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Arrendamento mercantil:

atentado contra a sua natureza jurídica

01/02/2000 às 01:00
Leia nesta página:

1. CONCEITO

Existem três espécies de leasing praticados no país: leasing operacional, leasing financeiro e lease back. O presente artigo trata de aspectos relacionados ao leasing financeiro.

O leasing financeiro constitui-se em um negócio jurídico bilateral, pelo qual o arrendatário usa e goza de um bem adquirido pela arrendadora, segundo especificações do arrendatário, por determinado tempo e mediante o pagamento mensal de valores (contraprestações).

As contraprestações correspondem a um meio de retorno e lucro pelo capital investido. Neste ponto é que surgem críticas ao nome adotado pelo ordenamento brasileiro – Arrendamento Mercantil -, no sentido de que a contraprestação não representa custo pelo uso da coisa, nem pela exploração de uma atividade da coisa, fato que o contrasta com a locação e com o arrendamento.

O instituto substitui uma operação financeira de modo que o arrendatário evita imobilizar dinheiro em bens, não perdendo capital de giro, como também lhe traz vantagens tributárias. Assim, é viável, na atualidade, sendo que a rápida saturação dos bens novos no mercado e a desvalorização dos usados vêm tornando inviável a contratação de compra e venda.


2. NATUREZA JURÍDICA

O arrendamento mercantil, quanto à sua natureza, pode ser definido como contrato misto e de adesão.

O instituto em estudo consubstancia em sua natureza elementos jurídicos de mais de um contrato que se juntam, formando uma unidade indissolúvel, nascendo daí outra figura contratual.

Concorrem para formação do arrendamento mercantil os contratos de financiamento, de locação e de compra e venda.

Arnaldo Rizzardo ("Leasing", 2ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1996, p. 12) posiciona-se da seguinte forma:

"O instituto mereceu, por conseguinte, tratamento legal, sendo suas operações típicas, e constituindo um contrato complexo pela combinação de dois ou mais elementos próprios, ou subcontratos, que vêm a formar uma unidade nova, pela sua fusão, na criação de um relacionamento mais complexo e extenso do que resultaria da união de vontades através dos elementos integrantes."

O arrendamento mercantil é, pois, um contrato misto, composto de características de outros contratos, tornando-os inseparáveis (unidade indissolúvel), tendo a função comum de assegurar o resultado do negócio jurídico. O descumprimento ou a inexistência de um desses elementos descaracteriza o contrato como um todo, frustrando seu resultado.


3. CARACTERÍSTICA FUNDAMENTAL DO INSTITUTO

Liberdade de opção ao final do contrato. Esta é a principal característica do instituto.

No momento em que é celebrado o contrato, o arrendatário não possui intenção alguma de contratar a compra do bem objeto do arrendamento. O que existe é somente uma promessa de venda por parte da arrendadora. O instituto permite ao arrendatário uma opção tríplice ao final do negócio jurídico, qual seja:

  1. sua devolução ao arrendador;
  2. renovação do contrato por valor inferior ao primeiro período;
  3. a de tornar-se proprietário do bem, mediante o pagamento de uma quantia complementar (VRG).

Para maior clareza é necessário analisar, ao menos superficialmente, de forma isolada as três opções:

a.) Devolução do bem: neste caso, no fim do contrato o arrendador terá ficado com o bem, mais um numerário superior ao valor do bem quando novo. O arrendatário terá usado e gozado do bem arrendado, da melhor forma que lhe pareceu conveniente. Na verdade, tal situação se assemelha muito à locação.

b.) Renovação do contrato: aqui, após ter pago o arrendatário numerário superior ao valor do bem quando da sua compra, irá continuar pagando parcelas, desta vez menores que as primeiras (afinal de contas o bem desvalorizou-se), para continuar na posse e usufruindo desse bem, agora, usado.

c.) Compra do bem: caso escolha o arrendatário tornar-se proprietário, o valor do bem arrendado fica representado pela soma das prestações pagas ao longo do contrato até seu termo final, somado ao valor residual garantido, assim chamado por representar a complementação do bem (valor não-depreciado, ou mantido pelo bem).


4. CONSEQUÊNCIAS DA COBRANÇA DO
VALOR RESIDUAL ANTECIPADAMENTE

Neste ponto do estudo, ou seja, quando o valor residual garantido é pago antecipadamente, surgem opiniões conflitantes. Pode o valor residual garantido ser pago antes do arrendatário optar pela opção de compra? Quais as conseqüências dessa cobrança antecipada?

O valor residual garantido pode vir a ser cobrado antecipadamente nos contratos de arrendamento mercantil, mas isto tem um preço; determinados efeitos surgirão em decorrência deste ato:

a.) Fere-se de morte característica fundamental do arrendamento, a liberdade de opção. A razão do negócio desaparece quando o arrendatário paga no curso do negócio o valor total do bem, sendo que o leasing tem como objetivo para o arrendatário, no desenvolver do contrato, somente o uso e gozo do bem, e não a compra do mesmo.

b.) O contrato passa a ser de compra e venda.


5. DESCARACTERIZAÇÃO DOS CONTRATOS
DE ARRENDAMENTO MERCANTIL

Muitos contratos de leasing são elaborados sem se respeitar a sua própria natureza jurídica, onde é cobrado o valor residual garantido juntamente com as contraprestações. Maria Elizabeth Pádua Filippetto, ao observar esta realidade, mostra com clareza o seguinte:

"Constata-se na maioria dos contratos firmados pelas instituições financeiras que o valor residual – aquele que deveria ser pago somente se exercida a opção de compra ao final – é colocado ao arrendatário para pagamento desde a primeira parcela mensal, a que os Bancos convencionaram chamar de antecipação do valor residual garantido, de forma que, junto com as prestações mensais o arrendatário também paga parcelas do valor residual." (A Descaracterização do Contrato de Leasing e suas Consequências Jurídicas, www.jus.com.br, Internet).

Arnaldo Rizzardo, em excelente obra (ob. cit., p.61), mostra que se a opção do exercício de compra for realizada antes do término do contrato uma conseqüência advirá: "O contrato não continuará como arrendamento mercantil. Passará a considerar-se como "de compra e venda".

Priscila Maria Pereira Corrêa da Fonseca, ao dissertar sobre o tema, mostra que:

          "Do contrato deve constar expressamente a tríplice opção a favor do arrendatário: adquirir o bem, renovar o contrato ou devolver o bem.

          Tal opção deve ser exercida apenas por ocasião do término do contrato, sob pena de a operação vir a ser considerada como compra e venda." (Novos contratos empresariais. São Paulo, RT, 1990, p. 105/106).

Merece destaque o posicionamento esposado pelo ilustre o Ministro Waldemar Zveiter, ao julgar o REsp n.º 163.845,RS (Superior Tribunal de Justiça, julgamento – 15.06.1999):

"Assim, se o autor está pagando parcelas para amortizar o capital juntamente com o valor residual, resta evidente que está ele, na verdade, pagando o preço de aquisição do bem, não se tratando de verdadeiro leasing.

Tal deve ser declarado, tendo presente que pouco importa o nomen juris que as partes tenham dado ao contrato, a sua natureza jurídica deve ser inferida do efetivo teor das cláusulas avençadas e do que em concreto elas significam em sua operacionalidade."

Em magistral voto, destaca o Ministro do STJ, Rui Rosado de Aguiar, ao decidir o REsp 181.095-RS, de 18.03.1999:

"Uma conseqüência dessa cobrança antecipada é que se elimina a opção de compra, pois é a única alternativa que resta a quem já pagou antecipadamente o preço. O Em. Ministro José Augusto Delgado, ao considerar a hipótese de ser imposta ao arrendatário a obrigação de aquisição, com eliminação da opção, assim se manifestou: "Tenho a cláusula que impõe obrigatoriedade do exercício de tal manifestação (compra) como leonina. Não se pode deixar de considerar que essa opção deve ser entendida como em harmonia com os interesses negociais do arrendatário, inclusive de suas condições financeiras. A imposição do arrendador viola o princípio da livre manifestação e o da razoabilidade negocial." (Leasing, Doutrina e Jurisprudência, Juruá, 1997, p. 128)."

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Parece clara a situação. O arrendador impõe (através de um contrato de adesão, onde as cláusulas são pré-estabelecidas unilateralmente, não podendo o arrendatário discuti-las antecipadamente) um contrato de "arrendamento mercantil" desnaturado no que tange à sua natureza jurídica (contrato misto), como também quanto à sua característica fundamental (liberdade de opção). Ora, tal ato obriga o arrendatário ao pagamento integral do bem (contraprestações cumuladas com VRG), obrigando-o, ao final do contrato, a comprá-lo. Com isso, mesmo que exista cláusula contratual estipulando o exercício da livre opção de escolha ao final, ela se torna inócua e sem sentido.

Com isto, se o arrendatário paga parcelas para amortizar o capital, juntamente com o VRG, é evidente que na verdade ele está adquirindo o bem. É sempre bom lembrar que não importa o nome ou emblema dado aos negócios jurídicos. Deve-se, sim, analisar o conteúdo contratual dos mesmos (natureza jurídica, requisitos, características essenciais, etc.).


6. CONCLUSÃO

Percebe-se que a liberdade contratual cria situações que agridem o consumidor – frise-se que tal estudo não visou tratar do assunto sob a ótica consumerista, pois daí teríamos assunto para criar novo artigo, talvez até mais abrangente no sentido de demonstrar as conseqüências desastrosas que os arrendadores impõem aos consumidores ao agirem da forma abordada e, por fim, as penalidaes a que estariam sujeitos ao atropelarem o prescrito nas normas protecionistas em favor do consumidor – quando a parte hiposuficiente legisla de forma autoritária e unilateral visando, talvez, maior ganho, no que de fato, muitas vezes sucesso tem.

A descaracterização do arrendamento mercantil e conseqüente consideração em contrato de compra e venda surge como forma de coibir abusos por parte dos arrendadores, pólo presumivelmente mais forte na relação e, a contrário senso, evitar prejuízos aos arrendatários.

Quando o valor residual garantido é cobrado antecipadamente, o propósito do leasing , o qual seria oferecer recursos para uso e gozo de bens, sem que o arrendatário tenha que dispor de grande quantidade de capital, é afetado. A liberdade de opção é igualmente amputada do contrato, perdendo todo sentido qualquer cláusula contratual que a ampare. A natureza do instituto que, conforme analisado, corresponde a um contrato misto, fica desvirtuada, sendo que a "opção" de compra é praticamente a única que restará ao arrendatário.

Assim, a desconfiguração do leasing em contrato de compra e venda é necessária. Não se entendendo assim, o arrendatário empobreceria, pagando valores (VRG) que deveriam somente ser pagos ao final do contrato, caso exercesse a opção de compra do bem arrendado, em decorrência da liberdade de optar, que a natureza do instituto lhe reserva.

As arrendadoras, ao contrário, só têm a lucrar. Isto porque, através do "leasing" desnaturado, a pretexto de taxas menores e maior pagamento, as mesmas atraem os consumidores para assinatura de um contrato que lhes ofereça maior poder coativo na cobrança do crédito ali representado, podendo, inclusive, destituir o arrendatário da posse do bem (ação de reintegração de posse). Levariam vantagem, também, no que se refere ao lucro, pois é sobre o valor da prestação mensal (nesses contratos desnaturados são contraprestações mais VRG) é que incidirão juros e outros acréscimos.

O leasing é leasing, e pronto. O instituto tem suas características próprias, não se podendo alterá-las sob quaisquer pretextos. Quando isso acontece, alguma coisa está errada. Os tribunais brasileiros, atentos a este episódio, em acertadas decisões têm aderido à tese abordada, descaracterizando contratos de "leasing" elaborados em total desconformidade com a sua própria natureza, além de ferirem princípios basilares da boa-fé e da equidade, e que, na verdade, representam uma farsa com o intuito único de dar mais poderes a quem já os tem de sobra.

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Sobre o autor
Lúcio Delfino

advogado e consultor jurídico em Uberaba (MG), doutor em Direito Processual Civil pela PUC/SP, professor dos cursos de graduação e pós-graduação da UNIUBE/MG, membro do Conselho Fiscal (suplente) do Instituto Brasileiro de Política e Direito do Consumidor (BRASILCON), membro do Instituto dos Advogados de Minas Gerais, membro da Academia Brasileira de Direito Processual Civil, diretor da Revista Brasileira de Direito Processual

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

DELFINO, Lúcio. Arrendamento mercantil:: atentado contra a sua natureza jurídica. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 5, n. 39, 1 fev. 2000. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/629. Acesso em: 22 dez. 2024.

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