Paradoxo histórico-epistemológico na autonomia das instituições como formação das políticas públicas

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21/12/2017 às 12:49
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3. Ausência de Estados

Pode-se afirmar, com certeza, que as mudanças atuais ocasionaram o rompimento das fronteiras dos Estados.

Não há país, por mais fechado que seja, que consiga viver isolado, não podendo nenhum Estado ignorar e nem fugir do mercado mundial e nem viver alheio às inovações e às consequências, às vezes funestas, do mercado mundial.

Cinco fatores marcantes caracterizam esta fase atual da sociedade: desterritorialização, mercado mundial irresponsável, governos nacionais fracos, formação de um mercado e de uma sociedade mundiais mas não de um Estado mundial, e, por fim, a insegurança e risco inevitáveis.

3.1. Desterritorialização

Os territórios fugiram ou estão fugindo do controle dos povos. Exemplos típicos são os blocos comerciais e o comércio virtual através da internet.

As pessoas não precisam mais dos territórios para viver. Ademais, ainda que precisassem, elas não têm como submeter os territórios a seus interesses.

A evolução social rompeu as fronteiras territoriais, havendo um mundo novo em que o indivíduo não se contenta mais com o que é fornecido pelo seu Estado. As vantagens e facilidades tecnológicas romperam estas barreiras, sendo inconcebível hoje que alguém viva somente com os bens, produtos e serviços produzidos e fornecidos pelo seu território.

 

3.2. Mercado mundial irresponsável

 

Fonte desta nova sociedade é um novo mercado, sem fronteiras e altamente competitivo.

O mercado está acima dos governos, dos territórios, e até mesmo dos consumidores concretos, o que significa que o mesmo não se submete a qualquer forma de controle, não tendo responsabilidade por seus atos.

Esta irresponsabilidade exige uma atuação conjunta da sociedade a nível mundial, juntamente com os entes de direito público internacional, eis que a ausência de contenção e regulação dos efeitos funestos tende, inexoravelmente, a levar a uma destruição dos valores sociais, colocando em risco até mesmo toda a sociedade.

3.3. Governos nacionais fracos

Regular sempre foi uma função estatal, advinda do seu poder de polícia, imprescindível para a ordem e a segurança jurídica dos povos.

No entanto, a cada dia os Estados diminuem suas condições de praticar políticas ativas e autônomas, levando-os a perder força, e fazendo surgir “mercados fortes e Estados fracos” (Nogueira, 2008), não só na economia, mas em todos os ambientes, tais como na segurança, saúde, direito etc.

3.4. Formação do mercado e da sociedade mundiais

Dante Alighieri (*1265; †1321) já sonhava com uma humanidade unificada, quando, em sua obra Monarchia (1310, republ. 1839)  (Alighieri, De Monarchia na internet, 1310 - Divulgado em 2008), tentava demonstrar a falta de harmonia que existia na Europa do seu tempo. Para ele, além da ação da igreja – responsável pela salvação das almas dos cristãos – deveria haver uma única autoridade terrena, capaz de ministrar a justiça entre os homens, gerando a paz na terra, um ‘monarca temporal’, alguém acima dos demais governantes que os superasse em poder e, como já possuísse tudo e nada pudesse lhe corromper a alma, a sua única finalidade seria o bem comum.

O retrato deste ‘monarca temporal’ assim foi definido por Dante Alighieri:

Urbi ergo non est quod possit optari, inpossibile est ibi cupiditatem esse: destructis enim obiectis, passiones esse nom possunt. Sed Monarcha non habet quod possit optare: sua nanque iurisdictio terminatur Occeano solum (De Monarchia, 1310, republ. 1839) [2]

Além de Dante, o filósofo lusitano Luis Cabral de Moncada (*1888; †1974) apontou também para a necessidade de haver uma sociedade una, cujas normas jurídicas fossem iguais para todos (O direito internacional público e a filosofia do direito, 1955, pp. 36-71), eis que, segundo ele, somente após esta união e integração mundial é que o direito “terá deixado de ser internacional, interestatal, e terá passado a ser supranacional ou supra-estatal” (O direito internacional público e a filosofia do direito, 1955, p. 70).

Este prognóstico, hoje, materializa-se em termos. Num primeiro plano, esta materialização ocorre através das relações econômicas mundiais, existindo um mercado mundial controlador e regulador, homogeneizando o consumo e, também, inúmeros outros interesses de ordem pública e privada na vida das pessoas.

Deste modo, cria-se uma sociedade mundial, unida pelas mesmas necessidades e anseios, sociedade esta que se torna inseparável mesmo diante da distância física, barreiras estatais e peculiaridades tradicionais.

Ocorre que esta nova ‘sociedade mundial’, integrante deste novo ‘mercado mundial’, carece de um ‘Estado mundial’, forte o suficiente para evitar os abusos e as violações à segurança jurídica das novas relações criadas.

3.5 Insegurança e risco inevitável

As mudanças repentinas fazem parte do mundo atual, o que gera instabilidade social.

A principal causa deste temor é, sem dúvidas, o engessamento do Estado, a sua paralisia, para enfrentar esta nova onda de mudanças.

Os Estados têm sido fracos, consequência de vários fatores, principalmente da formação de um mercado mundial sem a existência de um Estado mundial, como visto no item anterior.

A ausência do poder dos Estados pode ser visualizada em vários setores, e onde este Estado nacional existe, atua com fraqueza, numa timidez que gera riscos, violências etc.

Os casos de insegurança e risco inevitáveis decorrentes dos Estados nacionais fracos podem ser vistos, por exemplo, no desemprego ameaçador, nas consequências dos produtos geneticamente modificados, na bioética, na instabilidade das bolsas de valores etc.

Contudo, é possível reverter esta instabilidade, realizando uma prospecção e analisando as necessidades sociais, sem fugir das mudanças e, ao mesmo tempo, evitando os riscos, de modo a se adaptar às novas realidades.

Esta mudança está ligada, diretamente à regulação jurídica destas transformações, o que somente poderá se dar através de uma legislação coerente, eis que, como visto, a situação atual é supranacional, e, desta forma, a necessária intervenção realizar-se-á no mundo contemporâneo se conseguir romper com as barreiras estatais.


4. NOVAS SOCIEDADES

O surgimento de novas sociedades é outra característica marcante deste novo modelo social contemporâneo.

Primeiramente, cabe esclarecer que comunidade não é sinônimo de sociedade.

Ficou célebre a distinção operada pelo sociólogo alemão Ferdinand Toennies (*1855; †1936), que definia Comunidade (Gemeinschaft) como um agrupamento com “vontade essencial” (Wesenwille), sendo íntima, privada, informal e afetiva, ao passo que a Sociedade (Gesellschaft) é pública e formal, é a existência por ‘vontade de escolha’ (Kurwille) (Gemeinschaft und Gesellschaft; reimpr.: Wissenschaftliche Buchgesellschaft, 1887, reimpr. 2005, pp. 97-171) (Toennies, 1979, pp. 102-185).

Logo, a questão é saber se estes novos agrupamentos mundiais são uma comunidade ou sociedade! Como uma família, que no início é comunidade em relação ao filho menor, e depois pode [ou não] virar sociedade, assim também as pessoas ligadas pelas relações atuais são, no início, comunidade mas, pela regulamentação racional e consciente (atuação positiva e naturalidade) tornam-se verdadeiras sociedades, eis que são ligadas exatamente pela abertura de um leque imenso que lhes proporciona a ‘vontade de escolha’ ou Kurwille.

Os fatores marcantes da atualidade mundial caracterizadores destas novas sociedades emergentes são: fragmentação, individualização, tendência à atomização, hiper-comunicabilidade e ambiguidades, fatores estes que se passa a discorrer, na busca da solução para o problema do esfacelamento do sistema político e jurídico atual.

4.1. Fragmentação

O surgimento das novas sociedades, as quais não são ligadas pelos laços sanguíneos e nem afins, e muito menos decorrentes de situações territoriais ou tradicionais, está pervertendo a natureza social.

As novas tendências sociais e movimentos liberais discutíveis e contrários à ética tradicional, a facilidade de comunicação advinda dos aparatos eletrônicos (conhecidas como ‘comunidades virtuais’), os novos movimentos mundiais disseminados na internet, as comunicações televisivas, e tantas outras formas modernas de manifestação de vontade, inevitavelmente estão despedaçando os grupos existentes.

Este despedaçamento dos grupos torna-se mais grave pelo motivo de que, destes novos movimentos, surgem dificuldades para os grupos articularem-se e procederem ou manterem a sua unificação, desestabilizando também os grupos já existentes, que se enfraquecem e se esfacelam.

É paradoxal, mas a conclusão que se chega é a de que, quanto maior a possibilidade de informação, menor será a união, chegando a se utilizar analogicamente, ou até mesmo parafrasear, a aplicação no presente caso da terceira lei natural do físico Isaac Newton (*1643; †1727) (Philosophiae Naturalis Principia Mathematica, 1687), segundo a qual “Actioni contrariam semper et aequalem esse reactionem”[3].

4.2. Individualização

A vocação individualista é um fator desta transição social, na qual as pessoas buscam se desamarrar dos grupos preexistentes.

Surge o homem solitário, o qual se mantém nos grandes centros urbanos como verdadeiro sobrevivente das selvas de pedra.

Esta atitude advém da adaptação ao novo mundo competitivo e também na busca pela auto-suficiência. Ora, tornam-se cada dia mais comuns as famílias monoparentais, integradas por um único membro, que não quer se unir a ninguém, e supre suas necessidades através de meios alternativos, tais como a internet, as boates, clubes sociais, dentre outros.

A individualização é também vista como autodefesa das pessoas diretamente afetadas física ou psicologicamente pela insegurança jurídica, a qual é reflexo das novas tendências contemporâneas.

Porém, os casos mais graves de individualização ocorrem quando há abandono, ou seja, no isolamento decorrente de viuvez, divórcios e de nascimentos fora do casamento.

Tais acontecimentos provocam consequências gravíssimas e aberrantes de famílias alternativas, sendo a principal delas a sobrevida abaixo da linha de pobreza.

Por óbvio, as crianças nascidas das famílias monoparentais não têm a instrução necessária e, no mais das vezes, padecem de recursos financeiros para sobreviver, além da impossibilidade de convivência com ambos os progenitores, o que, inexoravelmente, afetará também seu desenvolvimento psicológico.

Tal preocupação sempre esteve presente nos discursos de grandes estadistas, tais como o ex Primeiro-Ministro da Inglaterra Tony Blair (*1953), que assim se manifestou a respeito:

Não se trata de fazer sermões às pessoas sobre a sua vida íntima; trata-se, sim, de enfrentar um enorme problema social. Os comportamentos mudaram. O mundo mudou. Mas eu sou um homem moderno, governo um país moderno e isto é uma crise moderna. Quase 100.000 adolescentes engravidam todos os anos. Há idosos cujas famílias não se dispõem a tomá-los a seu cargo. Há crianças que crescem sem referências ou modelos que possam respeitar e dos quais possam retirar ensinamentos. Há mais pobreza, e é mais profunda. Há mais absentismo escolar. Mais desprezo pelas oportunidades de educação. E sobretudo mais infelicidade. É essa infelicidade que temos de mudar. O que vos posso garantir é que todas as áreas da política deste Governo serão dissecadas para avaliar de que forma afetam a vida familiar. (Mensagem à Conferência do Partido Trabalhista Lisboa, 1997 - divulg. 2000, p. 25)

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Portanto, nota-se que a individualização contemporânea possui várias faces, mas todas estas faces levam, inevitavelmente, à desunião e à desestruturação social, efeitos funestos deste novo modelo de organização pessoal.

4.4. Dissolução dos laços basilares

De maneira geral, o estilo de vida das pessoas está se afetando, contrariando modelos previamente definidos a antes aceitos como paradigmas para uma vida sadia e com objetivos delimitados.

A família, que sempre foi base da sociedade, passa por dificuldades de sobrevivência, com danos irreversíveis devidos à sua desestruturação.

A facilidade exigida neste mundo moderno é, em grande parte, causadora das dissoluções familiares.

A desestruturação familiar já ocorre na sua origem, eis que a facilidade nas uniões dá-se, muitas vezes, prematuramente, sem uma base firme e sólida suficientemente para enfrentar uma vida em comum.

As mutações sociais e o convívio de outras visões mundiais que, equivocadamente, aparentam ser opções, são em verdade um engodo a causar a ruptura da base sólida em que assentam as entidades familiares.

4.5. Hiper-comunicabilidade

O excesso de comunicação tem causado grande prejuízo ao convívio social. A aquisição de outras experiências acomoda o ser social, a ponto de não mais necessitar adaptar-se ao meio em que vive, uma vez que possui outras inúmeras alternativas de sociedade que lhe são mais vantajosas numa primeira vista.

Pequenas localidades, que antes eram desconhecidas, hoje despontam como opções seguras graças à comunicação.

A hiper-comunicabilidade não tem fronteiras, conhece todas as línguas, domina experiências de outros grupos e faz a opinião individual ter um real valor.

Não é por outro motivo que, dia após dia, o mundo encontra na tecnologia muitos novos meios de ampliar esta teia da comunicação a todos os setores.

Porém, os efeitos colaterais são evidentes e funestos.

A privacidade deixa de existir na hiper-comunicabilidade; o indivíduo, cada vez mais rotulado pelos instrumentos de comunicação, tem sua identidade, traços físicos, comportamento, atitudes, gestos, maneiras de sentir e de ver o mundo, esmiuçados por outras pessoas, as quais na maioria das vezes nem conhece, e passa a ser vítima de uma publicidade indesejada, que o tirará da sua vida cotidiana para o transformar em objeto de estudos e de submissão a comportamentos estereotipados.

4.6. Paradoxos

O ser social contemporâneo convive com conflitos diários, que o dividem e o fazem se sentir peça quase insignificante de um grande e interminável quebra-cabeça.

O sociólogo brasileiro Marco Aurélio Nogueira cita as inúmeras ambiguidades que afetam o homem moderno, eis que, segundo ele, o individuo de hoje convive com “muito desespero e ao mesmo tempo esperança, citicismo e convicção, pessimismo e otimismo, atos de barbárie com oportunidades de avanço” (A Sociedade contra a política, 2008).

Esta onda de paradoxos advém da própria essência da sociedade moderna, eis que hoje o mundo está interligado em rede mas, neste mesmo tempo, as pessoas estão afastadas, divididas, isoladas em seu próprio mundo.

O indivíduo moderno é preparado, por exemplo, para enfrentar uma notícia desastrosa que vitime milhares de pessoas e, de imediato, anotar uma receita de bolo sem se incomodar e nem se comover com a tragédia que acabou de lhe ser repassada.

A confusão mental advinda destes paradoxos impossibilita a formação de uma ideia fixa sobre o fim social e o bem comum, fornecendo a falsa ideia do egoísmo, o que leva a pessoa a se preocupar somente consigo mesma e acreditando que todos os demais problemas sociais devem ser resolvidos por grandes corporações e instituições externas e abstratas, tais como o Estado, as organizações não-governamentais, a igreja, enfim, os demais sujeitos e entes, que na cabeça do ser humano contemporâneo, são de certo modo abstratos e responsáveis únicos pela estabilidade social.

 

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Sobre o autor
Everson Manjinski

Professor do Departamento de Direito das Relações Sociais, Setor de Ciências Jurídicas da Universidade Estadual de Ponta Grossa, PR.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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