No dia 23 de agosto de 2004, uma segunda-feira, os contribuintes acordaram totalmente assombrados com despacho publicado no D.O.U., ato este, emanado do gabinete do Sr. Ministro da Fazenda, que prevê a possibilidade de anulação, mediante ação judicial, de decisões de mérito proferidas pelos Conselhos de Contribuintes do Ministério da Fazenda, órgãos administrativos responsáveis pelo julgamento dos processos administrativos referentes a tributos administrados pela Secretaria da Receita Federal.
O indigitado despacho foi publicado nos seguintes termos (1):
Despacho do Gabinete do Ministro Antônio Palocci.
Interessada: Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional.
Assunto: Possibilidade jurídica de anulação, mediante ação judicial, de decisão de mérito proferida pelo Conselho de Contribuintes.
Despacho: Aprovo o Parecer PGFN/CRJ Nº 1087 /2004, de 19 de julho de 2004, pelo qual ficou esclarecido que: 1) existe, sim, a possibilidade jurídica de as decisões do Conselho de Contribuintes do Ministério da Fazenda, que lesarem o patrimônio público, serem submetidas ao crivo do Poder Judiciário, pela Administração Pública, quanto à sua legalidade, juridicidade, ou diante de erro de fato; podem ser intentadas: ação de conhecimento, mandado de segurança, ação civil pública ou ação popular e 3) a ação de rito ordinário e mandado de segurança podem ser propostos pela Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional, por meio de sua Unidade do foro da ação; ação civil pública pode ser proposta pelo órgão competente; já a ação popular somente pode ser proposta por cidadão, nos termos da Constituição Federal.
Tal ato remete-nos a uma questão antiga, mas de vital importância no âmbito das relações tributárias, qual seja, pode a Fazenda Pública (Federal, Estadual e Municipal) ingressar em juízo pleiteando a anulação de decisão administrativa irrecorrível favorável ao contribuinte?
A resposta a tal indagação somente pode ser negativa. Adiante veremos porque.
No Brasil, assim como em outros países, as lides tributárias estão sujeitas a uma dualidade de cognição, isto é, são sujeitas a uma discussão em âmbito administrativo e também à garantia do acesso ao Poder Judiciário.
No ordenamento jurídico brasileiro, infelizmente, o contencioso tributário administrativo nunca mereceu a atenção a que faz jus do legislador constituinte. Todavia desde tempos remotos há previsão do contencioso administrativo tributário no ordenamento jurídico pátrio (2).
Com a Constituição da República de 1988, foi afastado o óbice ao ajuizamento de ações pelos contribuintes antes de esgotadas as vias administrativas, a teor do disposto no art. 5º, XXXV.
No entanto, a garantia de acesso ao Poder Judiciário não pode ser alegada pela Fazenda Pública, neste caso, uma vez que as decisões administrativas, em matéria tributária, geram direito adquirido aos contribuintes, quando lhes são favoráveis, interpretação esta que pode ser extraída do art. 5º, XXXVI, da Carta Magna.
Vê-se, portanto, que a extinção do crédito tributário pela decisão administrativa irrecorrível, disposta no art. 156, IX, do CTN, é garantia individual do contribuinte, configurando-se numa cláusula pétrea, nos termos do art. 60, §4º, IV, da CR/88, insuscetível de modificação pelo poder constituinte derivado, quiçá por mero despacho de um integrante do Poder Executivo.
Este é o posicionamento de Eduardo Botallo: "as decisões administrativas em matéria tributária se apresentam, assim, em relação aos contribuintes, com feições distintas daquelas de que se revestem perante a própria Administração: no que diz respeito aos primeiros, tais decisões são sempre passíveis de revisão perante o Judiciário; quanto a esta, ao contrário (...), tais decisões são definitivas na medida em que geram, em benefício dos contribuintes, direitos subjetivos"
Ademais, a ato do Sr. Ministro da Fazenda vai de encontro aos princípios basilares da administração pública (CR/88, art. 37), essencialmente ao princípio da moralidade, uma vez que se trata de matéria vinculada que não pode ficar adstrita a mera conveniência do Executivo, movido por sua fúria arrecadatória, pelo fato de que desprestigiaria a legitimidade do processo administrativo, na contramão de ordenamentos jurídicos evoluídos, tal qual o alemão (3).
Com o ato do Ministro da Fazenda, caberia aos procuradores acionar o Poder Judiciário no caso de "lesão ao patrimônio público" ou "diante de erro de fato". Isso certamente causaria grande insegurança jurídica, dado o caráter subjetivo de tais expressões, uma vez que o tributo poderia ser considerado patrimônio público, podendo-se chegar ao absurdo de se entender que a decisão administrativa irrecorrível, favorável ao contribuinte, poderia ser considerada lesão ao patrimônio público.
Ademais, à própria Administração Pública cabe o autocontrole de seus atos, razão pela qual lhe faltaria, no presente caso, interesse de agir. Aliás, este é o entendimento do Professor Sacha Calmon Navarro Coelho (4) para quem ninguém pode ir a juízo contra ato próprio, por falta de interesse de agir; o mestre afirma que "a decisão administrativa definitiva, contra a Fazenda Pública, certa ou errada, constitucional ou não, extingue a obrigação tributária"; assim, conclui-se que "inexiste no direito brasileiro ação anulatória de ato administrativo formalmente válido praticado pela Administração, sendo ela própria a autora". O STJ, mesmo de maneira tímida, já expressou entendimento contrário à Fazenda Pública (5).
Outro efeito devastador da eventual possibilidade de a Fazenda Pública ingressar em juízo seria o abarrotamento do Poder Judiciário.
Indo de total confronto a uma necessária reforma apta a dar maior agilidade àquele Poder, a União, em vez de primar pelo desafogamento dos órgãos judiciários, parece querer extinguir os Conselhos de Contribuintes, quando deveria dar-lhes maior independência e autonomia. A possibilidade de que haja recurso ao Poder Judiciário pela Fazenda poderá, portanto, tornar o procedimento de defesa mais caro e mais lento, além de esvaziar a instância administrativa.
Assim, esperamos que qualquer tentativa da Fazenda Pública de ingressar em juízo buscando a anulação de decisão administrativa irrecorrível proferida em favor dos contribuintes, seja rechaçada pelo Poder Judiciário, para o seu próprio bem e para que não se acabe de vez com a segurança jurídica em matéria tributária.
Notas
1
Diário Oficial da União de 23 de agosto de 2004.2
De 1890 a 1912, o STF restringiu o acesso ao Poder Judiciário após o encerramento da lide tributária-administrativa, tal acesso somente seria possível se verificada a nulidade do processo tributário administrativo, se restasse comprovado o pagamento do tributo e caso houvesse transcorrido o lapso decadencial.Em 1977, com a EC nº 08, condicionou-se o acesso ao Judiciário ao exaurimento da via administrativa, desde que esta não ultrapassasse 180 dias.
3
Na Alemanha desde 1919 existem os Tribunais Financeiros incumbidos de julgar as lides tributárias, sendo seus membros funcionários de carreira do Poder Executivo, bem como membros nomeados, o que lhes garante uma certa autonomia e independência. No entanto, na Alemanha há também os Tribunais Tributários, especializados em lides fiscais, integrantes do Poder Judiciário, órgãos que existem desde 1945 e consagram a evolução das discussões tributárias naquele país, ao contrário do Brasil, onde muitas vezes alguns juizes, desconhecem com profundidade a matéria.4
Processo Administrativo Tributário, Ed. Revista dos Tribunais, São Paulo, 1999, p. 190.5
STJ, MS - Mandado de Segurança – 8810, Processo: 200201701021/DF, Primeira Seção, Data da decisão: 13/08/2003, Fonte DJ de: 06/10/2003, Página: 197 RDR Vol.: 00027 Página:226, Relator(a) Humberto Gomes de Barros.