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A discussão judicial e administrativa tributária após a Medida Provisória nº 232/2004

04/02/2005 às 00:00
Leia nesta página:

          A Medida Provisória nº 232 (1), adotada pelo Excelentíssimo Senhor Presidente da República e publicada em 30.12.2004, previu diversas alterações na legislação tributária, dentre elas: a correção da tabela progressiva do imposto de renda das pessoas físicas, a majoração da base de cálculo do IRPJ e da CSLL, e o recolhimento de impostos sobre a variação cambial do lucro auferido no exterior.

          Excetuada a correção da tabela progressiva do IRPF, todas as demais alterações promovidas já são objeto de duas Ações Diretas de Inconstitucionalidade movidas pelo Partido da Frente Liberal (ADI 3388) e pelo Partido Democrático Trabalhista (ADI 3385) perante o Supremo Tribunal Federal.

          A referida Medida Provisória previu, em seu art. 10, alterações em vários artigos do Decreto n. 70.235, de 6.3.1972 (2) (DOU de 7.3.1972), o qual dispõe sobre o processo administrativo fiscal, dentre eles um artigo que tratava da vigência de medida judicial e suspensão de eventual procedimento fiscal, a saber:

          "Art. 62. Durante a vigência de medida judicial que determinar a suspensão da cobrança, do tributo não será instaurado procedimento fiscal contra o sujeito passivo favorecido pela decisão, relativamente, à matéria sobre que versar a ordem de suspensão. 

          Parágrafo único. Se a medida referir-se a matéria objeto de processo fiscal, o curso deste não será suspenso, exceto quanto aos atos executórios."

          Referido artigo passou a ter e vigorar com a seguinte redação:

          "Art. 62  A propositura pelo sujeito passivo de ação judicial por qualquer modalidade processual, antes ou depois do lançamento de ofício, com o mesmo objeto do processo administrativo, importa renúncia às instâncias administrativas.

          Parágrafo único.  O curso do processo administrativo, quando houver matéria distinta da constante do processo judicial, terá prosseguimento em relação à matéria diferenciada."

          Além do fato de a alteração ter claramente mudado complemente o teor e alcance da norma regulamentar anteriormente prevista, há dois fatos que chamam muita a atenção e serão abordados no presente trabalho.

          A MP 232, para dar uma maior aplicabilidade a esse artigo, determinou a inclusão de um inciso no art. 16 do Decreto 70.235, que versa sobre o conteúdo e requisitos da impugnação da exigência formulada em auto de infração ou notificação de lançamento. Eis o teor do novo inciso:

          Art. 16.  ................

          .......................

          V - se a matéria impugnada foi submetida à apreciação judicial, devendo ser juntada cópia da petição.

          Por este dispositivo, o impugnante do crédito tributário contra si lançado deve informar na petição impugnatória se submeteu ou não a questão ao crivo do Poder Judiciário, anexando se for o caso a fotocópia da petição inicial.

          Perguntas devem ser feitas quanto à pragmática dessa novel norma.

          Acaso o impugnante não junte as fotocópias da petição, a repartição fazendária responsável não protocolará a impugnação? Se esta não o fizer, restarão os princípios sagrados do contraditório e da ampla defesa.

          Quem analisará se a matéria constante no processo judicial é distinta ou não da questão posta no auto de infração ou notificação de lançamento? A Repartição Fazendária quando do protocolo da impugnação ou as Delegacias de Julgamento, as Auditorias Fiscais, Gerências de Tributação ou os Conselhos de Contribuintes quando da análise da matéria sob julgamento?

          Acaso um desses entes federais, estaduais ou municipais afirme que a matéria não é distinta, qual o mecanismo recursal administrativo será manejado e dirigido a qual órgão para insurgir-se contra essa decisão, com vistas a manter a suspensão da exigência do crédito tributário lançado no auto de infração ou na notificação de lançamento? Senão, o direito de interpor, de fato, recurso administrativo contra as decisões administrativas, conferido pelo art. 56 da Lei 9.784 de 1999 (3), restaria violado.

          Essas perguntas devem ser respondidas para que o contencioso administrativo tributário não se torne inócuo, arbitrário e possa valer o princípio da segurança jurídica tributária na fase do processo administrativo.

          O segundo fato diz respeito à argüição de inconstitucionalidade do parágrafo único do art. 38 da LEF feita em cinco Recursos Extraordinários e que está sendo analisada pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal.

          Tem-se, no presente caso, que a nova redação dada pela MP 232 ao art. 62 do Decreto 70.235 faz tão somente reproduzir a norma contida no parágrafo único do art. 38 da Lei 6.830 de 1980 (4) (LEF):

          Art. 38 - A discussão judicial da Dívida Ativa da Fazenda Pública só é admissível em execução, na forma desta Lei, salvo as hipóteses de mandado de segurança, ação de repetição do indébito ou ação anulatória do ato declarativo da dívida, esta precedida do depósito preparatório do valor do débito, monetariamente corrigido e acrescido dos juros e multa de mora e demais encargos.

          Parágrafo Único - A propositura, pelo contribuinte, da ação prevista neste artigo importa em renúncia ao poder de recorrer na esfera administrativa e desistência do recurso acaso interposto.

          O Informativo de Jurisprudência n. 349 da Excelsa Corte (5) assim noticiou acerca do tema:

          Processo Fiscal: Utilização Simultânea das Vias Administrativa e Judicial

          O Tribunal iniciou julgamento de recurso extraordinário interposto contra acórdão do TJ/RJ, que negara provimento à apelação da recorrente e confirmara sentença, que indeferira mandado de segurança preventivo por ela impetrado, sob o fundamento de impossibilidade da utilização simultânea das vias administrativa e judicial para discussão da mesma matéria, com base no parágrafo único, do art. 38, da Lei 6.830/80 ("Art 38. A discussão judicial da Dívida Ativa da Fazenda Pública só é admissível em execução, na forma desta Lei, salvo as hipóteses de mandado de segurança, ação de repetição do indébito ou ação anulatória do ato declarativo da dívida, esta precedida do depósito preparatório do valor do débito, monetariamente corrigido e acrescido dos juros e multa de mora e demais encargos. Parágrafo único. A propositura, pelo contribuinte, da ação prevista neste artigo importa em renúncia ao poder de recorrer na esfera administrativa e desistência do recurso acaso interposto."). O Min. Marco Aurélio, relator, tendo em conta o entendimento do STF no sentido de independência das esferas administrativa, cível e criminal, nas quais a atuação pode ser simultânea, ressalvada a previsão do art. 1.525, do CC/16, conheceu e deu provimento ao recurso para declarar a inconstitucionalidade do parágrafo único, do art. 38, da Lei 6.830/80, e determinar o prosseguimento do processo administrativo - que, na espécie, fora obstado em decorrência da tramitação de outro mandado de segurança anteriormente impetrado pela recorrente. Entendeu o relator que o dispositivo mencionado ofende o direito de livre acesso ao Judiciário, assegurado pelo art. 5º, XXXV, da CF. Acompanhou o voto do relator o Min. Carlos Britto. Os Ministros Cezar Peluso e Joaquim Barbosa divergiram por considerar que o art. 38, da Lei 6.830/80 apenas veio a conferir mera alternativa de escolha de uma das vias processuais. Após, pediu vista o Min. Gilmar Mendes. Aplicou-se a mesma decisão para outros recursos extraordinários.

           RE 233582/RJ, rel. Min. Marco Aurélio, 27.5.2004.(RE-233582)
          RE 389893/RJ, rel. Min. Marco Aurélio, 27.5.2004.(RE-389893)

         
RE 267140/RJ, rel. Min. Marco Aurélio, 27.5.2004.(RE-267140)
         
RE 234798/RJ, rel. Min. Marco Aurélio, 27.5.2004.(RE-234798)
         
RE 234277/RJ, rel. Min. Marco Aurélio, 27.5.2004.(RE-234277)

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          Estamos de acordo com a tese defendida pelos eminentes Ministros Marco Aurélio e Carlos Britto, qual seja, o processo administrativo tributário deve prosseguir com o julgamento, pelas Delegacias ou Conselhos, de todas as matérias suscitadas nessa via, mesmo havendo a interposição paralela de alguma medida judicial contra o crédito lançado (ou parte dele), sob pena de calcar aos pés o livre acesso ao Judiciário.

          Do contrário, estar-se-ia permitindo, em plena vigência do Estado Democrático de Direito (pelo menos vigor formal), penalizar aos contribuintes ou equiparados que buscassem amparo ao Estado-juiz com uma "penalidade administrativa": - ter imediatamente inscrito em dívida ativa o suposto crédito tributário em discussão judicial, daí vindo ajuizamento de Execução Fiscal, inscrição do nome no CADIN, impossibilidade de obter CND e etc.

          Sabemos que o controle em concreto da constitucionalidade, no qual a eventual declaração de inconstitucionalidade do parágrafo único do art. 38 da LEF é proferido de forma incidental, somente tem efeitos ex tunc e inter partes, como será e é o caso dos Recursos Extraordinários transcritos acima. Haverá, assim, a necessidade de comunicação da decisão ao Senado para que este órgão providencie a suspensão da executoriedade da referida norma, conforme impõe o art 52 X da Constituição de 1988. Somente depois da publicação da competente Resolução do Senado Federal é que será suspensa a executoriedade desse dispositivo, o que provocará a retirada da eficácia jurídica da norma declarada inconstitucional pelo Plenário e a extensão dos efeitos ex nunc e erga ormens. (6)

          Ao nosso ver, a medida em questão incorre em uma prática já repudiada pelo bom Direito vigente que impede o legislador de reeditar norma que já foi ou está em vias de ser declarada inconstitucional pelo tribunal competente, com a retirada de sua validade normativa do ordenamento jurídico.

          O art. 102, §2°, da Constituição de 1988, antes e depois da edição da Emenda Constitucional 45 de 2004, já previa que a decisão declaratória de inconstitucionalidade de uma lei em controle abstrato de constitucionalidade, e por óbvio também com publicação da Resolução do Senado em controle concentrado, teria efeito vinculante contra a Administração Pública, inclusive em desfavor do legislador, isso em virtude da eficácia erga omnes advinda e conferida com essa declaração inconstitucionalidade.

          Esperamos que esse artigo possa levantar discussões sérias e úteis sobre a presente artimanha estampada na MP 232/2004, que visa unicamente a inscrever o mais rápido possível o hipotético crédito tributário em dívida ativa, atropelando as garantias individuais consagradas aos contribuintes pela Constituição Federal para unicamente saciar a sua irrefreável ânsia arrecadatória.


NOTAS

  1. https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2004-2006/2004/Mpv/232.htm
  2. https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/D70235.htm
  3. https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L9784.htm
  4. https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L6830.htm
  5. http://www.stf.gov.br/noticias/informativos/anteriores/info349.asp
  6. Rodrigo César Rebello Pinho. Teoria Geral da Constituição e Direitos Fundamentais, volume 17. 3ª ed. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 47/48.
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Sobre o autor
Vicente Afonso Gomes Jr.

Advogado e Professor de direito tributário da Faculdade de Administração de Governador Valadares (FAGV)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GOMES JR., Vicente Afonso. A discussão judicial e administrativa tributária após a Medida Provisória nº 232/2004. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 577, 4 fev. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/6286. Acesso em: 23 nov. 2024.

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