1. Introdução
Uma das demandas frequentes de atuação do Ministério Público na seara de defesa do patrimônio público e combate à improbidade administrativa está seguramente relacionada aos inúmeros ilícitos que ainda permeiam a conformação do quadro de pessoal da Administração Pública em suas diferentes esferas, não obstante o regramento que lhe foi conferido há mais de vinte anos pela Constituição Federal vigente, notadamente pelas disposições do artigo 37 e seguintes.
Dentre as ilicitudes comumente verificadas nesse aspecto, ao menos nas estruturas municipais da Administração Púbica, está a desconforme cessão de agentes públicos entre os mais diferentes órgãos, a qual não raras vezes é realizada para solver situações de mero interesse pessoal dos próprios agentes beneficiários da cedência materializada, e não propriamente para atender ao interesse público que, a priori, deveria nortear a prática de todo e qualquer ato administrativo.
Faz-se mister, portanto, a adoção de parâmetros calcados nas diretrizes constitucionais para o enfrentamento do tema, os quais serão objeto deste trabalho, sobretudo com a finalidade de contribuir para o desempenho da missão institucional do Ministério Público em sede extrajudicial.
2. O instituto da cessão de servidores públicos
Conceitualmente, a cessão pode ser definida como ato administrativo que permite o afastamento temporário de servidor público e possibilita o exercício de atividades por este em órgão ou entidade distinta da origem.
Servidor público neste caso pode ser compreendido como categoria de agente público que, na qualidade de pessoa física e mediante vínculo de trabalho, presta serviços à Administração Pública Direta ou Indireta, titular de cargo público, emprego público ou mesmo função pública (contratação temporária).
Porém, há divergência em sede doutrinária a respeito da inclusão nesse conceito de servidor público dos empregados das entidades privadas da Administração Pública Indireta, como é o caso das empresas públicas, sociedades de economia mista e fundações públicas de direito privado. Maria Sylvia Zanella Di Pietro, por exemplo, abarca todas as entidades da Administração Pública Indireta, sem distinção,1 ao passo que Celso Antônio Bandeira de Mello2 e José dos Santos Carvalho Filho3 divergem, fazendo referência apenas às pessoas dos quadros dos entes federativos, autarquias e fundações públicas de natureza autárquica, e conferem aos demais agentes outra terminologia conceitual.
A cessão de servidores tem ganhado força como tema na atualidade diante da impetração de mandados de segurança em unidades judiciárias de todo o país, em que se postula a investidura de candidatos aprovados em concurso público para ocupar vagas de agentes que se encontram cedidos para outros órgão ou entidades, sob a alegação de que existiria preterição pela Administração Pública, apta a caracterizar direito líquido e certo às suas nomeações. O Superior Tribunal de Justiça, porém, tem decidido que a cessão não configura hipótese de vacância de cargo ou emprego público para fins de provimento pelos aprovados em concurso público.4
3. Critérios para a materialização da cessão
Inexiste norma geral disciplinando critérios ou parâmetros para que a cessão de pessoas seja materializada pela Administração Pública.
As diretrizes para a sua execução, contudo, podem ser obtidas a partir do tratamento conferido pela Constituição Federal à Administração Pública, especialmente pelo artigo 37, e também pelos próprios princípios que norteiam o Direto Administrativo, sem prejuízo da regulamentação específica, em sede legislativa e administrativa, pelos órgãos interessados na sua aplicação.
3.1. Existência de previsão normativa
Como todo ato administrativo, a cessão está submetida aos princípios norteadores da Administração Pública, dentre eles, o princípio da legalidade, o qual, como um dos alicerces do Estado Democrático de Direito consagrado no artigo 37, caput, da Constituição Federal, impõe aos agentes públicos, e àqueles que com a Administração Pública se relacionar, a completa submissão às leis.
Sob esse prisma, necessária a transcrição da consagrada lição de Hely Lopes Meirelles5 a respeito do princípio da legalidade:
A legalidade, como princípio de administração (CF, art. 37, caput) significa que o administrador público está, em toda sua atividade funcional, sujeito aos mandamentos da lei e às exigências do bem-comum, e deles não se pode afastar ou desviar, sob pena de praticar ato inválido e expor-se à responsabilidade disciplinar, civil e criminal, conforme o caso.
A eficácia de toda a atividade administrativa está condicionada ao atendimento da lei.
Na Administração Pública não há liberdade nem vontade pessoal. Enquanto na administração particular é lícito fazer tudo o que a lei não proíbe, na Administração Pública só é permitido fazer o que a lei autoriza.
A lei para o particular significa “pode fazer assim”; para o administrador público significa “deve fazer assim”.
De fato, a lei é a razão e a finalidade do administrador público, dela não sendo possível se afastar sob nenhum pretexto, assim como os particulares que com a Administração Pública mantiverem relações jurídicas, sob pena de responder pela sua recusa em recepcionar os mandamentos legais.
Partindo-se dessa premissa, infere-se inicialmente que qualquer ato de cedência de agentes públicos envolvendo os entes interessados (órgãos cedente e cessionário) deve necessariamente encontrar prévio respaldo normativo para que possa ser efetivado. Em âmbito municipal, comumente a matéria é tratada na legislação que disciplina o estatuto dos servidores públicos municipais ou na Lei Orgânica do Município. Na esfera estadual, por seu turno, encontra previsão no artigo 43 da Constituição do Estado do Paraná6 e artigo 158, inciso III, da Lei Estadual n.º 6.174/707 e regulamentação no Decreto n.º 8.466/2013.8 Já em sede federal, é objeto do artigo 93 da Lei n.º 8.112/909 e disciplina no Decreto n.º 4.050/2001.10
Registre-se que a previsão normativa deve estar veiculada em lei, aprovada pelo Poder Legislativo, salvo em relação aos cargos ou empregos públicos cuja criação dependa da iniciativa do próprio órgão legislativo, não cabendo sua substituição por ato do Poder Executivo, que neste caso estará adstrito unicamente à possibilidade de regulamentar a autorização legal (via Decreto, por exemplo). Isso porque a cessão de servidor implica alteração temporária em requisito de acessibilidade de cargo ou emprego público, vale dizer, seu órgão de origem, local de lotação e desempenho de atribuições, de modo a ensejar a necessidade de observância da regra prevista pelo artigo 37, inciso I, da Constituição Federal, a qual estabelece que “os cargos, empregos e funções públicas são acessíveis aos brasileiros que preencham os requisitos estabelecidos em lei, assim como aos estrangeiros, na forma da lei”, e que foi reproduzida pelo artigo 27, inciso I, da Constituição do Estado do Paraná.
Assim também a orientação consolidada pelo Tribunal de Contas do Estado do Paraná em consultas que lhe foram dirigidas sobre o tema:
Consulta. Possibilidade de cessão de servidores públicos municipais a outros órgãos somente quando houver Lei no âmbito municipal que regule tal matéria. (Protocolo n.º 214242/97, Resolução n.º 12180/1997, Tribunal Pleno, Relator Auditor Oscar Felippe Loureiro do Amaral, julgado em 07.11.1997). Consulta. Possibilidade do município repassar recursos financeiros para entidades privadas, sem fins lucrativos, que desenvolvam atividades de utilidade pública, voltadas à educação, saúde, e assistência social, relacionadas com as atribuições constitucionais a cargo do município. Possibilidade de cessão de servidores, inclusive para entidades privadas, desde que haja lei que regule tal matéria. (Procolo n.º 176508/01, Resolução n.º 1921/2004, Tribunal Pleno, Relator Conselheiro Nestor Baptista, julgado em 13.04.2004).
A existência de lei para que ocorra a cessão também decorre do regramento constante da Lei Complementar n.º 101/2000, que estipula a necessidade de prévia autorização na lei de diretrizes orçamentárias e/ou na lei orçamentária anual, quando o ônus de custeio do servidor cedido a outro ente da Federação restar sob a responsabilidade dos Municípios cedentes:
Art. 62. Os Municípios só contribuirão para o custeio de despesas de competência de outros entes da Federação se houver:
I - autorização na lei de diretrizes orçamentárias e na lei orçamentária anual;
II - convênio, acordo, ajuste ou congênere, conforme sua legislação.
3.2. Atendimento da supremacia do interesse público
Outro requisito ou pressuposto para que a cessão seja realizada é a existência de comprovada vantagem na realização da cooperação entre os órgãos cedente e cessionário, de modo que o ato administrativo atenda à supremacia do interesse público na sua materialização.
Leciona Diógenes Gasparini11 que, segundo o princípio da indisponibilidade do interesse público, não se acham os bens, direitos, interesses e serviços públicos à livre disposição dos órgãos públicos, a quem apenas cabe curá-los, ou do agente público, mero gestor da coisa pública. Aqueles e este não são senhores ou seus donos, cabendo-lhes por isso tão-só o dever de guardá-los e aprimorá-los para a finalidade a que estão vinculados. O detentor dessa disponibilidade é o Estado. Por essa razão, há necessidade de lei para alienar bens, para outorgar concessão de serviço público, para transigir, para renunciar, para confessar, para revelar a prescrição e para tantas outras atividades a cargos dos órgãos e agentes da Administração Pública.
Significa dizer que a cessão não poderá ser realizada se não for possível a aferição de vantagem à Administração Pública, ou mesmo quando se verificar a existência de manifesto prejuízo em desfavor de um dos órgãos envolvidos, cedente ou cessionário.12 Imagine-se, por exemplo, determinado Município que tenha conhecida deficiência na oferta de serviços médicos à população junto ao Sistema Único de Saúde (SUS) e resolva ceder um de seus médicos para outro ente federativo, para atendimento de interesse pessoal do servidor cedido, que pretende residir mais próximo de sua família. Evidentemente que tal ato administrativo não atende aos anseios da comunidade daquela localidade e, por essa razão, não deve ser efetivado.
O interesse público que justificar a cessão do servidor deve ser explicitado previamente à sua realização em procedimento administrativo concebido para esse fim, ou mesmo constar do instrumento jurídico que o formalizar, porquanto o motivo constitui pressuposto ou elemento de todo ato administrativo, ensejando, para além de sua melhor fiscalização, que a “validade do ato se vincula aos motivos indicados como seu fundamento, de tal modo que, se inexistentes ou falsos, implicam a sua nulidade”, como anota Maria Sylvia Zanella Di Pietro,13 em observância à teoria dos motivos determinantes.
3.3. Observância do caráter temporário
Também constitui requisito da cessão ter ela caráter temporário. Isso porque se destina à concretização de cooperação entre os órgãos cedente e cessionário durante período certo e determinado, e que, à luz do princípio da razoabilidade, não pode representar a eternização de situações funcionais cuja execução deve sempre se dar em caráter excepcional, precário e transitório.
Do contrário, a cessão de agentes públicos por prazo indeterminado ou demasiadamente longo representaria permissivo para a prática de possíveis desvios nas atribuições originárias dos cargos ou empregos públicos envolvidos e, pior, verdadeira burla à regra do concurso público que anima a estrutura da Administração Pública, infringindo-se, por conseguinte, a diretriz traçada pelo artigo 37, inciso II, da Constituição Federal, a qual estabelece que a investidura em cargo ou emprego público depende de aprovação prévia em concurso público de provas ou de provas e títulos, de acordo com a natureza e a complexidade do cargo ou emprego, na forma prevista em lei, ressalvadas as nomeações para cargo em comissão declarado em lei de livre nomeação e exoneração.
A transitoriedade integra o próprio conceito de cessão de servidores públicos perfilhado por José dos Santos Carvalho Filho:14
Cessão de servidores é o fato funcional por meio do qual determinada pessoa administrativa ou órgão público cede, sempre em caráter temporário, servidor integrante de seu quadro para atuar em outra pessoa ou órgão, com o objetivo de cooperação entre as administrações e de exercício funcional integrado das atividades administrativas. Trata-se, na verdade, de empréstimo temporário de servidor, numa forma de parceria entre as esferas governamentais. Avulta notar, porém, que tal ajuste decorre do poder discricionário de ambos os órgãos e do interesse que tenham na cessão; sendo assim, não há falar em direito subjetivo do servidor à cessão.
Atenta a esse posicionamento doutrinário, a jurisprudência também reconhece o caráter apenas transitório da cessão de servidores, consoante arestos a seguir transcritos:
AGRAVO DE INSTRUMENTO. ADMINISTRATIVO. AÇÃO DECLARATÓRIA E MANDAMENTAL. DECISÃO QUE INDEFERIU A LIMINAR PLEITEADA (…). CESSÃO DE SERVIDOR PÚBLICO QUE POSSUI CARÁTER PRECÁRIO, NÃO SENDO FORMA DE PROVIMENTO EM CARGO PÚBLICO, SOB PENA DE AFRONTA AOS DITAMES CONSTITUCIONAIS. INTERESSE PARTICULAR DOS AGRAVANTES QUE NÃO PODE SE SOBREPOR AO INTERESSE PÚBLICO. POR OUTRO LADO, NECESSÁRIA A INSTAURAÇÃO DE PROCESSO ADMINISTRATIVO EM NOME DOS AGRAVANTES, PARA APURAR A SITUAÇÃO FUNCIONAL DE CADA UM. ATO DISCRICIONÁRIO DE REVERSÃO DA CESSÃO DE SERVIDOR PÚBLICO QUE DEVE SER MINIMAMENTE MOTIVADO, POSSIBILITANDO A AMPLA DEFESA E O CONTRADITÓRIO (…).
(TJPR - 5ª C. Cível - AI - 1215561-6 - Jacarezinho - Rel.: Rogério Ribas - Unânime - J. 04.11.2014).
APELAÇÃO CÍVEL - MANDADO DE SEGURANÇA - SERVIDOR PÚBLICO ESTADUAL - REVOGAÇÃO DA CESSÃO. ATO DE CESSÃO PRECÁRIO E PROVISÓRIO. ATO DISCRICIONÁRIO DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA, QUE SE DEU POR MOTIVOS DE CONVENIÊNCIA, OPORTUNIDADE E INTERESSE PÚBLICO. NÃO DEMONSTRAÇÃO DE QUALQUER ILEGALIDADE. SENTENÇA MANTIDA. RECURSO CONHECIDO E DESPROVIDO. Sendo o instituto da cessão de servidor sempre precário e provisório, bem como sendo um ato discricionário da Administração Pública, pode o mesmo ser revogado a qualquer momento, segundo os critérios de oportunidade, conveniência e interesse público.
(TJPR - 5ª C. Cível - AC - 719992-6 - Jaguariaíva - Rel.: Luiz Mateus de Lima - Unânime - - J. 15.02.2011).
Em regra, a legislação não fixa prazos objetivos para a vigência e prorrogação da cessão de servidores públicos. Porém, como dito anteriormente, há a necessidade de que o respectivo lapso atenda ao princípio da razoabilidade e observe o caráter sempre temporário que deve ser conferido à medida.
A 4ª Promotoria de Justiça da Comarca de Paranaguá, levadas essas circunstâncias em consideração e também a regra de validade dos concursos públicos de que trata o artigo 37, inciso III, da Constituição Federal,15 firmou, no âmbito de suas atribuições em matéria de proteção ao patrimônio público, Compromisso de Ajustamento de Conduta com o Município de Paranaguá para solver diversas situações ilegais envolvendo a cessão de servidores públicos municipais, avençando com o ente municipal prazo máximo de 2 (dois) anos para a vigência dessas cedências, ressalvadas situações excepcionais justificadas no curso de fiscalização das obrigações estipuladas (Inquérito Civil n.º MPPR-0103.09.000048-2).
3.4. Aplicação a cargos ou empregos públicos de provimento efetivo
A cessão deve envolver apenas agentes ocupantes de cargos ou empregos de provimento efetivo junto à origem – vale dizer, que ingressaram nos quadros da Administração Pública por meio de concurso público –, não sendo extensível aos ocupantes de cargos comissionados ou funções públicas de cunho temporário.
Com efeito, há manifesta incompatibilidade entre a natureza e as atribuições dos cargos ou empregos públicos de provimento efetivo em relação aos cargos comissionados e as funções públicas meramente temporárias. Logo, a cedência destes últimos implicaria a potencial caracterização de desvios funcionais no exercício das atividades laborais e também violação à regra do concurso público como forma de acesso ao quadro de pessoal da Administração Pública.
Nesse mesmo sentido, o Estatuto dos Servidores do Paraná, que admite apenas a cessão de servidor público efetivo (artigo 158, inciso III, da Lei Estadual n.º 6.174/70), diferentemente da disciplina em âmbito federal, que não especifica que espécie de servidor pode ser cedido (artigo 93 da Lei n.º 8.112/90).
O posicionamento do Tribunal de Contas do Estado do Paraná seguiu essa mesma orientação, ao analisar cessão de servidor comissionado realizada pelo Município de Foz do Iguaçu:
As considerações mais significativas ao propósito lembram que os cargos comissionados são uma exceção aos dispositivos constitucionais de exigibilidade de concurso público para prover pessoal para as funções de direção, chefia e assessoramento. Não são de sua natureza a prestação continuada de serviços de atendimento ao público e de natureza executiva permanente. Por isso lhes é característica essencial a demissibilidade “ad nuttum”, isto é, a provisoriedade da função, ou quando se esvair a necessidade do assessoramento, da chefia ou da direção.
A ordem lógica e a ordem jurídica que justifica a instituição dos cargos comissionados é a necessidade do Órgão. Não a de outros Órgãos.
O provimento de pessoal administrativo junto a outros Órgãos com titularidade de cargos comissionados originários de Entidades Públicas é uma burla ao que estabelece o Artigo 37 da CF. (…) (Acórdão nº 163/06-Tribunal Pleno).
(Processo n.º 645975/15, Acórdão n.º 6287/15, Tribunal Pleno, Relator Conselheiro Artagão de Mattos Leão, julgado em 17.12.2015).
3.5. Instrumentalização por meio de convênio
Ainda, revela-se imprescindível que a cessão de servidores seja formalizada pela Administração Pública por meio de convênio ou instrumento jurídico equivalente, no qual deverão constar ao menos os fundamentos de interesse público que justificam a sua celebração, o ônus pelo pagamento da remuneração do servidor cedido e o respectivo tempo de vigência da cessão.
Define-se o convênio como forma de ajuste entre o Poder Público e entidades públicas ou privadas para a realização de objetivos de interesse comum, mediante mútua colaboração.16 Para Celso Antônio Bandeira de Mello,17 seria uma modalidade de contrato em que as partes têm interesses e finalidades comuns, diferindo-se da generalidade dos contratos administrativos, em que as partes se compõem para atender a interesses contrapostos e que são satisfeitos pela ação recíproca delas.
O artigo 116 da Lei n.º 8.666/93 estabelece que “aplicam-se as disposições desta Lei, no que couber, aos convênios, acordos, ajustes e outros instrumentos congêneres celebrados por órgãos e entidades da Administração” (caput), elencando ainda uma série de informações que devem constar do ajuste, dentre elas o pressuposto da temporariedade (que é inerente às cessões), ao referir que a “previsão de início e fim da execução do objeto, bem assim da conclusão das etapas ou fases programadas” deve estar aprovada no plano de trabalho que anteceder a celebração do convênio (§ 1º, inciso VI).
Já o artigo 241 da Constituição Federal diz que a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios disciplinarão por meio de lei os consórcios públicos e os convênios de cooperação entre os entes federados, autorizando a gestão associada de serviços públicos, bem como a transferência total ou parcial de encargos, serviços, pessoal e bens essenciais à continuidade dos serviços transferidos. A esse respeito, Uadi Lammêgo Bulos18 pontua que a distinção entre os consórcios públicos e os convênios reside no fato de que os consórcios pressupõem competências iguais aos pactuantes e os convênios competências diferentes.
A não observância desses requisitos ou pressupostos enseja a possibilidade de anulação da cedência, em virtude de vício que lhe inquina de nulidade.
Nesse espeque, o artigo 185, combinado com o artigo 166, ambos do Código Civil,19 disciplina que o ato jurídico é nulo, dentre outras hipóteses, quando for ilícito o seu objeto; o motivo determinante, comum a ambas as partes, for ilícito; não revestir a forma prescrita em lei; for preterida alguma solenidade que a lei considere essencial para a sua validade; tiver por objetivo fraudar lei imperativa; ou quando a lei taxativamente o declarar nulo, ou proibir-lhe a prática, sem cominar sanção. O artigo 2º da Lei n.º 4.717/65 (Lei de Ação Popular), por seu turno, consagra como nulos os atos lesivos ao patrimônio público nos casos de incompetência, vício de forma, ilegalidade do objeto, inexistência dos motivos ou desvio de finalidade.
A invalidação da cedência poderá ocorrer de ofício pela própria Administração, valendo-se do seu poder de autotutela,20 por provocação do Ministério Público na esfera extrajudicial – por meio de Recomendação Administrativa ou obrigação avençada em Compromisso de Ajustamento de Conduta, por exemplo – ou ainda na via judicial, para acolhimento de pedido anulatório formulado pela parte interessada, notadamente em ação civil pública, ação popular ou mandado de segurança.
Para além disso, o vício que inquinar de nulidade o ato poderá sujeitar os seus beneficiários, e os agentes que concorrerem para essa situação de ilicitude, à possibilidade de responsabilização pela prática de atos de improbidade administrativa, guardadas as devidas peculiaridades de cada situação, que requer análise casuística, especialmente para se aferir o elemento volitivo da conduta ilícita.
Nesse caso, as condutas mais comumente amoldar-se-ão, em tese, às figuras típicas aptas a implicar prejuízo ao erário e/ou violação de princípios norteadores da Administração Pública, nos moldes dos artigos 10 e 11 da Lei n.º 8.429/92. Lembre-se que a improbidade é a ilegalidade tipificada e qualificada pelo elemento subjetivo da conduta do agente, e como tal, admite dolo ou culpa em relação à tipologia do citado artigo 10, e apenas o dolo em relação ao artigo 11. Assim defendem Emerson Garcia e Rogério Pacheco Alves21 e também se posiciona a jurisprudência dominante do Superior Tribunal de Justiça.22