Nos últimos meses, o Brasil vem mostrando um desempenho excepcional na atividade exportadora. Sabe-se, entretanto, que esse crescimento ainda não utiliza um imenso potencial presente em nossa economia: as microempresas e empresas de pequeno porte (ME&EPP). Estatísticas referentes a 2003 indicam que esse segmento representou 47,9% das unidades exportadoras brasileiras, porém suas vendas – 1.73 bilhões de dólares – corresponderam a apenas 2,37% do valor total das exportações [1]. Se considerarmos que esse último percentual pode alcançar 30% do valor total exportado, tal como ocorre em alguns países, poderemos estimar que o potencial exportador das ME&EPP é de 22 bilhões de dólares.
Um dos entraves ao pleno desenvolvimento das exportações por ME&EPP é a falta de mecanismos legais adequados para o associativismo entre as empresas. Empresas trabalhando em conjunto podem produzir em maior escala, especializar-se em etapas no processo produtivo, obter vantagens no acesso ao crédito e dividir os custos operacionais do processo de exportação [2] ou de desenvolvimento de tecnologia. Vários estudos estão em andamento tendo em vista criar uma figura jurídica que permita, de maneira simplificada, a associação de pequenas empresas. Uma das alternativas preferidas pelo segmento é a formação de "cooperativas de exportação". Dado o conhecimento do funcionamento das cooperativas entre pessoas físicas existentes hoje, seria mais fácil disseminar essa forma de associativismo entre pessoas jurídicas.
Vedação legal
A lei que regula o cooperativismo no Brasil (lei nº 5.764 de 1971) autoriza, em caráter excepcional, a participação de pessoas jurídicas em cooperativas. Essa "excepcionalidade" mencionada na lei afasta interpretações de que cooperativas possam ter entre seus associados uma parcela significativa de pessoas jurídicas (e, por suposto, impede que haja só pessoas jurídicas, como almejado aqui). Segundo consulta a servidores de outros órgãos do governo federal, especialistas no tema de cooperativismo, existe uma resolução do Conselho Nacional de Cooperativismo (CNC) que limita a participação das empresas em apenas 30% do número total de cooperativados [3].
Outra exigência presente na lei é que as empresas tenham por objeto social atividade econômica idêntica ou correlata àquela da cooperativa, como nos expõe o art. 6º, inciso I da referida lei: "As sociedades cooperativas são consideradas: singulares, as constituídas pelo número mínimo de 20 (vinte )pessoas físicas, sendo excepcionalmente permitida a admissão de pessoas jurídicas que tenham por objeto as mesmas ou correlatas atividades econômicas das pessoas físicas ou, ainda, aquelas sem fins lucrativos".
A questão estende sua polêmica a outros temas no âmbito jurídico. Os principais entraves encontram-se no que se refere ao campo fiscal, pois a Receita Federal aponta a dificuldade de apuração de impostos de empresas (usualmente feita por meio de seu faturamento) inseridas no contexto de cooperativa (apurada pelo conceito de sobra de recursos).
É importante ressaltar que, hoje, em nenhum caso é possível formação de cooperativas apenas por empresas. Se voltássemos ao projeto de lei no 32, de 1996 (no 2.211/96 na Câmara dos Deputados), que "Institui o Estatuto da Microempresa e da Empresa de Pequeno Porte, dispondo sobre o tratamento jurídico diferenciado, simplificado e favorecido previsto nos arts. 170 e 179 da Constituição Federal", como aprovado originalmente no Congresso Nacional, veríamos que constava no art. 18 a possibilidade das ME&EPP se associarem em cooperativas, inclusive em cooperativas de crédito [4].
O mesmo art. 18 não apareceu na lei n° 9.841/99 (lei que instituiu o Estatuto), pois houve um veto presidencial ao mesmo (mensagem n° 1.436, de 5 de outubro de 1999). As razões alegadas foram (i) uma inovação no "próprio conceito de cooperativa singular [aquela do art. 6°, I, da lei n° 5.764], ao permitir a constituição de cooperativas com a adesão de microempresas e empresas de pequeno porte, não mais em caráter excepcional" (sic) e (ii) uma invasão na competência do Banco Central do Brasil (redução da capacidade de restrição de atuação dessas cooperativas), acarretando a eventual criação de cooperativas de crédito de grande porte (esses poderiam ser comparados a "bancos cooperativos" [5], "tendência incompatível com a política hoje desenvolvida pelo Conselho Monetário Nacional e pelo Banco Central do Brasil", como dito na mensagem de veto supracitada).
Muita confusão existe quando se trata do tema "Cooperativas de Crédito", considerando a nova regulamentação feita pelo Banco Central em 2003. Ao contrário do que se comenta, essa nova modalidade de cooperativa não permite a associação exclusiva de pessoas jurídicas. Na verdade, fica autorizado que presidentes e funcionários de empresas associem-se em cooperativa. Esse desenho institucional só foi possível a partir da Resolução 3.106/2003 do Banco Central do Brasil, que tem poder, delegado por lei – art. 103 da lei 5.674/71 [6]; art. 55 da lei 4.595/64 [7] –, para regulamentar as atividades de instituições financeiras. Assim, não ocorreu mudança nas regras gerais do cooperativismo propriamente, mas sim se criou uma regra especial, no setor financeiro, que passou a valer para o caso específico de cooperativa de crédito [8].
Possibilidade jurídica de regulação de formas cooperativas
Uma pergunta latente, que é de grande interesse das MPE, é: poderia algum órgão governamental, por meio de alguma Resolução ou Portaria, regular uma possível existência de cooperativas de exportação, formada também por pessoas jurídicas (não em caráter excepcional)?
Tal pergunta torna-se importante pela habitual delonga por que passam todas as mudanças legislativas em nosso país, tempo esse importante para que haja o debate necessário nas tomadas de decisão, mas que muitas vezes atrapalha o bom andamento das ações envolvidas com as leis em questão (o debate recorrente em nosso país entre a realidade fática e a realidade jurídica...).
Se analisarmos detidamente, e restritivamente, a lei que institui o regime jurídico das sociedades cooperativas, n° 5.764/71, os únicos órgãos que possuem competência normativa no que se refere às cooperativas são o Conselho Nacional de Cooperativismo, Conselho Monetário Nacional [9] (cooperativas de crédito e seções de crédito das agrícolas mistas) e o Banco Nacional de Habitação (cooperativas de habitação) [10].
Em momento algum há menção à possibilidade de regulação por qualquer outro órgão governamental de cooperativas, mesmo sendo essas de exportação. Assim, a criação de uma exceção para que empresas possam montar cooperativas de exportação depende, necessariamente, de aprovação de nova lei no Congresso Nacional.
Alternativas para o cooperativismo entre pequenas empresas exportadoras
Segundo as regras de hoje, caso alguns empresários exportadores queiram formar uma cooperativa, seria necessário que encerrassem suas empresas, passando a prestar serviço como "autônomos" e, então, formassem uma cooperativa. Assim, para permitir que empresas se associem em forma de cooperativa, seria preciso uma mudança, em termos gerais ou específicos, na legislação sobre cooperativismo no Brasil.
Em termos gerais, seria preciso aprovar uma lei que revisasse toda a lei nº 5.764 de 1971 – tarefa complexa –, permitindo que pessoas jurídicas pudessem associar-se livremente em cooperativas. Esse tema foi abordado, no âmbito do governo federal, por um Grupo de Trabalho Interministerial (GTI) cujas atividades, durante o segundo semestre de 2003, resultaram num relatório com mais de 150 páginas. Atualmente, o governo estuda a melhor maneira de encaminhar as sugestões apresentadas.
Outra alternativa, provavelmente mais célere, seria tratar a questão em termos específicos. Bastaria a aprovação de uma lei que autorizasse expressamente a associação de empresas em cooperativas de exportação, ou mesmo atribuísse tal poder a um órgão governamental responsável pela matéria. Eventualmente, poder-se-ia restringir essa opção a alguns setores da economia. Dado que essa nova lei seria específica e posterior à lei 5764/71, estaria superado o entrave legal para o caso de cooperativa de exportação.
Notas
1 Dados coletados junto à SECEX – Secretaria de Comércio Exterior (disponíveis em: <<http://www.desenvolvimento.gov.br/arquivo/ascom/apresentacoes/20043006PorteEmpresa.ppt>>).
Cabe também lembrar que, segundo dados do SEBRAE (Serviço de Apoio às Micro e Pequenas Empresas), as ME&EPP são 98% das empresas formais brasileiras (dado disponível em: <<http://www.sebrae.com.br/br/osebrae/osebrae.asp>>).
2 Apenas para citar alguns dos gastos envolvidos: identificação dos mercados; estabelecimento de contato com compradores (importadores) no exterior; fornecimento de informações sobre quantidade disponível, aspectos técnicos, condições de venda, prazo de entrega e preço unitário da mercadoria; análise com relação a preços praticados no país, diferenças cambiais, nível de demanda, sazonalidades, embalagens, exigências técnicas e sanitárias, custo de transporte, e outras informações que influenciarão a operação (dados encontrados no sítio eletrônico da APEXBRASIL – Agência de Promoção de Exportações do Brasil: <<http://www.apexbrasil.com.br>>).
3 Apesar das indicações, não localizamos a referida resolução. De qualquer modo, a vigência ou não da resolução parece não interferir nas interpretações correntes sobre a impossibilidade de pessoas jurídicas representarem parcela significativa do número de cooperados.
4"Art. 18. As microempresas e as empresas de pequeno porte poderão organizar-se em cooperativas para os fins de desenvolvimento de suas atividades, inclusive em cooperativas de crédito, não se aplicando, no caso, a restrição mencionada no art. 29, §§ 1o e 4o, da Lei no 5.764, de 16 de dezembro de 1971".
As restrições aqui mencionadas são:
"§ 1º A admissão dos associados poderá ser restrita, a critério do órgão normativo respectivo, às pessoas que exerçam certa atividade ou profissão, ou que estejam vinculadas a determinada entidade".
"§ 4º Não poderão ingressar no quadro das cooperativas os agentes de comércio e empresários que operem no mesmo campo econômico da sociedade".
5 A lei 5.764/71, em seu art. 5°, parágrafo único, ao exigir que as cooperativas tenham obrigatoriamente em seu nome a expressão "cooperativa", proíbe o uso da expressão "banco" pelas mesmas, mostrando que o fato de terem ao menos aparência de bancos não é desejo do legislador...
6"Art. 103. As cooperativas permanecerão subordinadas, na parte normativa, ao Conselho Nacional de Cooperativismo, com exceção das de crédito, das seções de crédito das agrícolas mistas e das de habitação, cujas normas continuarão a ser baixadas pelo Conselho Monetário Nacional, relativamente às duas primeiras, e Banco Nacional de Habitação, com relação à última, observado o disposto no artigo 92 desta Lei.
"Parágrafo único. Os órgãos executivos federais, visando à execução descentralizada de seus serviços, poderão delegar sua competência, total ou parcialmente, a órgãos e entidades da administração estadual e municipal, bem como, excepcionalmente, a outros órgãos e entidades da administração federal."
7"Art. 55. Ficam transferidas ao Banco Central da República do Brasil as atribuições cometidas por lei ao Ministério da Agricultura, no que concerne à autorização de funcionamento e fiscalização de cooperativas de crédito de qualquer tipo, bem assim da seção de crédito das cooperativas que a tenham."
8 O art. 6° do Regulamento anexo à Resolução 3.106/2003 elenca os critérios que servem de condições para admissão de associados às cooperativas de crédito, incluindo, em seu inciso I, a presença de "...uma ou mais pessoas jurídicas..." (também há menção às pessoas jurídicas no art. 7°, VI) contrastando bastante com o art. 6°, I, da lei n° 5.764/71, que só as aceita excepcionalmente...
9 Art. 55 da lei n° 4.595/64, que dispõe sobre a Política e as Instituições Monetárias, Bancárias e Creditícias e cria o Conselho Monetário Nacional.
10 Art 103 da lei n° 5.764/71.