de serviços na Internet não será responsabilizado pela publicação do conteúdo se, uma vez notificado pelo legítimo autor, removê-lo imediatamente.
[7] Um troll, na gíria da internet, designa uma pessoa cujo comportamento tende sistematicamente a desestabilizar uma discussão e a provocar e enfurecer as pessoas nela envolvidas. A intenção é provocar emocionalmente os membros de uma comunidade através de mensagens controversas ou discriminatórias. Com isso, ele consegue interromper uma discussão sadia e causa conflitos entre os participantes, fazendo com que o objetivo principal do tópico saia de foco. O troll atua em lugares onde existe uma grande concentração de pessoas envolvidas em algum debate potencialmente polêmico. Ele age em comunidades do Facebook, listas de discussão, fóruns, blogs e chats. Ele atua com perfis falsos (fakes) e percorre a rede semeando a discórdia dentro das comunidades.
[8] Essa de fato era a intenção do DeputadoÁureo Ribeiro, pois em reportagem da Folha de São Paulo, ele disse, referindo-se à emenda de sua autoria: “o trecho obrigará que redes sociais, como o Facebook, por exemplo, façam uma verificação sobre a autoria de comentários feitos nas redes de candidatos”. Ele argumentava que trechos caluniosos seriam submetidos à análise da rede social, que teria um prazo de 24 horas para verificar se o perfil é verdadeiro ou falso. A eliminação das postagens, segundo ele, só ocorreria se não ficasse provada a autenticidade do autor. “É um crime fazer comentários com perfis falsos. Isso pode mudar o resultado de uma eleição. A diferença é que queremos agilidade, porque se ficar comprovado que o autor não é verdadeiro, aí já passou o resultado das eleições”, disse o Deputado.
[9] Ver notícia publicada no jornal inglês “The Guardian”, em 01.05.17, acessível em: https://www.theguardian.com/media/2017/may/01/social-media-firms-should-be-fined-for-extremist-content-say-mps-google-youtube-facebook?CMP=share_btn_fb
[10] Ver notícia publicada no jornal inglês “The Independent”, em 20.12.16, acessível em: http://www.independent.co.uk/news/world/europe/facebook-fake-news-article-fine-germany-fake-news-article-thomas-oppermann-sdp-chairman-a7484166.html
[11] Ver notícia publicada em 28.09.17, acessível em: http://www.euractiv.com/section/freedom-of-thought/news/tougher-eu-hate-speech-guidelines-urge-tech-giants-to-prevent-digital-wild-west/
[12] Ver notícia publicada em 10.10.17, acessível em: https://eco.pt/2017/10/10/google-facebook-e-twitter-alvos-de-anuncios-russos-para-influenciar-eleicoes-norte-americanas/