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A hermenêutica jurídica de Emílio Betti:

em busca da objetividade na aplicação do Direito

Leia nesta página:

A teoria da interpretação de Emílio Betti, que enfatiza o dever de objetividade do intérprete, mostra-se de alvissareira recuperação para o momento presente, marcado pela proliferação de decisões judiciais que desconsideram a moldura positiva do Direito.

1 INTRODUÇÃO

Perseguiu o hermeneuta e jurista italiano a concepção de uma teoria geral da interpretação de cariz metodológico, hábil a imantar o processo compreensivo da necessária objetividade, alcançada à luz de técnicas e cânones norteadores daquele iter.

Betti diferencia os tipos de interpretação em razão de sua função, divisando a interpretação meramente recognitiva, a qual encontra no entendimento um fim em si mesmo, da interpretação reprodutiva ou representativa, que, além de entender, objetiva fazer entender; ambas, por seu turno, distinguem-se da interpretação jurídica, cuja singularidade reside em sua preordenação do agir humano.

É dizer, a especificidade da interpretação jurídica repousa em sua função normativa, porquanto o entendimento é visado como médium à regulação do agir humano, o que terá sensíveis implicações para sua estruturação metodológica (MEGALE, 2005).


2 O CARÁTER TRIÁDICO DA COMPREENSÃO NO DIREITO

Aponta o autor, outrossim, para o caráter triádico da compreensão. Deveras, todo compreender envolve a espiritualidade atual do intérprete e a espiritualidade objetivada na forma representativa, esta última o verdadeiro objeto da interpretação.

Não é a vontade mesma do autor ou do legislador o ente mirado pela interpretação; o noumeno é inacessível em si; sua manifestação fenomênica, objetivada na forma representativa, suporte material da compreensão, esta, sim, é o objeto da compreensão.

Nesse passo, as normas jurídicas, fontes de valoração dos comportamentos humanos, consubstanciam a forma representativa por excelência do labor interpretativo jurídico.

De outra parte, também os comportamentos, objetos de valoração, e as declarações exaradas no curso do processo corporificam formas representativas a serem decodificadas pelo intérprete-aplicador (BETTI, 1975).


3 A OBJETIVIDADE NA INTERPRETAÇÃO JURÍDICA

A precaução contra o subjetivismo da interpretação conduz, em Betti, à definição do papel da hermenêutica como compromissado com a reconstrução do iter genético, o que ocorreria a partir do iter hermenêutico.

Tal, porém, somente se faria possível a partir da subjetividade do intérprete, dado que a espiritualidade autoral não é acessível em si mesma, mas apenas lastreada na forma representativa que fala à atual espiritualidade daquele (BETTI, 1975).

A comunhão de fala, acompanhada de uma abertura congenial e fraterna para o outro que fala por intermédio da forma representativa, é que torna possível o acontecer da compreensão, o que deriva, por certo, do caráter elítico da linguagem, cujo sentido sempre transborda a mera composição gramatical do discurso representativo (MEGALE, 2005).

As franjas, os implícitos, de cujo entendimento depende a perfeição da compreensão, somente poderiam ser alcançados com esteio na congenialidade fraternalmente dessumida da comunhão de fala que transita entre a vivente espiritualidade do intérprete e aquela evocada pelo ente interpretado (MEGALE, 2005).

Ressalte-se que aludido jaez elítico compreenderia tanto os pressupostos linguísticos como os extralinguísticos da compreensão, a abarcar a totalidade significativa pré-compreendida na expressão interpretada.

Deste modo, tem-se que a interpretação não se exaure na consideração do momento filológico, sendo inafastável a exigência de uma instância crítica e os momentos psicológico e técnico, os quais se vinculam à finalidade normativa da interpretação jurídica, a qual não prescinde da atualidade do entender (BETTI, 1990).


4 A DIALÉTICA BETTIANA E OS VOTOS VENCIDOS

Com efeito, a dialética entre a necessária objetividade da interpretação e a inevitável subjetividade do intérprete, condição de possibilidade de toda compreensão, resolve-se em Betti a partir da abertura congenial e fraterna ao outro estampado na forma representativa, com a adequação harmônica entre a intelecção interpretante e o ente interpretado, sintonia buscada na comunhão de fala arrimada na vivente espiritualidade (BETTI, 1990).

Para além de Schleiermacher (1999), que almejava a reconstrução psicológica do pensamento do autor a partir dos métodos divinatório e comparativo, de modo que a este seja compreendido melhor do que ele mesmo ousou se compreender, Betti assume que a espiritualidade interpretada é inacessível em si e somente poderá ser percebida a partir da subjetividade que interpreta.

Demais disso, o autor reconhece o inequívoco efeito  da vivente espiritualidade sobre a compreensão. A comunidade de fala, a par de possibilitar, condiciona a compreensão, não decisivamente, porém (BETTI, 1990).

A singularidade do intérprete nunca se dissolve na vivente espiritualidade, com ela dialoga sem anular sua subjetividade. Daí a explicação para os votos vencidos, em variegados casos prenúncios de um porvir frutuoso da vivente espiritualidade do amanhã, a recomendar a evolução do entendimento momentaneamente majoritário (MEGALE, 2005).

A interpretação jurídica orbita, assim, por uma teleologia dúplice. De um lado, pauta-se pelo critério histórico-subjetivo, tendo em mira a reconstrução das valorações originárias culminantes no texto legal. De outro, assume o critério histórico-objetivo, a atualizar a disposição normativa diante das novas exigências sociais de seu contexto aplicativo, portadora que é de evidente jaez evolutivo.          

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5 OS CÂNONES HERMENÊUTICOS

A dialética entre a subjetividade do intérprete e a alteridade objetiva do interpretado é desenvolvida, por Betti, com esteio no traçado de cânones hermenêuticos capacitados à lida com ambas as dimensões, de sorte a frutificar seu projeto de objetividade na interpretação.

Cogita-se, assim, de cânones hermenêuticos referidos ao objeto e ao sujeito. Quanto aos primeiros, tem-se o cânone da autonomia, consoante o qual a significação do objeto interpretado desborda de sua mera representação filológica, autonomizando-se o sentido mesmo ante a pura literalidade (BETTI, 1990).

Isso porque, dado o inevitável caráter elítico da linguagem, profusamente continente de franjas, a dimensão filológico gramatical revela-se insuficiente para apreendê-la, sendo imperiosa a abertura congenial e fraterna do intérprete na vivente espiritualidade, apta à reconstrução do iter genético no desenrolar do iter hermenêutico, em diálogo entre a forma representativa e a espiritualidade que nela se estampa para com a espiritualidade atual do intérprete (MEGALE, 2005).

Outro cânone concernente ao objeto é o da totalidade, de cujo traçado se depreende que não pode a espiritualidade objetivada na forma representativa ser interpretada sem a consideração da totalidade de sentido na qual se insere, donde se infere que a intelecção das normas jurídicas deve partir de seu necessário enquadramento na moldura global do ordenamento jurídico (BETTI, 1990).

Com relação aos cânones hermenêuticos atinentes ao sujeito, também se apresentam em duas ordens estruturantes: o cânone da atualidade do entender e o cânone da adequação.

A teor do primeiro, porquanto a interpretação se desenvolve a partir da subjetividade do intérprete, dialetizada com a alteridade objetiva da forma representativa, é inevitável que aquele promova a atualização do objeto interpretado perante sua vivente espiritualidade, dado que impossível a anulação de tal projeção subjetiva do interpretar (BETTI, 1990).

No que concerne ao segundo, importa aduzir que cabe ao intérprete adequar sua intelecção à objetividade interpretada, em abertura congenial e fraterna hábil à persecução hermenêutica do iter genético. Nesse passo, exige-se entre ambos um ponto de contato situado na vivente espiritualidade, por meio do qual a aludida sintonia possa operar-se (BETTI, 1990).


6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A teoria geral da interpretação jurídica de Emílio Betti afigura-se de especial relevo em um momento no qual a desconsideração dos limites da aplicação do Direito tem conduzido a uma vasta plêiade de decisões extrínsecas à moldura positiva da ordem jurídica.

Decerto, o apreço pela Constituição e pela legalidade depende da persecução de objetividade mínima no afazer interpretativo, obstando que a vontade do intérprete se sobreponha às finalidades sedimentadas na ordem jurídico-positiva.

Somente assim ter-se-á a necessária salvaguarda ao princípio democrático, severamente ameaçado pelo arbítrio decisório e por uma pretensa função criativa dos julgadores que, se levada às últimas consequências, tende a substituir o governo do povo, pelo povo e para o povo por uma juristocracia na qual as liberdades individuais se verão à mercê do juiz de ocasião.


REFERÊNCIAS

BETTI, Emilio. Interpretación de la ley y de los actos jurídicos. Tradução de José Luis de los Mozos. Madrid: Editorial Revista de Derecho Privado, 1975.

______. Teoria generale della interpretazione. 2. ed. Milão: Giuffrè Editore, 1990.

MEGALE, Maria Helena Damasceno e Silva. A teoria da interpretação jurídica: um diálogo com Emilio Betti. Revista Brasileira de Estudos Políticos. Belo Horizonte, v. 91, n. 06, p. 145-169, jan./jun. 2005.

______. Um diálogo da Hermenêutica com a Literatura: em busca da justiça. Belo Horizonte: D’Plácido, 2016.

SCHLEIERMACHER, Friedrich Schleiermacher. Hermenêutica: arte e técnica da interpretação. Trad. Celso Reni Braida. Petrópolis. Editora Vozes, 1999.

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Sobre o autor
Gladston Bethônico Bernardes Rocha Macedo

Doutorando em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), sendo Bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (FAPEMIG). Mestre em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Advogado.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MACEDO, Gladston Bethônico Bernardes Rocha. A hermenêutica jurídica de Emílio Betti:: em busca da objetividade na aplicação do Direito. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 23, n. 5502, 25 jul. 2018. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/62683. Acesso em: 29 dez. 2024.

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