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O caráter extrafiscal do IPTU e do IPVA

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Analisa-se o caráter extrafiscal do IPTU e do IPVA, bem como seu viés garantidor da função social da propriedade móvel e imóvel.

1. INTRODUÇÃO

O fenômeno da extrafiscalidade procura mitigar o caráter tradicional da função estatal de tributar, com vistas a fomentar ou coibir determinadas condutas, regular o mercado e promover o desenvolvimento do país pelo meio não convencional das exações.

A Constituição Federal, em diversos dispositivos, elenca hipóteses nas quais determinados impostos terão alíquotas diferenciadas ou progressivas, isenções, tratamento mais favorável a determinadas condutas, enfim, uma série de benesses para as quais a função puramente fiscal se mostraria indiferente.

Leandro Paulsen (2017, p. 31) ao tratar sobre o tema afirma que:

Na Constituição Federal brasileira, os tributos figuram como meios para a obtenção de recursos por parte dos entes políticos. Ademais, como na quase totalidade dos Estados modernos, a tributação predomina como fonte de receita, de modo que se pode falar num Estado fiscal ou num Estado tributário, assim compreendido “o Estado cujas necessidades financeiras são essencialmente cobertas por impostos”.

Assim, conforme salientado pelo referido autor, a função puramente fiscal é o método de aquisição de receitas destinadas a sustentar a máquina estatal e a prestação das garantias mínimas de seus cidadãos, função evidenciada no Brasil pelo seu status de Estado Democrático e Social de Direito.

O produto da arrecadação tributária, de uma forma geral, é considerado como fonte de receitas derivadas do Estado, uma vez que advêm do patrimônio privado. São também compulsórios, independendo da concordância do contribuinte, conforme se depreende do art. 3° do Código Tributário Nacional (CTN), bem como da desnecessidade de contraprestação estatal específica, conforme o art. 16 do referido Código.

Visando mitigar tal gravame, o legislador constitucional elencou situações nas quais o Fisco adotaria uma postura mais leniente àqueles que preenchessem determinados requisitos, realizassem ou omitissem determinados comportamentos. Eis que surge o caráter extrafiscal dos tributos, que, como lembram Paulo de Barros Carvalho e Ives Gandra da Silva Martins (apud PAULSEN, 2017, p. 33):

Vezes sem conta a compostura da legislação de um tributo vem pontilhada de inequívocas providências no sentido de prestigiar certas situações, tidas como social, política ou economicamente valiosas, às quais o legislador dispensa tratamento mais confortável ou menos gravoso. A essa forma de manejar elementos jurídicos usados na configuração dos tributos, perseguindo objetivos alheios aos meramente arrecadatórios, dá-se o nome de ‘extrafiscalidade’.

O prestígio a essas “certas situações” como mecanismo de política social e econômica é observado em diversos impostos presentes no Brasil, “perseguindo objetivos” além das tradicionais receitas auferidas pelo Estado.

O presente trabalho ater-se-á ao caráter extrafiscal do IPTU (Imposto Predial e Territorial Urbano) e ao IPVA (Imposto sobre a Propriedade de Veículos Automotores), analisando questões doutrinárias e jurisprudenciais com vistas a traçar o perfil diferenciado de tal viés.


2. VIÉS EXTRAFISCAL DO IPTU

2.1. Considerações Iniciais

Previsto no art. 156, I, da Constituição Federal e nos arts. 32 a 34 do CTN, o Imposto sobre a Propriedade Predial e Territorial Urbana (IPTU) é tributo de competência municipal e tem por fato gerador “a propriedade, o domínio útil ou a posse de bem imóvel por natureza ou por acessão física, como definido na lei civil, localizado na zona urbana do Município”, conforme a dicção do art. 32, caput, do CTN.

A propriedade é um direito real, conforme dispõe o art. 1.225, I, do Código Civil e que consiste na faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o direito de reavê-la do poder de quem injustamente a possua ou detenha, conforme a dicção do art. 1.228, caput, do supracitado Código.

O detentor do domínio útil é o foreiro, ou seja, quem adquiriu imóvel por enfiteuse[1] ou aforamento. Possuidor é que tem de fato o exercício, pleno ou não, de algum dos poderes inerentes à propriedade (art. 1.196 do Código Civil).

Em qualquer dos casos, a propriedade – e a posse, inclusive – devem obedecer ao mandamento constitucional do princípio da função social da propriedade (e da posse) prevista no art. 170, III, da Constituição Federal.

Assim, tendo em vista as grandes desigualdades sociais, o constituinte brasileiro houve por bem estabelecer sanções e prêmios aos que (des) cumprissem a função social destes direitos reais. Nesse contexto, Cristiano Chaves de Faria e Nelson Rosenvald (2014, p. 265) destacam que:

Portanto, ao cogitarmos da função social, introduzimos no conceito de direito subjetivo a noção de que o ordenamento jurídico apenas concederá merecimento à persecução de um interesse individual, se este for compatível com os anseios sociais que com ele se relacionam. Caso contrário, o ato de autonomia privada será censurado em sua legitimidade. Todo poder na ordem privada é concedido pelo sistema com a condição de que sejam satisfeitos determinados deveres perante o corpo social.

A função social constitui verdadeiro corolário que visa limitar o exacerbado poderio da propriedade privada, que deve ser norteada para a consecução do bem comum, limitando os interesses individuais e deslegitimando condutas antissociais a fim de resguardar a dignidade da pessoa humana (art. 1°, III, da Constituição Federal), um dos pilares de nosso ordenamento jurídico.

Partindo de tal premissa, prevê o texto constitucional uma série de implicações pelo descumprimento dessa função, hipótese em que resta figurada uma tributação não somente com fins arrecadatórios, mas também com uma teleologia extrafiscal. É o que será versado no próximo item, no que toca ao IPTU.

2.2. Extrafiscalidade do IPTU

Fruto da Emenda Constitucional 42/2003, o art. 153, §4°, I, da Constituição Federal dispõe que o IPTU será progressivo e terá suas alíquotas fixadas de forma a desestimular a manutenção de propriedades improdutivas. Nesse sentido, pondera Irapuã Beltrão (2014, p. 602):

Desde a vigência inicial da Constituição, em observância ao art. 182 e parágrafos que dispõem sobre a propriedade e sua função social, o IPTU poderia ser progressivo, de acordo com o § 1° do art. 156, CRFB/88. Trata-se de uso extrafiscal da tributação, conferindo à exação elementos indutores de comportamentos. Nesse caso, a progressividade não se confundiria com as demais situações, já que não objetiva ser um reflexo de capacidade contributiva, mas sim servir de instrumento para o cumprimento da função social, com aspecto extrafiscal.

Resta evidenciado seu caráter extrafiscal, pois visa coibir o abuso da condição de proprietário e induzir práticas sadias no uso e gozo da propriedade urbana; “Como se decalca, a progressividade do IPTU, em nosso sistema tributário, pode ser instituída atendendo a critérios puramente urbanísticos ou com finalidade sancionadora, para conferir efetividade ao postulado da função social da propriedade” (DENARI, 2008, p. 84).

A política de melhoras urbanísticas pode ser enxergada nas penalidades aplicáveis ao sujeito que deixa seu terreno sem qualquer utilidade (terrenos baldios) ou mesmo para implicar em sanções como a progressividade e o parcelamento compulsório do solo.

Esta última modalidade está prevista no art. 182, §§ 2° e 4° da Constituição Federal e determina a faculdade de o Poder Público municipal, através de lei específica para área incluída no plano diretor, exigir, conforme determinar lei federal, do proprietário do solo urbano não edificado, subutilizado ou não utilizado, que promova seu adequado aproveitamento, sob pena de sucessivamente sofrer parcelamento ou edificação compulsórios e ter o IPTU progressivo no tempo. Kiyoshi Harada (2012, p. 120), ao tratar sobre o tema pontifica:

A Constituição Federal prevê̂, em termos de faculdade, a instituição do IPTU progressivo para assegurar o cumprimento da função social da propriedade (art. 156, § 1°) e para exigir o adequado aproveitamento do solo urbano, relativamente a área incluída no Plano-Diretor, hipótese em que a progressividade só́ poderá́ fundar-se no fator temporal (art. 182, § 4°, II). Os dispositivos citados facultam o emprego da tributação progressiva de natureza extrafiscal, isto é, com finalidade ordinatória.

Sendo faculdade dos entes municipais, incumbe a estes definir as especificidades, observada a legislação específica federal, qual seja, a Lei n° 10.257/01 (Estatuto das Cidades), que dispõe em seu art. 5°, caput, competir à lei municipal específica para área incluída no plano diretor, a possibilidade da determinação do parcelamento, da edificação ou da utilização compulsórias do solo urbano não edificado, subutilizado ou não utilizado, devendo fixar as condições e os prazos para implementar tais obrigações.

Nos termos do §1° do art. 5° da supracitada lei, será considerado subutilizado o imóvel cujo aproveitamento seja inferior ao mínimo definido no plano diretor ou em legislação dele decorrente.

Todavia, há de se ressaltar que nem sempre fora admitida a progressividade das alíquotas do IPTU; o STF possui entendimento consolidado estampado na Súmula 668, in verbis: “É inconstitucional a lei municipal que tenha estabelecido, antes da Emenda Constitucional 29/2000, alíquotas progressivas para o IPTU, salvo se destinada a assegurar o cumprimento da função social da propriedade urbana”.

Tal posicionamento se dava ante ao fato de que o Supremo entendia pela impossibilidade de que o tributo real (que leva em conta a coisa) tivesse caráter progressivo. Assim, para o IPTU, que valora a base de cálculo pelo valor venal do imóvel (art. 33, caput, do CTN) não seria possível que fosse adotado critérios outros para fins de obtenção de tais benesses.

No Agravo Regimental no Recurso Extraordinário 466.400/RS o STF reiterou tal vedação, mas entendeu que a inconstitucionalidade das alíquotas do IPTU atinge apenas o sistema da progressividade, não impedindo a cobrança total do tributo, que deve ser realizada da forma menos gravosa para o contribuinte. Trata-se, nos dizeres de Ricardo Alexandre (2017, p. 741-742):

O entendimento assentado pela Corte funda-se na teoria da divisibilidade da lei, segundo a qual somente as normas viciadas são declaradas inconstitucionais, não devendo o juízo de censura estender-se às outras partes do diploma legal. Uma vez que as leis municipais em questão são inconstitucionais apenas na parte relativa à progressividade das alíquotas, a maioria dos Ministros optou por “manter a exigibilidade do tributo com redução da gravosidade ao patrimônio do contribuinte ao nível mínimo, ou seja, adotando-se a alíquota mínima como mandamento ida norma tributária” (RE 602.347/MG).

A teoria da divisibilidade da lei permite a utilização, pelos municípios, de dispositivos não viciados pela inconstitucionalidade reconhecida pelo STF, mantendo intactas as disposições que não contrariasse à Constituição Federal antes da alteração constitucional em comento.

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Assim, embora com o advento da Emenda Constitucional 29/2000, não há que se falar em recepção das normas anteriormente editadas, uma vez que no ordenamento jurídico brasileiro é repudiada a tese de recepção de constitucionalidade de forma superveniente, devendo ser editadas novas leis municipais a fim de disciplinar o caráter extrafiscal evidenciado pela progressividade.

Também levando em conta os fins sociais da moradia, o STF admite a possibilidade de alíquotas diferenciadas, instituídas com o fim de proteger os hipossuficientes que possuam um único imóvel. Nesse sentido, dispõe a Súmula 539 da Suprema Corte: “É constitucional a lei do Município que reduz o imposto predial urbano sobre imóvel ocupado pela residência do proprietário, que não possua outro”.

Tal critério, todavia, é rejeitado pelo Supremo quando a progressividade das alíquotas se dá pela capacidade econômico-financeira do contribuinte, verificada pela quantidade de imóveis pertencentes ao sujeito passivo. Nesse sentido, a Súmula 589 do STF proclama que: “É inconstitucional a fixação de adicional progressivo do imposto predial e territorial urbano em função do número de imóveis do contribuinte”.


3. VIÉS EXTRAFISCAL DO IPVA

3.1. Noções Introdutórias

Previsto no art. 155, III, da Constituição Federal o Imposto sobre a Propriedade de Veículos Automotores é tributo de competência estadual. Tal exação veio a substituir a antiga Taxa Rodoviária Única (TRU), cujo fato gerador era o exercício do poder de polícia em âmbito federal, qual seja, o registro e licenciamento de veículos em todo o país.

Tal espécie de taxa foi extinta pela Emenda Constitucional 27/85, que atribuiu competência aos estados para instituírem tal exação, agora sob o aspecto de imposto. Atualmente, a disciplina é realizada pelos estados, uma vez que não fora editada Lei Complementar federal para tratar do tema, conforme determina o art. 146, III, da Constituição Federal. Assim, podem os estados legislarem de maneira plena, enquanto a União não estabelecer normas gerais, nos moldes do art. 24, §3°, da Constituição de 1988.

Seu fato gerador é a propriedade de veículo automotor e suas alíquotas mínimas serão fixadas em resolução do Senado Federal (art. 155, §6°, I, da Constituição Federal).

De acordo com Ricardo Alexandre (2017, p. 737): “Trata-se de tributo com finalidade marcantemente fiscal, pois tributa uma manifestação de riqueza do contribuinte com o objetivo de carrear recursos para os cofres públicos estaduais”. Embora seja um tributo eminentemente fiscal, de cunho arrecadatório, a Constituição prevê alíquotas diferenciadas, evidenciando seu caráter extrafiscal.

3.1. Extrafiscalidade do IPVA

Determina o art. 155, §6°, II, da Constituição de 1988 que o IPVA poderá ter alíquotas diferenciadas em função do tipo e utilização, consagrando seu viés extrafiscal.

Quanto ao tipo, a diferenciação pode se dar em relação à utilitários ou carros de passeio. Quanto à função, a diferença pode decorrer, por exemplo, no caso de veículo utilizado para transporte escolar, táxi, etc.

Assim, se o veículo cumpre um papel importante no meio social, suas alíquotas poderão ser reduzidas a fim de alcançar uma maior compatibilização entre a atividade arrecadatória e as necessidades do contribuinte.

A margem de discricionariedade dos estados para diferenciar tais alíquotas já ensejou algumas discussões a respeito no âmbito doutrinário e jurisprudencial. Nesse sentido, temos a seguinte casuística:

O STF, na ADI-MC 2.301/RS, entendeu pela constitucionalidade do desconto do IPVA a condutores que não tenham cometido infrações de trânsito, incentivando os motoristas a serem bons condutores de veículos (PAULSEN, 2017, p. 34).

Da mesma forma, o Supremo entende pela inconstitucionalidade de diferenciação, para fins de alíquotas de IPVA, de veículos nacionais e importados. Conforme alerta Ricardo Alexandre (2017, p. 738):

Em primeiro lugar, não se pode tributar diferentemente veículos nacionais e importados, o que agrediria o princípio da não discriminação com base na procedência ou destino, previsto no art. 152 da CF/1988, bem como a cláusula do tratamento nacional, que prevê a equivalência de tratamento entre o produto importado, quando este ingressa regularmente no território nacional, e o produto similar nacional.

Tal raciocínio é válido, uma vez que a origem internacional do tributo diz respeito ao interesse da União, e não dos estados federados, que não podem criar mecanismos discriminatórios quanto à procedência do bem. Ademais, implicaria em dupla tributação, já que importação do veículo gera o dever de pagar o Imposto de Importação.

O STF admitiu, mesmo antes do advento da Emenda 42/03, a possibilidade de instituição de alíquotas de IPVA diferenciadas segundo critérios que não levem em conta a capacidade contributiva do sujeito passivo, por não ensejar a progressividade do tributo (RE 601.247 AgR/RS).

Por fim, não podem os estados instituírem diferenciação quanto ao tipo de automóvel, a fim de tributar embarcações e aeronaves com o IPVA. Nesse sentido, lembra Ricardo Alexandre:

Também não é possível vislumbrar a possibilidade de adoção de alíquotas diferenciadas com base no “tipo do veículo” como uma autorização para tributar diferentemente veículos terrestres, aquáticos ou aéreos, porque, conforme será detalhado no item subsequente, o STF entende que o IPVA somente pode incidir sobre os veículos terrestres.

Trata-se de uma interpretação histórica do STF, tendo em vista que o IPVA veio a substituir a antiga Taxa Rodoviária Única (TRU), que era cobrada somente de veículos terrestres. De qualquer modo, vedada está a possibilidade de utilização do critério “tipo do veículo” para fins de instituição de tal tributo, ainda que com alíquotas diferenciadas.

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FIGUEIREDO, José Felipe Lima. O caráter extrafiscal do IPTU e do IPVA. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 5279, 14 dez. 2017. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/62647. Acesso em: 20 abr. 2024.

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