3. O poder de polícia
A palavra polícia, aplicada no âmbito do senso comum como sinônimo de segurança pública, deverá ser considerada com cuidado para os fins aqui pretendidos, tendo em vista as definições de polícia administrativa e polícia judiciária.
É de se lembrar, a “polícia judiciária”, no que tange ao seu caráter de polícia ostensiva, diz respeito à prevenção e à repressão a prática de infrações penais. Já a polícia judiciária propriamente dita, cuida da investigação de eventuais delitos e de sua autoria.
Por outro lado, a polícia administrativa “se manifesta por meio de atos preventivos ou repressivos para alcançar o seu mister, qual seja, adequar os direitos dos particulares ao interesse geral” (CARVALHO, 2017, p. 136).
Vale ressaltar, também, sobre o poder de polícia, a distinção relativa aos sentidos amplo e estrito. De acordo com José dos Santos Carvalho Filho:
“A expressão poder de polícia comporta dois sentidos, um amplo e um estrito. Em sentido amplo, poder de polícia significa toda e qualquer ação restritiva do Estado em relação aos direitos individuais. Sobreleva nesse enfoque a função do Poder Legislativo, incumbido da criação do ius novum, e isso porque apenas as leis, organicamente consideradas, podem delinear o perfil dos direitos, elastecendo ou reduzindo o seu conteúdo. É princípio constitucional o de que “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei” (art. 5º, II, CF). Em sentido estrito, o poder de polícia se configura como atividade administrativa, que consubstancia, como vimos, verdadeira prerrogativa conferida aos agentes da Administração, consistente no poder de restringir e condicionar a liberdade e a propriedade. É nesse sentido que foi definido por RIVERO, que deu a denominação de polícia administrativa. Aqui se trata, pois, de atividade tipicamente administrativa e, como tal, subjacente à lei, de forma que esta já preexiste quando os administradores impõem a disciplina e as restrições aos direitos. É nesse sentido que nos concentraremos, porque o tema é inerente ao Direito Administrativo” (CARVALHO FILHO, 2017, p. 83).
Isso porque o conceito de poder polícia, como fomentamos no primeiro ponto, agrega a expressão de atos normativos e o condicionamento da propriedade e liberdade dos indivíduos.
Em conformidade com a alegação, Matheus Carvalho aduziu:
“A definição do Poder de Polícia tem base legal e doutrinária ricas. Para conceituar Poder de Polícia ficaremos com as palavras de Fernanda Marinela "uma atividade da Administração Pública que se expressa por meio de seus atos normativos ou concretos, com fundamento na supremacia geral e, na forma da lei, de condicionar a liberdade e a propriedade dos indivíduos mediante ações fiscalizadoras, preventivas e repressivas”” (CARVALHO, 2017, p. 135).
Nesse quadrante, a atividade administrativa concernente ao poder de polícia deverá ocorrer nos estritos limites normativos, tanto em sentido amplo como em sentido estrito, pois imporá ao indivíduo comportamentos positivos e negativos.
A título de exemplo de comportamento positivo, o poder de polícia impõe ao indivíduo que preste exame a fim de obter licenciamento para dirigir veículos automotores, ou seja, a Carteira Nacional de Habilitação.
Reforçando o que se alegou, porém, frisando a possibilidade de ocorrência do abuso e do desvio de poder, pode-se afirmar: “[...] o excesso de poder é a forma de abuso da própria atuação do agente e já o desvio de poder é a modalidade de abuso em que o agente busca alcançar fim diverso daquele que a lei lhe permitiu” (CARVALHO FILHO, 2012, p. 48).
Sem sombra de dúvidas, tanto o abuso de poder quando o desvio, deverão sofrer sanções. É preciso frisar, nesse foco, o princípio da proporcionalidade, já que “[...] não se pode conceber que a coerção seja utilizada indevidamente pelos agentes administrativos, o que ocorreria, por exemplo, se usada onde não houvesse necessidade” (CARVALHO FILHO, 2017, p. 91). Ademais:
“Em virtude disso, tem a doutrina moderna mais autorizada erigido à categoria de princípio necessário à legitimidade do ato de polícia a existência de uma linha proporcional entre os meios e os fins da atividade administrativa. Como bem observa CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO, é preciso que a Administração tenha cautela na sua atuação, “nunca se servindo de meios mais enérgicos que os necessários à obtenção do resultado pretendido pela lei”. [...] Não havendo proporcionalidade entre a medida adotada e o fim a que se destina, incorrerá a autoridade administrativa em abuso de poder e ensejará a invalidação da medida na via judicial, inclusive através de mandado de segurança” (CARVALHO FILHO, 2017, p. 91).
Por fim, cumpre apontar, a competência para exercer o poder de polícia é, em princípio, da pessoa federativa a qual a Carta Magna conferiu o poder de regular a matéria, como Hely Lopes Meirelles, abordando o princípio da predominância do interesse, aludiu:
“[...] os assuntos de interesse nacional ficam sujeitos á regulamentação e policiamento da União; as matérias de interesse regional sujeitam-se ás normas e á polícia estadual; e os assuntos de interesse local subordinam-se aos regulamentos edilícios e ao policiamento administrativo municipal” (MEIRELLES, 2003, p. 109).
4. As manifestações de pensamento e seus limites
O Brasil foi marcado por protestos e manifestações num período um tanto quanto recente. Podem-se destacar como exemplos desses movimentos a busca por redução das tarifas de ônibus no estado de São Paulo e os gastos futebolísticos com a Copa das Confederações de 2013 e com a Copa do Mundo de 2014, ambas da Associação da Federação Internacional de Futebol – FIFA, realizadas no Brasil.
No evento de 2013, ocorrido em nosso país, com o auxílio das redes sociais, manifestações ocorreram por todo o Brasil, reunindo várias pessoas pelas ruas a protestarem por melhorias em diversos setores sociais.
Durante algumas delas, aconteceram, em muitas cidades, atos de vandalismo, dos quais resultou a destruição de patrimônio público e de alguns particulares. Algumas pessoas foram presas e a polícia, em variados momentos, agiu para se defender e conter alguns exaltados na multidão. Os protestos geraram grande repercussão nacional e internacional.
Ezequiel Fagundes detalha, em seu relato sobre as manifestações corridas em Belo Horizonte, durante a Copa das Confederações, que:
“Como um exemplo característico da manifestação, teve um inicio pacífico na Praça Sete e caminhada pela Avenida Antonio Carlos. O destino dos manifestantes era o Estádio Governador Magalhães Pinto (Mineirão), onde ocorreria um jogo da Copa das Confederações. A confusão teve início quando os manifestantes chegaram à Avenida Abrahão Carãm, próximo ao Mineirão, onde foi realizado jogo entre Japão e México. Durante o tumulto, os manifestantes queriam ultrapassar o perímetro de segurança do Mineirão, para atingir uma concessionária que fica no local. Integrantes da cavalaria, tropa de choque e de outras unidades da Policia Militar, além de homens da Força Nacional de Segurança Pública, usaram bombas de efeito moral, gás lacrimogêneo, disparos de balas de borracha para dispersar os manifestantes, enquanto atacavam a polícia com rojões, pedras, bombas caseiras e coquetéis molotov” (FAGUNDES, 2013, p. 1).
Postas essas considerações, levando-se em consideração que as manifestações pacíficas têm fundamentos válidos e são constitucionalmente asseguradas, como visto, poderia a polícia impedir esse tipo de manifestação contrária, como se percebe, aos interesses dos governos (municipal, estadual e federal)?
Inicialmente, a resposta é não, pois, a polícia, na verdade, deveria se fazer presente única e exclusivamente a fim de manter a segurança da população que resolveu se manifestar pacificamente. É bom que se tenha em mente, qualquer intervenção em manifestações pacíficas importa em abuso, por parte da autoridade, passível de punição.
Cabe a esta mesma polícia, porém, conter aqueles que se misturam às massas populares com a única finalidade de praticar ilícitos penais e civis, maculando, assim, um movimento perfeitamente legítimo e necessário, decorrente, também, do direito de reunião, previsto no inciso XVI do art. 5º da Carta da República:
[...] todos podem reunir-se pacificamente, sem armas, em locais abertos ao público, independentemente de autorização, desde que não frustrem outra reunião anteriormente convocada para o mesmo local, sendo apenas exigido prévio aviso à autoridade competente. (BRASIL, 2012, p. 22).
As autoridades (aqui incluídas as Policias Civil, Militar e Federal) devem, portanto, respeitar esses direitos fundamentais que, indevidamente violados, poderão fazer com que a autoridade infratora responda criminalmente pelo delito tipificado no art. 3º, alíneas a, h e i, da Lei nº 4.898, de 09 de Dezembro de 1965, segundo o qual: “Art. 3º Constitui abuso de autoridade qualquer atentado: a) à liberdade de locomoção; [...] h) ao direito de reunião; i) à incolumidade física do indivíduo” (BRASIL, 1965, p. 822).
Consideração finais
A título de considerações finais, cabe salientar a finalidade deste artigo é fazer algumas reflexões acerca do direito fundamental à manifestação de pensamento ou liberdade de expressão face ao poder de polícia.
Nesse diapasão, levando-se em consideração o caput do art. 1º da Constituição Federal, o qual assevera estarmos diante, no Brasil, normativamente dizendo, de um Estado Democrático de Direito, deve-se conceber que o pensamento é livre, no sentido de que cada um pode pensar e refletir sobre o assunto que quiser e ter a opinião que bem entender, podendo, inclusive, manifestá-los, desde que não seja de forma anônima.
A vedação ao anonimato encontra-se prevista, já que se a pessoa é livre para expressar o pensamento, deverá assumir as consequências e responsabilidades de sua manifestação.
Como na vida privada cada qual tem o direito de dizer e fazer o que bem entender, salvo quando isto representar ofensa ou ameaça a direito alheio, a exteriorização do pensamento encontra-se suscetível de ferir os direitos de outrem, assegurando-se a responsabilização daquele que assim agir, nos exatos moldes de suas ações.
As manifestações aqui mencionadas são legítimas reivindicações de mudanças sociais e jurídicas, com vistas a se obter transformações políticas no país, correlatas ao aperfeiçoamento dos serviços públicos em geral e a racionalização de gastos. Se apresentam, logo, como um basta em alto e bom tom, verdadeiro grito de indignação.
Necessário lembrar, a liberdade do direito de se manifestar e expor suas ideias encontra limites no próprio texto constitucional, sobretudo quando há fundada ameaça de lesão a direitos fundamentais de terceiros, devendo imperar dentro dos limites da civilidade e da legalidade. Sempre que houver incitação à violência ou ofensas gratuitas a pessoas, grupos ou instituições, o poder de polícia se fará valer cessando, assim, esses abusos.
Isso porque o poder de polícia compreende a atividade estatal que limita o exercício dos direitos individuais em nome do interesse e da segurança públicas. Em suma, o interesse público é que fundamenta o poder da polícia. Este, sem aquele, seria o arbítrio, verdadeira ação policial divorciada do Estado de direito.
É uma prerrogativa do Estado estabelecida com o intuito de preservar o bem comum, conjunto de valores insculpidos em normas jurídicas que mantém a sociedade em ordem. Portanto, em cada caso concreto, deve-se analisar em que medida o poder de polícia é utilizado legitimamente e, por outro lado, apto a ultrajar direitos dos cidadãos.
É de se ressaltar, a sociedade deve ir além e exercer efetivamente seu poder através de maior fiscalização dos gastos e buscar punição severa para aqueles que comentem atos de improbidade administrativa. É importante para a consecução da paz, da democracia, da segurança, da legalidade e da liberdade, que os agentes públicos e a sociedade civil compreendam não serem inimigos, mas componentes da sociedade, ambos com direitos e deveres.
Os direitos aqui trabalhados, seja do civil ou do agente público, são elementos importantes quando se pensa na convivência social, devendo-os ser usufruídos nos estritos limites da ordem jurídica, para o bem de todos e de cada um.
Para finalizar este texto e sugerir novos trabalhos, a fim de se discutir os limites da liberdade de manifestação de pensamento na ordem jurídica, citemos caso muito polêmico que protagonizou debates, por todo o país.
Fazemos referência ao fato ocorrido no Museu de Arte Moderna – MAM de São Paulo, no qual crianças, aparentando dentre 5 e 10 anos de idade, interagiram com um homem completamente nu, havendo, até mesmo, uma delas, de aproximadamente 5 anos de idade, acompanhada e, talvez incentivada pela mãe, em virtude das imagens e vídeos postados na mídia, tocado os pés deste, que estava imóvel e deitado sobre o chão.
O registro abriu espaço para se discutir em que medida referida interação encontra-se amparada pelos direitos aqui trabalhados ou, em contrapartida, violaria a ordem jurídica.
Argumentou-se, por um lado, que o MAM sinalizou a sala onde o evento ocorria, acerca do conteúdo da apresentação como contendo nu artístico sob a temática panorama da arte brasileira.
De outro, é preciso pensar se as normas constitucionais e legais protetivas à criança e promotoras de seu pleno e sadio desenvolvimento possibilitam e recomendam ações dessa natureza.
Em outras palavras, conforme desenvolvemos anteriormente, a difusão de ideias tem importâncias individual e coletiva.
Individual no sentido de que aquele a expressar tem a oportunidade de passar a outrem, seus posicionamentos, e, eventualmente, ensinamentos.
Coletiva pelo fato de que a diversidade de conhecimentos poderá contribuir para o bom entendimento das relações, para o crescimento grupal e para o reconhecimento do outro como componente social construtor. É preciso avaliar, contudo, se a assertiva se fez presente na hipótese. Pretendemos escrever sobre assunto futuramente.
Referências
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Nota
[1] Sobre o Estado Democrático de Direito, desenvolvemos o raciocínio em: DUARTE, Hugo Garcez. A felicidade no Estado Democrático de Direito. In: Âmbito Jurídico, Rio Grande, XX, n. 159, abr 2017