3. A resolução 39/248 da ONU.
A resolução 39/248[16] da Organização das Nações Unidas foi criada em 1985, para traçar diretrizes básicas para a proteção dos consumidores, principalmente nos países em desenvolvimento.
Tal resolução reconhece que os consumidores, em diversos momentos, se deparam com desequilíbrios econômicos, educacionais e em poder de barganha, mas a eles devem ser assegurados produtos que não sejam perigosos, facilitando que as necessidades dos consumidores sejam alcançadas e que os fornecedores de serviços e produtos se comprometam eticamente a reforçar a cooperação internacional para reduzir significantemente as práticas abusivas.
As Nações Unidas focam também na necessidade de cada Governo definir suas próprias prioridades em relação à proteção dos consumidores, já que as circunstâncias sociais e econômicas de cada país são únicas. Essas prioridades devem estar relacionadas com os seguintes princípios gerais expostos na resolução:
“ (a) The protection of consumers from hazards to their health and safety; (b) The promotion and protection of the economic interests of consumers; (c) Access of consumers to adequate information to enable them to make informed choices according to individual wishes and needs; (d) Consumer education; (e) Availability of effective consumer redress; (f) Freedom to form consumer and other relevant groups or organizations and the opportunity of such organizations to present their views in decision-making processes affecting them.”[17]
Essas políticas de amparo ao consumidor devem ter a participação não só do governo como também de universidades e instituições de ensino, bem como empresas e das organizações não-governamentais que atuam na área de proteção aos consumidores. É encorajado ainda que a educação do consumidor seja parte integrante do currículo escolar básico, informando aos estudantes questões relacionadas à saúde, nutrição, prevenção de doenças, rótulos de produtos, informação sobre pesos e medidas, legislação aplicável e ainda poluição e meio ambiente.
Todas essas recomendações devem assegurar que os bens produzidos sejam seguros para os consumidores, através da utilização, por exemplo, de símbolos conhecidos internacionalmente. Deve ser assegurado que esses produtos, além de conterem instruções de uso, devem ser seguros mesmo em casos de utilização inadequada pelo consumidor. E ainda, em caso de mercadoria ou serviço defeituosos o seu fornecedor deverá ser devidamente responsabilizado e deve reparar o consumidor, entregando a ele um novo produto em perfeitas condições.
Importante ressaltar que essa resolução prevê a confecção de produtos seguindo padrões internacionais, aumentando a segurança para o consumidor. Entretanto, em razão das condições de determinado local, caso esse padrão internacional não seja seguido, cabem aos governos adotar políticas para alcançar o padrão desejado o mais rápido possível. Isso inclui a previsão e adequada fiscalização e assistência às instalações de armazenamento, utilizando práticas sustentáveis e incentivando cooperativas de consumo, principalmente em zonas rurais ou afastadas dos grandes centros urbanos.
Ademais, caso o consumidor tenha que ingressar em juízo ou na área administrativa para ser reparado, os governos devem assegurar um procedimento célere, justo, barato e acessível à população. As empresas devem ser encorajadas também a resolver as lides de forma séria e rápida. As legislações acerca da proteção do consumidor também devem ter a devida publicidade.
Portanto, não há dúvida de que essa Resolução das Nações Unidas foi um grande marco para a defesa do consumidor, estabelecendo princípios básicos para serem seguidos. Não se pode esquecer que essas diretrizes, no novo tempo do século XXI, devem ser constantemente lembradas e respeitadas para assegurar os interesses do consumidor.
4. Competência para julgamento envolvendo Direito do Consumidor.
Com a recente reformulação do Código de Processo Civil, foi nele inserido o Art. 22[18], que determina a competência da autoridade judiciária brasileira para processar e julgar ações decorrentes das relações de consumo, desde que o consumidor tenha domicílio ou residência no Brasil. Esse artigo é de grande importância, pois é o pioneiro no que diz respeito a regra específica para jurisdição internacional.
Essa disposição normativa apenas consolidou um entendimento que já era adotado pela jurisprudência brasileira em casos de relação de consumo internacional. Em acórdão julgado pelo Superior Tribunal de Justiça, de relatoria do Ilmo Ministro Ricardo Villas Bôas, foi reconhecida a jurisdição dos tribunais do domicílio do consumidor, no Brasil, para processar e julgar ação de indenização por danos morais em razão de relação de consumo trans-fronteiriça.
“AGRAVO REGIMENTAL EM AGRAVO DE INSTRUMENTO - EXCEÇÃO DE INCOMPETÊNCIA – “AQUISIÇÃO DE AUTOCLAVE PARA ESTERILIZAÇÃO DE MATERIAIS MÉDICO- HOSPITALARES - RELAÇÃO DE CONSUMO - OPÇÃO DO CONSUMIDOR EM AJUIZAR A AÇÃO EM SEU DOMICÍLIO - ARTIGO 101, 1, DO CDC - POSSIBILIDADE - RECURSO NÃO PROVIDO. Nos termos do artigo 101, I, do Código de Defesa do Consumidor, é competente o foro do domicílio do consumidor para processar e julgar as lides versando sobre a responsabilidade civil do fornecedor de produtos ou serviços" (STJ - AREsp: 196780 MS 2012/0132545-5, Relator: Ministro RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA, Data de Publicação: DJ 11/11/2014).
Importante fazer uma ressalva no tocante ao artigo 101, I, CDC mencionado no julgado supra. Tal norma não designa a competência internacional dos tribunais brasileiros, sendo destinada a relações de consumo dentro do território nacional, embora alguns tribunais a estendam a consumidores internacionais.
Entende-se que a norma que regula a jurisdição no âmbito internacional, é de fato o já mencionado art. 22, NCPC. Todavia, devido à sua recente existência, não há posicionamento da jurisprudência se essa seria uma regra de competência concorrente ou exclusiva. Em que pese a torcida de Luciane Vieira[19], que acredita na competência exclusiva do art. 22 do NCPC, por ser uma norma de ordem pública, data vênia, há que se discordar.
Caso a intenção do legislador fosse a de competência exclusiva – afastando a competência do juiz estrangeiro, acredita-se que o art. 25 do NCPC[20] estaria deslocado, pois não seria possível a eleição de outro foro se o consumidor tivesse residência ou domicílio no Brasil. Além disso, a competência exclusiva já está prevista nos incisos do art. 23[21], no qual o legislador fez menção expressa. A melhor doutrina ensina que:
“Entretanto, não pode ser deixado de lado o que disciplina o art. 25 do Novo Código de Processo Civil. Já que nos casos de eleição de foro pelas partes levando ao juízo estrangeiro a causa e excluindo a apreciação do juízo brasileiro não pode ser ignorada. Preserva-se, assim, a autonomia da vontade dos litigantes e observando a lógica do ‘choice-of-court agreements’. Aqui, a definição e escolha do judiciário (brasileiro ou estrangeiro) acontecerá antes de eventual litígio, tendo por efeito tornar exclusivamente único aquele judiciário, que, todavia, era originalmente concorrente."[22]
Conforme bem explicitado pelos juristas acima, em razão da autonomia de vontade das partes, trata-se de competência concorrente.
Em relação ao art. 25, apesar da concordância com o princípio da autonomia da vontade, "a vulnerabilidade do consumidor pode ser acentuada diante da complexidade das transações trans-fronteiriças" (RAMOS e FERREIRA, 2016)[23]. Em razão disso, a possibilidade de eleição de foro estrangeiro pelas partes deve ser relativizada em sua interpretação, de modo a proteger o consumidor, parte mais frágil da relação de consumo. Partindo desse pressuposto, acredita-se que a escolha de foro diferente do nacional só deverá ser possível quando trouxer algum benefício para o consumidor.
No tocante à possibilidade da escolha da lei aplicável, entende-se que essa não é muito aceita pela doutrina e jurisprudência (exceto nos casos de arbitragem). Sendo assim, via de regra aplica-se o art. 9º, da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (Decreto Lei 4657/ 42)[24]. Através da leitura do caput, para os contratos celebrados (constituídos) no Brasil, há que se aplicar o direito brasileiro, enquanto contratos celebrados no estrangeiro estariam sujeitos às normas de outro país.
Entretanto, o legislador foi infeliz ao inserir o parágrafo segundo do referido artigo, vez que o Código de Defesa do Consumidor estabelece em seu art. 30 que proponente e fornecedor seriam sinônimos, e por isso, se a compra for realizada por meio eletrônico dentro do Brasil, a lei aplicada seria a estrangeira, já que o contrato é constituído na residência do fornecedor.
Esse parágrafo segundo do art. 9º vai no sentido oposto aos tratados internacionais existentes. Felizmente, de acordo com a doutrina, o parágrafo 2º do art. 9º, da Lei de Introdução às normas do Direito brasileiro está superado, sendo aplicável somente para contratos comerciais internacionais e não às relações de consumo.
Apesar disso, a legislação brasileira segue sem regras internacionais específicas. Dessa forma, a melhor solução seria utilização da lei e da jurisdição do domicílio do consumidor, mas que ao mesmo tempo, se permitisse a aplicação de outra lei, respeitando a autonomia das partes, desde que mais favorável ao consumidor.
5. Considerações acerca do Projeto de Lei 281 de 2012.
Com a crescente globalização e o aumento do comércio eletrônico, a partir de 2010 foi criada uma comissão para atuar na modernização do Código de Defesa do Consumidor. A preocupação com a matéria se torna necessária em um cenário no qual as transações comercias são cada vez maiores, o que não existia há mais de 25 anos atrás, quando o CDC foi criado. Como resultado, o Projeto de Lei nº 281 altera o CDC e a Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro.
O projeto, após ser aprovado pelo Plenário do Senado, agora se encontra na Câmara dos Deputados para votação. Dentre as principais mudanças, cabe destacar a preocupação em proteger o consumidor em relação à venda de pacotes de viagens, ao marketing direcionado ao Brasil, bem como a definição da lei aplicável. Além disso, haverá regulamentação de sigilo de dados, compras coletivas, restrição de spams e desistência de compra de produto ou serviço. Todas essas inovações são regidas sempre no aspecto mais benéfico ao consumidor, utilizando a lei mais favorável, mesmo que essa não seja brasileira.
Em relação à aplicação das regras mais favoráveis ao consumidor, o que sempre foi um princípio implícito do CDC e das decisões judiciais, agora toma forma com o futuro art. 3-A do diploma consumerista, que determina expressamente o seguinte:
"Art.3-A: As normas e os negócios jurídicos devem ser interpretados e integrados da maneira mais favorável ao consumidor."
Destarte, a possibilidade de escolha do foro competente no art. 25 do CPC, conjugada com o novo art. 3-A (interpretação sempre mais favorável ao consumidor), será traduzida no art. 101, I do Projeto 281/2012, que indica que é possível a escolha de outro foro que não seja o brasileiro. Entretanto, esta opção cabe apenas ao consumidor, sendo vedado pelo §1º do art. 101 a eleição prévia do foro bem como a escolha pela arbitragem.
O projeto ainda estipula no § 2º do art. 101 do Código de Defesa do Consumidor, que a lei aplicável será a lei do domicílio do consumidor ou a lei acordada pelas partes, desde que mais favorável a este. Porém, somente uma parcela será beneficiada com a aplicação da lei sempre mais favorável, já que a redação do caput do novo art. 9-A, LINDB, estipula que:
“Art. 9-A: O contrato internacional entre profissionais, empresários e comerciantes, reger-se-à pela lei escolhida pelas partes, devendo esta escolha referir-se à totalidade do contrato e ser efetuada mediante acordo expresso entre as partes.”
Além de explicitar que os contratos entre profissionais, empresários e comerciantes serão regidos por acordo, o art. 9-B que será inserido com o projeto, determina que somente as "pessoas naturais" podem fazer parte de um contrato internacional de consumo, e consequentemente, excluindo uma parcela dos consumidores do benefício da aplicação da lei sempre mais favorável.
Apesar do avanço do Projeto 281/2012 em prever dispositivos que protegem o consumidor nas relações de consumo internacionais, esse dá um passo para trás ao excluir as pessoas jurídicas da proteção nos contratos consumeristas internacionais. Acredita-se que a ausência da vulnerabilidade não deve ser presumida pelo fato da pessoa ser jurídica, devendo ser analisado pelo judiciário caso a caso, como é o entendimento atual:
“DIREITO CIVIL E DIREITO DO CONSUMIDOR. TRANSPORTE AÉREO INTERNACIONAL DE CARGAS. ATRASO. CDC. AFASTAMENTO. CONVENÇÃO DE VARSÓVIA. APLICAÇÃO. 1. A jurisprudência do STJ se encontra consolidada no sentido de que a determinação da qualidade de consumidor deve, em regra, ser feita mediante aplicação da teoria finalista, que, numa exegese restritiva do art. 2º do CDC, considera destinatário final tão somente o destinatário fático e econômico do bem ou serviço, seja ele pessoa física ou jurídica. 2. Pela teoria finalista, fica excluído da proteção do CDC o consumo intermediário, assim entendido como aquele cujo produto retorna para as cadeias de produção e distribuição, compondo o custo (e, portanto, o preço final) de um novo bem ou serviço. Vale dizer, só pode ser considerado consumidor, para fins de tutela pela Lei nº 8.078/90, aquele que exaure a função econômica do bem ou serviço, excluindo-o de forma definitiva do mercado de consumo. 3. Em situações excepcionais, todavia, esta Corte tem mitigado os rigores da teoria finalista, para autorizar a incidência do CDC nas hipóteses em que a parte (pessoa física ou jurídica), embora não seja tecnicamente a destinatária final do produto ou serviço, se apresenta em situação de vulnerabilidade. 4. Na hipótese em análise, percebe-se que, pelo panorama fático delineado pelas instâncias ordinárias e dos fatos incontroversos fixados ao longo do processo, não é possível identificar nenhum tipo de vulnerabilidade da recorrida, de modo que a aplicação do CDC deve ser afastada, devendo ser preservada a aplicação da teoria finalista na relação jurídica estabelecida entre as partes. 5. Recurso especial conhecido e provido.” (STJ - REsp: 1358231 SP 2012/0259414-1, Relator: Ministra NANCY ANDRIGHI, Data de Julgamento: 28/05/2013, T3 - TERCEIRA TURMA, Data de Publicação: DJe 17/06/2013).