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Direito fundamental à saúde: entre a falta de efetividade e a judicialização excessiva

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14/09/2020 às 15:10
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dos parÂmetros para a atuação judicial

Como visto até aqui, o papel outorgado pela constituição ao Poder Judiciário, notadamente em um estado Constitucional e democrático, é o de interpretar o ordenamento jurídico, resguardando direitos e assegurando o respeito aos ditames constitucionais e, com mais primazia, aos direitos fundamentais.

No exercício desse mister, caberá aos magistrados o papel de construção dos sentidos das normas jurídicas, por meio da interpretação dos textos legais e de toda a realidade que os cerca, para que os postulados interpretados não sejam destoantes de uma eficácia social.

Ocorre que, não raras vezes, tal atribuição perpassa pela resolução da problemática envolvendo a colisão de direitos fundamentais e princípios que entrem em rota de colisão, hipóteses em que os órgãos judiciais precisam proceder a concessões recíprocas entre tais princípios, por meio da técnica da ponderação.

Primeiramente, é preciso ter em mente que as prestações decorrentes do direito fundamental à saúde devem ter por fundamento – como em qualquer modalidade de controle jurisdicional – uma norma jurídica, fruto de deliberação democrática, seja de natureza convencional, constitucional ou infraconstitucional.

Assim, se uma política pública, ou mesmo qualquer decisão sobre essa matéria, é determinada de forma específica e direta pela constituição ou por leis válidas, a ação ou omissão correspondente a tal postulado poderá ser objeto de controle jurisdicional, em função da ínsita e precípua função judicial de aplicar e tornar efetiva a lei (latu sensu).

Porém, a estudada efetividade advinda da normatividade das disposições constitucionais estabeleceu novos patamares para o constitucionalismo no Brasil e propiciaram uma virada jurisprudencial (CANOTILHO, 1998), no sentido de estabelecer a primazia da intervenção estatal em situações envolvendo direitos sociais, direito à saúde ou mesmo o fornecimento de medicamentos, que, todavia, não ficou imune às críticas, conforme confrontado no capítulo dois do presente trabalho.

Contudo, tais críticas não possuem o condão de tornar sem efeito a proteção outorgada pela constituição ao direito à saúde, reconhecido como nítido direito de índole fundamental, apenas tendo por objetivo a estipulação de parâmetros tendentes a inibir a ausência de legitimidade democrática, capacidade técnica e de politização do judiciário.

Por questões didáticas, os parâmetros para a tutela jurisdicional serão abordados de acordo com as ações individuais a serem propostas, ainda que plúrimas, bem como as ações coletivas ajuizáveis.

4.1 DOS PARÂMETROS PARA AS AÇÕES INDIVIDUAIS

No âmbito das ações individuais, a atividade jurisdicional deve se limitar à realização das opções já formuladas pelos entes federados e veiculados nos programas e políticas de saúde, bem como na regulamentação das competências do Sistema Único de Saúde.

Tal constatação decorre da exegese do art. 196 da Constituição Federal, ao associar a garantia da saúde às políticas públicas e econômicas instituídas pelo Estado, com intuito de assegurar a universalidade das prestações e preservar a isonomia no atendimento aos cidadãos, independentemente de seu acesso ou não à jurisdição (BARROSO, 2009).

Presume-se que o Legislativo e o Executivo, quando da elaboração dos programas e políticas públicas, assim como na regulamentação das competências do Sistema Único de Saúde, avaliaram, com primazia e legitimidade, as necessidades prioritárias a serem supridas e a previsão dos recursos disponíveis necessários para sua efetivação, sob a ótica da visão técnica e sistêmica que tem de toda a problemática envolta à saúde.

Dessa forma, ao instituir dada política pública, está o Estado vinculado finalisticamente à sua concretização, nascendo ao cidadão o direito subjetivo à prestação asseguradora desta política.

Esse parâmetro privilegia tanto a legitimidade democrática, como torna inoponível à cláusula de reserva do possível, pois a primazia do direito fundamental à saúde, bem como a legitimidade da escolha realizada pelo legislador, ou mesmo o administrador, garantem a preferência da utilização de despesas sob tal finalidade em detrimento dos demais custos da máquina pública.

Ademais, é importante frisar que os recursos necessários ao custeio do sistema de saúde são obtidos através da cobrança de tributos, portanto, ao instituir uma determinada demanda ao Estado brasileiro, há a necessidade de previsão da sua respectiva fonte de custeio, cujo encargo e responsabilidade, ainda que por sua insuficiência, é atribuído exclusivamente ao Estado.

Essa linha de conclusão foi esposada pelo Supremo Tribunal Federal, quando do julgamento da Suspensão de Segurança nº 3073/RN, de relatoria da Ministra Ellen Grace, para quem a norma do artigo 196 da Constituição da República, que assegura o direito à saúde, refere-se, em princípio, à efetivação de políticas públicas que alcancem a população como um todo, assegurando-lhe acesso universal e igualitário, e não a situações individualizadas. A responsabilidade do Estado em fornecer os recursos necessários à reabilitação da saúde de seus cidadãos não pode vir a inviabilizar o sistema público de saúde.

Igual decisão, com eficácia vinculante, foi resultante do julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental, distribuída sob o nº 45, por meio da qual Sua Excelência, o Ministro Celso de Mello, entendeu que o encargo governamental de tornar efetiva as aplicações dos direitos sociais devem respeitar a cumulatividade do binômio da razoabilidade da pretensão e da disponibilidade orçamentária, tornada concreta mediante a estipulação de políticas públicas determinadas.

De forma contemporânea, o Pretório Excelso da República, quando do julgamento da Suspensão de Tutela Antecipada nº 145, de relatoria do Eminente Ministro Gilmar Mendes, entendeu que o direito subjetivo público do cidadão é assegurado mediante políticas sociais e econômicas, ou seja, não há um direito absoluto a todo e qualquer procedimento necessário para a promoção, proteção e recuperação da saúde, independente da existência de uma política pública que o concretize. Há um direito público subjetivo às políticas públicas que promovam, protejam e recuperem a saúde.

Como se vê, quando o Estado brasileiro, por qualquer de seus entes federados ou instituições, edita uma determinada política de saúde pública, nasce ao cidadão o direito subjetivo à sua concretização, reivindicável por meio de ações individuais ou plúrimas perante o judiciário.

Desta forma, a viabilidade de ajuizamento de ações individuais, ainda que plúrimas, privilegia a legitimidade para a tomada das decisões, vez que previamente haveria o comprometimento do legislador ordinário e do administrador público; a capacidade institucional do judiciário para concretização das políticas públicas anteriormente estabelecidas (juízo de efetivação); e não resultará em politização da justiça, ante o caráter de mera efetivação da vontade concreta do legislador e administrador público.

4.2 DOS PARÂMETROS PARA AS AÇÕES COLETIVAS

O caráter potestativo proposto do parâmetro anunciado acima decorreria da presunção legítima, considerada a separação funcional dos poderes, de que os poderes públicos, ao elaborarem as políticas públicas, fizeram uma avaliação adequada das necessidades prioritárias, dos recursos disponíveis e da eficácia dos tratamentos.

Todavia, tal determinismo não pode ficar alheio à apreciação judicial, pois embora não caiba ao judiciário refazer as escolhas dos demais poderes, impõe-se sua atuação para coibir excessos e suprir omissões (BARROSO, 2009).

Por tais razão, é bom que se diga, a impossibilidade normativa de pronunciamento judicial deferindo prestações em saúde não contempladas em políticas públicas não impede a apreciação judicial sobre esta omissão, se deliberada ou inconsciente.

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Ocorre que tal revisão somente pode ser realizada por meio de ações de índole coletivas, para efeitos de direitos difusos ou coletivos, cuja decisão produzirá efeito erga omnes nos limites da jurisdição de seu prolator.

E isso se afirma, primeiramente, em razão da necessidade de aferição sobre o contexto global das políticas públicas pretendidas (impossível de ser realizada em âmbito das ações individuais), que poderá ser demonstrado por aqueles que possuam a legitimidade ativa para sua propositura, como ocorre com o Ministério Público, tendo maior possibilidade de demonstrar a dimensão da necessidade daquela política, bem como a disponibilidade orçamentária para sua concretização.

Deste modo,  há como se privilegiar a universalidade enquanto característica essencial dos direitos fundamentais, como leciona Daniel Sarmento:

“[O] Estado não deve conceder a um indivíduo aquilo que ele não tiver condições de dar a todos os que se encontrarem na mesma posição. Esta é uma exigência fundamental imposta pelo princípio da igualdade, que não pode ser postergada (SARMENTO, 2010, p. 199).

Tal ilação é corroborada por Luigi Ferrajoli, para quem:

[...] são ‘direitos fundamentais’ todos aqueles direitos subjetivos que correspondem universalmente a ‘todos’ os seres humanos enquanto dotados do status de pessoas, de cidadãos ou pessoas com capacidade para agir; entendendo por ‘direito subjetivo’ qualquer expectativa positiva (de prestações) ou negativa (de não sofrer lesões) atribuída a um sujeito por uma norma jurídica; e por ‘status’ a condição de um sujeito, prevista assim mesmo por uma norma jurídica positiva, como pressuposto de sua idoneidade para ser titular de situações jurídicas e/ou autor dos atos que são exercício destas (FERRAJOLI, 2007, p. 199)

Ademais, a decisão tomada no âmbito de uma ação coletiva produzirá efeitos erga omnes, preservando e impondo a igualdade de tratamentos a toda população, bem como não ocasionará o desperdício de recursos públicos, nem a desorganização da máquina administrativa, por permitir o planejamento estatal.

Na mesma linha, Ricardo Perlingeiro pertinentemente afirma que:

[...]em matéria de direito público à prestação de serviços e produtos de saúde, reconhecer o comando judicial apenas em favor dos demandantes significaria fragmentar, ou mesmo desestruturar, o sistema público de saúde, evidenciando um modelo excludente das minorias, daqueles que não tem acesso à justiça, e rompendo com a ideia de um sistema de saúde universal e igualitário. Portanto, tais questões necessitam ser decididas uma única vez e com eficácia erga omnes (PERLINGEIRO, 2012, p. 221)

Por fim, a implementação de tal parâmetro coletivo resultará em maior racionalidade e operacionalidade ao sistema, vez que não induzirá à proliferação descontrolada de ações individuais. Culminando com a maior eficácia, tanto das políticas públicas deferidas (em âmbito judicial, legislativo ou administrativo), quanto das decisões a serem efetivadas por meio de simples cumprimento de sentença.

Indubitavelmente, a implementação do parâmetro da necessidade de ações coletivas para os casos de ausência de políticas públicas ocasionará a legitimidade na tomada das decisões, ante o diálogo institucional que será travado entre o executivo, as entidades representativas da sociedade, o legislativo e o poder judiciário; a capacidade institucional do judiciário para solução do conflito, amparada pela gama de elementos contextuais da necessidade de realização da política pública e sua possibilidade concreta de implementação; e inexistência da politização do judiciário, vez que as políticas públicas serão decididas em ambiente plural e em contexto global, mediante a concretização dos mandamentos constitucionais.

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PAULA, Edu Rodrigues. Direito fundamental à saúde: entre a falta de efetividade e a judicialização excessiva. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 25, n. 6284, 14 set. 2020. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/62805. Acesso em: 20 abr. 2024.

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