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A transparência na gestão fiscal

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Com a edição, em maio de 2000, da Lei Complementar nº 101/00 – intitulada de Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) – o Brasil passou a experimentar um novo regime de administração dos recursos públicos, denominado de Gestão Fiscal Responsável, que está assentado em três pilares: o planejamento, a transparência e o controle das contas públicas.

Como instrumento para se chegar ao equilíbrio das contas públicas, que na realidade foi o grande mote da Lei de Responsabilidade Fiscal, o novo regime impõe o planejamento na gestão dos recursos públicos. Aliás, é incrível que neste País se tenha que publicar uma lei para exigir o planejamento na administração pública. Afinal, os idealizadores da Escola Científica da Administração -Taylor e Fayol -, no Século XIX, já apregoavam o planejamento como etapa primeira e necessária para uma boa administração.

Prescrever também, por via de lei, a transparência nas contas públicas é algo que deveria ser desnecessário. O dever de prestar contas de forma transparente é da própria natureza do ato de administrar recursos alheios. Por essa, e por outras razões, pode-se dizer que a LRF trata do óbvio.

O terceiro pilar é o controle das contas públicas, que deve ser efetuado em várias instâncias: pelo Tribunal de Contas, Ministério Público, Poder Legislativo, Controle Interno e pela sociedade organizada. Enfim, por todos os cidadãos e de forma contínua.

Ninguém, neste País, pode negar a origem alienígena da Lei de Responsabilidade Fiscal. Entretanto, não se pode colocar o pagamento da dívida externa e o controle das contas públicas em pólos antagônicos. Ressalte-se, inclusive, que as questões a serem resolvidas com os credores internacionais do Brasil devem ser tratadas no âmbito da Política Econômica e do Direito Internacional e não do Direito Financeiro.

Em se tratando de controle social da administração pública, é no Texto Constitucional que se encontram seus fundamentos. São vários os dispositivos espraiados na Constituição Federal que fomentam a iniciativa popular. Logo no caput do art. 1º, o exercício da cidadania é apontado como uma das bases do Estado Democrático de Direito que constitui a República Federativa do Brasil. O parágrafo único desse artigo expressa que todo poder emana do povo, que o exerce diretamente ou por meio de representantes eleitos.

Além disso, consta que a soberania popular será exercida mediante iniciativa popular (art. 14, III). No âmbito municipal, é possível a iniciativa popular de projetos de lei de interesse específico do Município, da cidade ou de bairros, através de manifestação de, pelo menos, cinco por cento do eleitorado (art. 29, XIII). O princípio da publicidade é fixado como elemento da administração pública brasileira. Ficaram também consagrados os direitos de petição contra ilegalidade ou abuso de poder (art. 5º, XXXIV), o direito de receber dos órgãos públicos informações de interesse particular, ou de interesse coletivo ou geral (art. 5º, XXXIV, a). Determina o § 3º do art. 31 que as contas dos Municípios ficarão 60 (sessenta) dias, anualmente, à disposição de qualquer contribuinte, para exame e apreciação, o qual poderá questionar-lhes a legitimidade. É facultado a qualquer cidadão o direito de denunciar irregularidades ou ilegalidades perante o Tribunal de Contas (art. 74, § 2º), bem como propor ação popular que vise a anular ato lesivo ao patrimônio público (art. 5º, inciso LXXIII).

No plano infraconstitucional, o Estatuto das Cidades (Lei nº 10.257/01), art. 4º, III, f, fixa a gestão orçamentária participativa como instrumento da política urbana.

Não foi à toa que o controle social da administração pública mereceu as bênçãos do Papa João Paulo II. Apregoa o Sumo Pontífice que "a Igreja encara com simpatia o sistema da democracia, enquanto assegura a participação dos cidadãos nas opções políticas e garante aos governados a possibilidade quer de escolher e controlar os próprios governantes, quer de os substituir pacificamente, quando tal se torne oportuno" (JOÃO PAULO II. Centesimus annus. 46. Internet: http://www.vatican.va/holy_father/john_paul_ii/encyclicals/documents/hf_jp-ii_enc_01051991_ centesimus-annus_po.html – 29/11/2004).

Pode-se dizer, enfim, que o controle do cidadão sobre os gastos públicos deriva do próprio Direito Natural. Ressalte-se que a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, art. 15, definiu que a sociedade tem o direito de pedir contas a todo agente público de sua administração.

Não obstante, o tema transparência fiscal só ganhou importância no País com a publicação na LRF. A Lei dedica a Seção I do Capítulo IX ao assunto (arts. 48 e 49) e já no art. 1º, § 1º, preceitua que a responsabilidade na gestão fiscal pressupõe a ação planejada e transparente em que se previnem riscos e corrigem desvios capazes de afetar o equilíbrio nas contas públicas.

Os instrumentos de transparência da gestão fiscal, aos quais deve ser dada ampla divulgação, inclusive em meios eletrônicos de acesso público (Internet), estão elencados no art. 48, caput: o plano plurianual, a lei de diretrizes orçamentárias, a lei orçamentária anual, as prestações de contas e o respectivo parecer prévio, o relatório resumido da execução orçamentária e o relatório de gestão fiscal.

O plano plurianual (PPA), aprovado formalmente através de lei editada no primeiro ano do mandato do Chefe do Executivo, consubstancia o planejamento de longo prazo elaborado pela administração pública para os investimentos a serem realizados nos próximos quatro anos. A lei de diretrizes orçamentárias (LDO), que tramita na Casa Legislativa no primeiro semestre de cada ano, tem a função de orientar a elaboração da lei orçamentária anual, dispondo sobre as metas e prioridades da administração pública e elegendo os investimentos que serão executados no exercício financeiro subseqüente. A lei orçamentária anual (LOA), que deve guardar conformidade com o PPA e com a LDO, tramita no Poder Legislativo no segundo semestre de cada ano, estima a receita e fixa a despesa para o ano seguinte. É o projeto orçamentário do Poder Público a ser executado no exercício financeiro vindouro. O relatório resumido da execução orçamentária, que por força da Constituição Federal, art. 165, § 3º, deve ser publicado até trinta dias após o encerramento de cada bimestre, representa um levantamento parcial do que já foi executado do projeto orçamentário para o ano em curso, ou seja, espelha as receitas arrecadadas e despesas incorridas até o bimestre a que se refere. O relatório de gestão fiscal, que deve ser publicado quadrimestralmente pelos titulares dos Poderes e órgãos públicos, é criação da LRF e serve de instrumento de controle dos limites de gastos, impostos pela mencionada lei, no que tange à despesa com pessoal, endividamento público e concessão de garantias.

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Um marco importante da LRF foi a institucionalização do chamado orçamento participativo. O parágrafo único do art. 48 dispõe que a transparência será assegurada mediante incentivo à participação popular e realização de audiências públicas, durante os processos de elaboração e de discussão do PPA, da LDO e da LOA. A Lei quer que tal experiência, praticada apenas em alguns municípios brasileiros, em face da ideologia do partido político à frente do Poder Executivo, se estenda a todos.

Se a participação popular na elaboração dos projetos orçamentários está albergada na nova ordem jurídica, a LRF vai além quando determina que até o final dos meses de maio, setembro e fevereiro, o Poder Executivo demonstrará e avaliará o cumprimento das metas de receita, despesa e montante da dívida pública de cada quadrimestre, em audiência pública na comissão de orçamento da Casa Legislativa (art. 9º, § 4º). É a possibilidade do acompanhamento direto pelo povo da execução do orçamento.

Quanto à indicação das prestações de contas e o respectivo parecer prévio como instrumento de transparência da gestão fiscal, dispõe a LRF que as contas apresentadas pelo Chefe do Poder Executivo ficarão disponíveis, durante todo o exercício, no respectivo Poder Legislativo e no órgão técnico responsável pela sua elaboração, para consulta e apreciação pelos cidadãos e instituições da sociedade (LRF, art. 49). Essa vontade da LRF vai ao encontro da Constituição Federal, art. 31, § 3º, acima mencionado.

Sabe-se que, na tramitação da LRF no Congresso Nacional, o aspecto mais difícil de ser negociado foi exatamente o que diz respeito à transparência fiscal. Se foi assim na concepção da lei, tem sido também dessa forma no seu cumprimento. Os gestores públicos resistem ao ter que obedecer ao art. 49 da LRF. Mas, por quê? Por que será que os gestores públicos, salvo exceções, insistem em esconder suas contas? Pode-se até ser romântico, mas não se precisa ser ingênuo a ponto de se olvidar o alto grau de corrupção que assola as administrações públicas brasileiras. Diz-se correntemente que, em matéria de gestão de recursos públicos, onde há segredo, há malversação. Mas também não se pode esquecer que há nesse processo uma forte barreira cultural a ser transposta. O gestor público brasileiro não está acostumado ao procedimento de expor suas contas, por isso administra sem estrutura adequada, com falta de planejamento e de organização.

É importante frisar que a defesa da prática da transparência fiscal se dá não do método pelo método, mas por se acreditar que funcionará como agente de transformação social. O Brasil convive com dois índices constrangedores. De um lado ocupa o 59º lugar no ranking de corrupção do ano de 2004, segundo a ONG Transparência Internacional. Ao mesmo tempo fica em 72º na lista do Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), elaborada, em 2004, pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD). Assim, cabe uma reflexão: a coexistência dessas duas realidades é mera coincidência? Ou será que existe correlação entre ambas?

No Maranhão, essa dura constatação está sensibilizando as instituições que devem atuar na fiscalização da aplicação dos recursos públicos. O Ministério Público Estadual e o Tribunal de Contas estão desenvolvendo uma ação conjunta com vistas a dar efetividade ao supracitado art. 49 da LRF. É o programa CONTAS NA MÃO, que é um trabalho educativo e preventivo, tendo como alvo a conscientização da coletividade de que é preciso uma maior aproximação dos cidadãos com a administração pública, através do exercício da transparência fiscal. Esse programa – que já mereceu adesões importantes, como a da Federação dos Municípios do Estado do Maranhão (FAMEM), do Conselho de Contabilidade, do Sindicato dos Contabilistas e do Sindicato da Empresas de Serviços Contábeis – está realizando seminários em vários municípios maranhenses. O programa promete, ainda, capacitar pessoas para o exame das contas públicas.

Acredita-se, enfim, que a transparência na gestão fiscal, caso se torne efetiva, será veículo capaz de revolucionar a administração pública brasileira, produzindo efeitos na melhoria da qualidade de vida do povo brasileiro.

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Sobre o autor
José de Ribamar Caldas Furtado

conselheiro do Tribunal de Contas do Estado do Maranhão, mestre em Direito pela UFPE, professor de Direito Administrativo, Financeiro e Tributário da UFMA, instrutor da Escola do Ministério Público do Maranhão

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FURTADO, José Ribamar Caldas. A transparência na gestão fiscal. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 555, 13 jan. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/6171. Acesso em: 26 abr. 2024.

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