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A regulação do gás natural no Direito Comunitário europeu e no Mercosul

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I – Aspectos Introdutórios da Regulação do Gás Natural

O presente estudo terá como objetivo primordial fazer uma análise da regulação do gás natural vigente na União Européia e no Mercosul. Abordará, antes, as práticas internacionais neste sentido, expondo os aspectos que costumam ser tocados pelas formas regulatórias adotadas em alguns países, inclusive pelo Brasil. Por fim, concluiremos com a comparação entre os dois modelos de regulação internacionais postos, destacando a importância e a necessidade da fixação de diretrizes para o mercado do gás no Cone Sul.

Nos últimos anos a estrutura de mercado da indústria de gás natural em diversos países vem sofrendo profundas modificações introduzidas principalmente pelos próprios governos, com a intenção de aumentar o grau de concorrência neste setor da economia. Estas mudanças, é claro, geram um impacto evidente no marco regulatório da indústria.

Em alguns países, a inauguração de uma regulação aplicada ao setor assinalou para o fim de uma era de oligopólios de poucos agentes, baseada em contratos de fornecimento de longo prazo e preços regulados. A introdução de forças de mercado, ou seja, de concorrência, como uma importante ferramenta de regulação, a separação contábil e até mesmo societária de serviços de transporte das atividades de produção e comercialização do gás (quebra da integração vertical) são alguns exemplos que espelham a tendência do setor nestes locais. Essas mudanças foram impulsionadas por evoluções, tanto na área de fornecimento, quanto na área de consumo já que a produção de gás foi diversificada com novos campos e novos países produtores, significando novos agentes e novas estratégias de mercado. No lado da demanda, pode-se facilmente perceber uma importante evolução vinda especialmente do setor elétrico.

Mas essa, infelizmente, ainda é uma realidade restrita a poucos lugares onde o mercado do gás e a regulação do setor já estão bem desenvolvidos. Na grande maioria dos países, como no Brasil, por exemplo, o que se tem é uma adaptação da regulação do petróleo ao mercado do gás o que, evidentemente, não contribui, pelo contrário, impede, o seu desenvolvimento.

Apesar de nos segmentos de exploração, desenvolvimento e produção, o mercado de gás se assemelhar ao do petróleo, em todos os outros segmentos da cadeia produtiva o gás passa a operar segundo uma estrutura de rede, se aproximando bem mais de outros setores da economia, como o de energia elétrica, no que tange sua à regulação.

O mercado de gás, portanto, necessita de um aparato regulatório eficiente, que leve em consideração suas características específicas e promova o investimento no setor. Neste sentido, as preocupações demonstradas pelos reguladores no plano internacional tocam três principais aspectos. Primeiramente a necessidade de se introduzir e se desenvolver a concorrência neste setor. Busca-se, com isso, remover as barreiras que impedem a entrada de novos agentes e monitorar o crescimento do poder de mercado.

O segundo ponto diz respeito ao transporte e às condições de acesso de terceiros aos gasodutos. Isso porque as atividades deste segmento da indústria apresentam características de monopólio natural, o que obstaculiza a concorrência horizontal, ou seja, a presença de vários transportadores. Este segmento implica altos custos, se insere em um contexto de economia de escala e, por isso, acompanha sérios riscos de sub-utilização da rede o que faz com a construção de diversos gasodutos paralelos mostre-se economicamente ineficiente Tudo isso acaba contribuindo para o monopólio de poucas empresas neste setor e, é claro, uma empresa monopolista goza de um poder de mercado que pode conduzi-la a práticas nocivas ao consumidor, já que não sofre as pressões competitivas do mercado, estando protegida por barreiras econômicas à entrada de outros agentes.

Reconhecendo isso, os reguladores buscam definir formas regulatórias que garantam não somente seu funcionamento, como também o acesso de terceiros à rede de forma indiscriminada, obrigando o proprietário a disponibilizar a capacidade ociosa dos gasodutos para o uso dos agentes interessados, mediante a cobrança de tarifas.

E finalmente, o terceiro ponto cuida da qualidade e regularidade da distribuição, bem como das tarifas deste segmento.

Não existe um consenso no plano internacional sobre as formas de ataque aos pontos acima. De toda maneira, a atuação do regulador e dos agentes setoriais em geral sofrem, hoje, pressão considerável por parte dos consumidores e apóia-se na cooperação com os órgãos de defesa da concorrência, contrariamente a um passado não muito distante, onde as preocupações com a segurança de abastecimento e parâmetros macro-econômico tinham posição central no debate.

No Brasil, as atuais regras existentes - as disposições da Lei do Petróleo, bem como a regulação expedida atualmente pela ANP - não são mais suficientes para regular a indústria do gás natural, que, como já dissemos, demanda regras mais bem definidas e fatores que estimulem o investimento. Desde a abertura do mercado de petróleo, promovida pela Emenda Constitucional n.° 09 de 1995, a Lei 9.478/97 está sendo o marco regulatório básico para o setor de gás natural brasileiro. Analisando-se, porém, essa lei, verifica-se que a mesma foi criada para disciplinar a atividade petrolífera, tratando a indústria do gás natural apenas como acessório desta.

Mas não são apenas as medidas tomadas no âmbito interno que contribuem para a criação de um marco regulatório do gás. Atos internacionais como a ratificação de um tratado que versa sobre o meio ambiente, por exemplo, possuem reflexos diretos na indústria do gás uma vez que condiciona esta ao respeito dos padrões internacionais. De forma ainda mais acentuada, influem na regulação do gás a formação de blocos econômicos como aqueles em curso na Europa e na América do Sul e sobre os quais trata mais especificamente o nosso trabalho.


II – Regulação Internacional: A Regulação do Gás Natural nos Blocos

Vive-se atualmente em um mundo moderno de tendência globalizante, em que se busca a integração, prioritariamente econômica, todavia fins políticos e jurídicos são também claramente almejados. O nascimento de organizações que congreguem interesses comuns tem como fundamento o alcance de tais metas de integração através de políticas básicas comunitárias ou intergovernamentais, promovidas por um ente supranacional ou interestatal. Tais são os casos da União Européia, em âmbito regional, e do Mercosul, em âmbito sub-regional, respectivamente.

Passaremos, portanto, a uma análise acerca das normas estabelecidas por essas duas organizações internacionais relacionadas com a regulação da indústria do gás natural, destacando os principais pontos que ambas trazem aos seus Estados-membros voltados à indústria do gás natural. É importante, ainda, caracterizar a norma jurídica que coroa esses atos, afim de que possamos observar qual a força vinculativa que as mesmas assumem perante a União Européia, o Mercosul e seus Estados membros, ressaltando, sobretudo, o seu grau de aplicabilidade, tendo em vista a natureza jurídica dos atos que constituíram essa chamada, Regulação Internacional do Gás.

Objetivando a necessidade de se estabelecer parâmetros regulatórios internacionais, buscaremos agora analisar os aspectos expressivos da Diretiva 55 de Junho de 2003 do Parlamento e do Conselho Europeu, que apontou para a abertura dos mercados nacionais, implantação do livre acesso aos sistemas de transporte de gás e introdução da concorrência no setor de maneira integrativa. Em seguida, no que diz respeito ao Mercosul, estabeleceremos um estudo da proposta de Regulamento de Transparência e Livre Acesso aos Sistemas de Transporte de Gás Natural à luz do Memorando de entendimento relativo aos intercâmbios gasíferos e integração gasífera entre os Estados membros do Mercosul, atualmente em fase de aprovação pelo Conselho do Mercado Comum, apontando suas principais questões, semelhantes aos objetivos europeus, contudo ressalvando-se preciosas diferenças em seu conteúdo.

II.1 – Experiência Regulatória no âmbito da União Européia

II.1.1. A Diretiva 30/98 como marco inaugural da Regulação Internacional Européia

Sendo assim, em 1998, considerando o fato de que o estabelecimento de um mercado concorrencial do gás natural constituiria importante passo no sentido da criação do mercado interno de energia, o Parlamento Europeu e o Conselho da União Européia adotaram a "Diretiva nº 30 de 22 de junho de 1998" relativa às regras comuns para o mercado do gás natural.

Esta importante norma jurídica emanada de uma nova Europa inovou em diversos aspectos, procurando estabelecer certas regras relativas ao mercado gasífero não mais em um pensamento egoísta, fechado, mas sim estabelecer regras para este extenso e dificultoso mercado em termos de regulação sob uma ótica desgarrada de visões retrógradas e não mais apegadas em decisões que obstacularizavam qualquer ato integrativo em detrimento da soberania estatal.

A Diretiva 30/98 cresceu e se solidificou considerando que a concretização de um mercado concorrencial do gás natural constitui um importante passo no sentido da criação do mercado interno da energia. O mercado interno europeu compreende um espaço sem fronteiras internas no qual a livre circulação das mercadorias, das pessoas, dos serviços e dos capitais é assegurada, necessitando apenas que sejam adotadas medidas para prosseguir ao real funcionamento do mesmo.

A Diretiva 296 do Conselho Europeu, de 31 de Maio de 1991, relativa ao trânsito de gás natural nas grandes redes e a Diretiva 377, também do Conselho, de 29 de Junho de 1990, que estabelece um processo comunitário que assegure a transparência dos preços no consumidor final industrial de gás e eletricidade deram início a uma primeira fase da realização do mercado interno do gás natural. Contudo, em 1998 se tornava necessário que se tomassem novas medidas destinadas à concretização do mercado interno do gás natural. Essas novas medidas vieram cristalizadas exatamente na forma da Diretiva 30/98.

É de extrema valia que se ressalte a preocupação da União Européia com a progressividade da concretização do mercado interno, de modo a permitir a adaptação flexível e ordenada da indústria ao seu novo contexto e a atender à diversidade de estruturas de mercado dos Estados-Membros.

Em razão da necessidade existente de se respeitar os diferentes graus de desenvolvimento do mercado de gás natural de cada país da União Européia, as regras estabelecidas pela Diretiva 30/98 são colocadas apenas como princípios gerais de enquadramento, cuja aplicação concreta deve ficar a critério dos Estados-Membros, permitindo, assim, que cada um mantenha ou escolha o regime que melhor corresponda à sua situação específica. Neste ponto verifica-se o forte apego desta norma jurídica comunitária ao principio da subsidiariedade, assim como aconteceria com a outra Diretiva que haveria por vir.

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A despeito de destacar a importância da abertura dos mercados nacionais e do acesso às redes de transporte a terceiros para a integração e o desenvolvimento energético na Europa, a Diretiva de 98 levou em consideração a situação em que se encontravam os mercados e os tipos de contratos vigentes no momento, permitindo, destarte, que esta reestruturação do setor de gás se desse progressivamente. Com isso, a Comissão da União Européia visou respeitar os diferentes níveis de desenvolvimento e abertura do setor de gás em cada país, de maneira a garantir a segurança do abastecimento, o respeito ao meio ambiente e as obrigações características dos serviços públicos presentes na indústria do gás natural.

II.1.2. A Diretiva 55/2003

Todavia, subsistiam deficiências significativas e possibilidades de melhorar o funcionamento do mercado, sendo necessárias medidas concretas, nomeadamente, para assegurar condições de concorrência eqüitativas e para reduzir os riscos de ocorrência de posições dominantes no mercado e de comportamentos predatórios, garantindo tarifas de transporte e distribuição não discriminatórias através do acesso à rede com base em tarifas publicadas antes da sua entrada em vigor, garantindo a proteção dos direitos dos pequenos clientes e dos clientes vulneráveis.

Estava aberto o caminho para uma revisão da Diretiva 30/98 e o surgimento de uma nova norma que viesse a contemplar os novos pensamentos relativos à problemática do mercado interno europeu, tendo em vista os problemas surgidos. Foi neste sentido que o Conselho Europeu, reunido em Lisboa, em 23 e 24 de Março de 2000, apelou a uma ação rápida tendo em vista concretizar totalmente o mercado interno no setor gasífero, acelerando a sua liberalização, com o objetivo de viabilizar um mercado interno plenamente operacional.

As prerrogativas que o Tratado de Maastrich garante aos cidadãos europeus, nomeadamente a liberdade de circulação de mercadorias, de prestação de serviços e de estabelecimento, pressupõem um mercado plenamente aberto que permita a todos os consumidores a livre escolha de fornecedores e a todos os fornecedores o livre abastecimento dos seus clientes. Trazendo essa discussão para o aspecto do gás natural, essa liberdade idealizada deve considerar iniciativas e medidas destinadas a favorecer a reciprocidade das condições de acesso às redes de países terceiros e a integração do mercado europeu como um todo, atendendo ao aumento previsto da dependência no que se refere ao consumo de gás natural.

Como dito outrora, uma concorrência eficaz implica um acesso à rede não discriminatório, transparente e a preços justos. É isso o que a Diretiva busca implantar na seara européia, ponderando continuamente que para a plena realização do mercado interno do gás, é da máxima importância o acesso não discriminatório às redes dos operadores de transporte e de distribuição. Neste sentido, e buscando chegar a um estágio em que se atinja esses princípios basilares que informam essa integração, é destacado pela Diretiva de 2003 que para assegurar tal acesso é conveniente que as redes de transporte e de distribuição sejam exploradas por entidades juridicamente separadas nos casos em que existam empresas verticalmente integradas.

Outro ponto que merece destaque no símbolo de harmonização jurídica européia para o gás natural é a questão da existência de uma regulação eficaz por parte de uma ou mais entidades reguladoras nacionais, tendo em conta que isto se consubstancia em um fator importante na garantia de acesso não discriminatório à rede. Sendo assim, os Estados-Membros devem especificar as funções, competências e poderes administrativos dessas entidades reguladoras. É importante que as entidades reguladoras de todos os Estados-Membros partilhem o mesmo conjunto mínimo de competências. Com o intuito de mais ainda regular o mercado de uma maneira equânime, a Comissão Européia manifestou a intenção de criar um Grupo Europeu de Entidades Reguladoras para os Mercados do Gás, que constituiria um mecanismo consultivo adequado para encorajar a cooperação e a coordenação das entidades reguladoras nacionais, visando promover o desenvolvimento do mercado interno do gás e contribuir para a aplicação coerente, em todos os Estados-Membros, da Diretiva aqui em pauta.

Conforme nos informa o art. 1º da Diretiva 55/2003, a mesma tem como escopo o estabelecimento de regras comuns para o transporte, distribuição, fornecimento e armazenamento de gás natural. Define ela as normas relativas à organização e ao funcionamento do setor do gás natural e ao acesso ao mercado, bem como os critérios e mecanismos aplicáveis à concessão de autorizações de transporte, distribuição, fornecimento e armazenamento de gás natural e à exploração das redes. Neste desiderato, os Estados-Membros devem informar a Comissão acerca de todas as medidas adotadas para o cumprimento das obrigações de serviço público, incluindo a proteção dos consumidores e do meio ambiente, e dos seus eventuais efeitos na concorrência a nível nacional e internacional; devem assegurar a monitorização das questões relacionadas com a segurança do fornecimento, que abrange, principalmente, o equilíbrio entre a oferta e a procura no mercado nacional, o nível de procura futura prevista e dos fornecimentos disponíveis, a capacidade suplementar prevista ou em construção, bem como a qualidade e o nível de manutenção das redes e as medidas destinadas a fazer face aos picos de procura e às falhas de um ou mais fornecedores; devem assegurar que sejam definidos critérios técnicos de segurança e elaboradas e publicadas normas técnicas que estabeleçam os requisitos mínimos de concepção e funcionamento, garantindo a interoperabilidade das redes e a inexistência de discriminação.

Outros pontos que se afiguram de extrema relevância no âmbito da Diretiva 55/2003 são os arts. 18, 20, 21 e 23 que tratam especificamente do acesso à rede por terceiros, do acesso de gasodutos à montante, da recusa de acesso e da abertura dos mercados, respectivamente. Os Estados-Membros devem garantir a aplicação de um sistema de acesso de terceiros às redes de transporte e distribuição e às instalações de GNL baseado em tarifas publicadas aplicáveis a todos. Da mesma forma, um acesso justo e aberto de gasodutos deve-se pautar pelos fins de realização de um mercado competitivo do gás natural e de prevenção de abusos resultantes de uma posição dominante, devendo levar em conta a segurança e a regularidade do fornecimento, as capacidades existentes ou que possam ser razoavelmente disponibilizadas e a proteção do meio ambiente.

II.1.3. A Diretiva Européia como norma jurídica no seio do ordenamento jurídico supranacional europeu

Pois bem, ao criar a União Européia, o Tratado de Maastrich instituiu no seu seio uma ordem jurídica própria, independente da dos Estados-membros, constituída por um complexo de normas hierarquizadas e coordenadas entre si. Uma parte dessas normas consta dos próprios Tratados, constituindo o chamado direito comunitário originário; outras resultam da adoção pela autoridade comunitária de atos normativos diversos, entre eles as Diretivas, norma que definiu e estabeleceu regras comuns para o mercado interno europeu de gás natural.

As relações entre a ordem jurídica comunitária e a ordem jurídica interna caracterizam-se pela cooperação, ajuda e complementariedade que existe entre elas. Esta ligação e a complementariedade entre as duas ordens jurídicas tomam-se mais evidentes no mecanismo da Diretiva. A Diretiva comunitária é um ato unilateral que decorre do exercício da atividade, por parte das Instituições Comunitárias, na execução dos tratados constitutivos da Comunidade. Funciona como um instrumento de ação direta, cuja técnica é semelhante às leis-quadro ou de princípio, dirigindo-se somente aos Estados, determinando-lhes o objetivo a atingir, ficando estes com a responsabilidade de definir as formas e os instrumentos.

A criação deste particular tipo de ato comunitário revela o propósito de proporcionar às Instituições Comunitárias uma alavanca mais flexível, adaptada ao objetivo menos ambicioso de simples aproximação das legislações nacionais, que permite atender aos particularismos nacionais deixando aos Estados-membros uma certa margem de liberdade na implementação das regras adotadas a nível comunitário.

A liberdade deixada aos Estados membros quanto à escolha da forma e meios em matéria de execução de Diretivas, deixa intacta a sua obrigação de escolher as formas e os meios mais apropriados a fim de assegurar o efeito útil das mesmas. A sua estrutura pressupõe um processo normativo com duas fases. Na primeira o resultado visado com este ato unilateral é fixado de forma obrigatória para os destinatários em causa, ficando estes vinculados a atingir esse resultado. Na segunda encara-se a transposição para o direito interno da substância dos objetivos determinados pelo direito comunitário, através de medidas tomadas pelos Estados membros, que vão permitir às Diretivas a produção de efeitos de uma forma direta na esfera jurídica dos particulares, sendo no âmbito desta operação que os Estados membros têm competência para decidir quanto à forma e aos meios de aplicação daquela.

É da noção da Diretiva que ela obrigue os seus destinatários quanto aos fins, resultados ou objetivos a atingir no plano econômico, comercial, técnico, jurídico, etc, impondo aos Estados destinatários uma obrigação de resultado. Neste diapasão, a Diretiva 55/2003 estabelece que os Estados-Membros devem pôr em vigor as disposições legislativas, regulamentares e administrativas necessárias para dar cumprimento a presente Diretiva até 1 de Julho de 2004.

II.2 – Experiência Regulatória no âmbito do Mercosul

Por um outro prisma, por trás de uma outra forma de integração que difere daquela realizada na Europa vislumbramos o Mercosul. A estrutura institucional vigente no Mercosul conforma uma organização de caráter intergovernamental quanto a todos os seus órgãos decisórios. Isso quer dizer que não confia a órgãos ditos superiores aos Estados a elaboração de normas jurídicas comuns, mas os próprios Estados-membros o fazem, sendo essa característica intergovernamental em contraposição com a supranacionalidade européia, a sua principal diferença.

O Mercosul passou a realizar estudos e entendimentos em âmbito multilateral a fim de criar um arcabouço jurídico que viesse a regular o mercado de gás entre seus países membros, promovendo e avançando no interesse de promover o desenvolvimento do processo de integração gasífera dos Estados Partes do Mercosul.

II.2.1. Processo de Integração Gasífera dos Estados Partes do MERCOSUL

O interesse no desenvolvimento do comércio de gás natural entre os Estados Partes do Mercosul, o desenvolvimento e complementação de seus recursos energéticos que permitam diversificar as possibilidades de abastecimento aos usuários de cada Estado Parte, desenvolver um mercado competitivo de fornecimento de gás de curto e longo prazo, e oferecer aos agentes do setor de cada um dos Estados Partes condições de tratamento não discriminatório e possibilidade de acesso ao mercado da região são os pilares mestres que norteiam a consecução do fim maior objetivado pela organização. Toda essa tentativa de entendimento encontra-se atualmente em discussão, desde 1999, no Conselho do Mercado Comum, órgão máximo de condução política do Mercosul, em seu subgrupo nº 9.

Como norte, esse subgrupo deve fomentar a competitividade do mercado de produção de gás natural sem a imposição de políticas que possam alterar as condições normais de competência, evitando práticas discriminativas com relação aos agentes da demanda e da oferta de gás natural entre os Estados partes, assegurando que os preços e tarifas dos serviços associados à compra e venda de gás natural tais como transporte, distribuição e armazenagem, respondam em seus respectivos mercados a custos econômicos, sem discriminação entre usuários de similares características e sem subsídios diretos ou indiretos que possam afetar a competitividade dos bens exportáveis e o livre comércio dos Estados-partes.

O Memorando de entendimento relativo aos intercâmbios gasíferos e integração gasífera expressa o comprometimento dos Estados partes em outorgar autorizações, licenças ou concessões para a construção, operação e exploração de gasodutos que liguem os sistemas gasíferos dos Estados Partes, baseados no livre intercâmbio comercial de gás natural acordado entre empresas públicas e privadas dos Estados Partes, e sujeitas à legislação, às normas reguladoras, técnicas e ambientais vigentes em cada um dos Estados Partes.

Da mesma forma, tal proposta de regulação em âmbito sub-regional apregoa a definição de normas gerais que assegurem o livre comércio de gás natural, baseados no princípio da reciprocidade na concorrência e de transparência do mercado, com o objetivo de promover o desenvolvimento do processo de integração energética e os compromissos internacionais assumidos por cada um dos Estados Partes.

Como é bem sabido, o mercado de gás natural se encontra em diferentes graus de desenvolvimento em cada Estado-Membro do Mercosul e, da mesma forma, a estrutura do mercado e o arcabouço regulatório apresentam ainda diferenças significativas de um país para o outro. Portanto, a integração legislativa que se almeja com essa proposta deve ser encarada como diretrizes gerais para a concretização do escopo final. A flexibilidade e a autonomia para os seus países membros são de extrema valia para o nosso caso, assim como se sucedeu na União Européia.

Não podemos olvidar que nesse caso especifico do Mercosul é imprescindível que se proceda à homogeneização de certas especificações, como a qualidade do gás, a fim de permitir importações e exportações de diferentes regiões que produzem gases de diferentes composições, levando sempre em conta as necessidades técnicas dos equipamentos já instalados e a qualidade do meio ambiente.

O que acontece é que algumas das políticas traçadas por esta proposta de Regulamento acerca do gás natural para serem adotadas em âmbito interno dos países já foram incorporadas pelo ordenamento jurídico nacional, seja mediante a Lei 9.478/97, seja por Portarias da Agência Nacional do Petróleo. Isso demonstra que o Brasil se encontra, em determinadas áreas, na vanguarda do que poderíamos chamar de Regulação sub-regional do gás natural.

Exemplo disso é a imposição do Regulamento para que os Estados-membros do Mercosul façam garantir o acesso livre e não discriminatório à capacidade disponível dos serviços de transporte de gás. Contudo, não existe qualquer tipo de regulamentação especifica no que diz respeito àquelas demandas que se produzam como resultado de operações de comércio internacional, assegurando que as condições técnicas e econômicas que se exijam para tal acesso não caracterizem discriminação entre as operações locais e internacionais.

No outro extremo da situação, existem pontos relacionados pela proposta de Regulamento que não são ainda objeto de regulamentação pelo ordenamento nacional e que com sua aprovação, obviamente, necessitarão serem feitos. O acesso à contabilidade das empresas de transporte, a obrigação da publicação de tarifas de transporte, o não privilégio a benefícios de qualquer natureza ao sistema de transporte localizado no território de outro Estado-membro quando um sistema de transporte de gás atravessar o território de um ou mais desses Estados, são alguns outros pontos do Regulamento que não se fazem presentes em nosso sistema e representariam uma inovação jurídica na tentativa de formação de um verdadeiro mercado interno de gás no Mercosul.

II.2.2. Sistema de Incorporação das Normas do Mercosul à Ordem Jurídica Interna

Passaremos agora a analisar a questão da aplicação interna das normas emanadas dos órgãos do Mercosul. O artigo 38 do Protocolo de Ouro Preto estabelece indiretamente que a ordem jurídica do Mercosul só possui efeitos sobre as pessoas físicas e jurídicas de direito interno com a mediação dos Estados Nacionais, preservando em esferas distintas o direito da integração, com seu universo definido pelas fontes jurídicas do Mercosul arroladas no artigo 41, e o direito nacional. O Estado Nacional permanece único soberano sobre seu território e os compromissos acordados por seus agentes na esfera sub-regional só têm aplicação em seus domínios com seu assentimento posterior. Tal diacronia indica claramente que não estamos no mundo da aplicação direta e do direito comunitário, mas muito próximos do direito internacional propriamente dito.

O artigo 42 do Protocolo de Ouro Preto prevê que as normas emanadas dos órgãos decisórios do Mercosul terão caráter obrigatório, mas imediatamente associa esta obrigatoriedade com a necessidade de incorporação ao ordenamento jurídico interno e deverão, quando necessário, serem incorporadas aos ordenamentos jurídicos nacionais. Ora, trata-se, em coerência com a separação entre a esfera jurídica do Mercosul da esfera do direito interno, de normas obrigatórias "para" os Estados Partes e não "nos" Estados Partes, o que só ocorrerá pela mediação da incorporação.

II.3. Paralelo traçado entre os Modelos Jurídicos Europeu e em fase de discussão do Mercosul

Finalmente, podemos realizar uma comparação entre ambos os modelos aqui expostos e tratados, ou seja, entre os modelos implantados na União Européia em 1998 e revisto agora em 2003, e o modelo proposto para o regulamento de transparência e livre acesso aos sistemas de transporte de gás aqui no Mercosul.

O que se observa, pois, é que a Diretiva Européia prevê maior flexibilidade e autonomia de decisão para cada Estado-Membro. A reestruturação, na Europa, se dará gradualmente, de maneira a respeitar as diferenças no nível de desenvolvimento dos mercados de gás em cada região. Essa é uma característica bem marcante neste modelo europeu que não deixa de lado as peculiaridades de cada país para que se possa efetivamente se formar um mercado interno europeu de gás natural através de uma Regulação Supranacional, dita Internacional.

No caso da proposta de regulamento do Mercosul, o grau de autonomia de cada Estado-Membro é menor, assim como a progressividade de implementação das medidas. Por serem negociações intergovernamentais e não supranacionais ou comunitárias, as decisões normativas seguem o rito de implementação nacional igual aos que os Tratados seguem, ou seja, todo o processo de assinatura e ratificação. Em razão disso não há autonomia suficiente para a implementação das diretrizes no ordenamento jurídico, vez que elas já estão postas e não devem ser contrariadas após a ratificação uma vez que já estão incorporadas ao ordenamento pátrio.

Por um lado, este maior rigorismo da reestruturação proposta para o Mercosul pode ser positiva na medida em que abreviará o processo de integração entre os países, porém temos sempre em mente as experiências práticas frustradas do Mercado Comum do Sul na última década, o que não nos consegue levar a tal interpretação de abreviação. Entretanto, por outro lado, um certo grau de flexibilidade e de autonomia de cada Estado pode ser mandatório para o incremento de mercados ainda bastante incipientes.


III – Conclusão

Para concluir nosso trabalho, façamos uma breve análise da importância da regulação do gás natural na consolidação de blocos como o Mercosul e a União Européia. O processo de globalização abrange várias dimensões tais como geopolítica, religiosa, científica, cultural, comercial, financeira e energética. A globalização energética, por sua vez, advém inicialmente de uma distribuição geográfica desigual entre regiões que, de um lado, dispõem de recursos energéticos abundantes e exportáveis, e, de outro lado, regiões que dispõem de mercados consumidores, mas são carentes em energia, devendo importá-la de outros lugares.

No entanto, o aspecto realmente impulsionador do movimento de globalização energética advém do incremento da internacionalização de investimentos, conseqüência de uma maior abertura dos mercados, de um amplo processo de reestruturação institucional e regulatório em vários países. Neste sentido, incluem-se iniciativas importantes de privatização de ativos energéticos, gerando oportunidades para investidores do mundo inteiro.

Neste momento em que a integração do Mercosul mostra-se incompleta ou mesmo em uma fase de regressão, a energia, no seu entendimento mais amplo, poderá contribuir em muito para consolidar este bloco. De fato, a maior cooperação regional nas diversas áreas do setor energético através de investimentos interestatais pode intensificar o sentimento de unidade e identidade regional entre os povos latinos. E isso se faz verdade também para a União Européia. Não se deve olvidar, outrossim, o ambiente de fragilidade política e energética do Cone Sul atualmente, que termina por obstacularizar a integração do Mercado mediante a prática de medidas nacionalistas.

De um lado, a integração dos mercados energéticos abre espaço para um aumento substancial das trocas comerciais e financeiras entre os países. De outro lado, a disposição de uma base energética de maior dimensão e mais integrada cria a possibilidade de compartilhar reservas de recursos naturais e a otimização dos sistemas energéticos. Destaca-se, neste sentido, o aumento da competitividade econômica e da produtividade da região, vantagens estas absolutamente necessárias para que os países que compõem um bloco tornem-se competitivos em uma economia cada vez mais globalizada.

Neste aspecto, o mercado do gás natural pode desempenhar um papel extremamente relevante uma vez que detém um enorme potencial na atração de investimentos. O gasoduto Bolívia-Brasil (GASBOL), por exemplo, constitui a primeira grande iniciativa de ancorar a integração energética do Cone Sul através do gás natural. Se explorado corretamente, o GASBOL poderá alterar substancialmente o perfil da matriz energética brasileira. Ainda no mesmo plano regional, deve-se destacar a interconexão gasífera entre a Argentina e o Chile.

Mas para que este cenário de integração regional no setor energético, mais especificamente no setor de gás natural, possa se consolidar faz-se imprescindível criar uma malha legal que proveja a segurança jurídica necessária aos investidores. Não se quer defender aqui necessariamente a imposição de normas unitárias para todo o bloco, uma vez que isso demandaria um grau de integração e homogeneidade mais avançado entre os países, mas sim a criação de princípios gerais comuns, parâmetros que guiem os mercados de gás natural de forma a viabilizar a integração econômica pretendida neste dois grupos, reduzindo as incertezas e garantindo a concorrência não discriminatória, seja entre empresas, seja entre os países.


IV – Referências Bibliográficas

CAMPOS, João Mota de. Manual de Direito Comunitário. 2º ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2002.

CARVALHO, Isabel Maria Felgueiras T. de. Noções Fundamentais de Direito Comunitário. Porto: Elcla, 1993.

CASELLA, Paulo Borba. União Européia. São Paulo: LTr, 2002.

CECHI, José Cesário (coord.). Indústria Brasileira de Gás Natural: regulação atual e desafios futuros. Séries ANP, nº 2. Rio de Janeiro: ANP, 2001.

KRAUSE, Gilson; SCHECHTMAN, Rafael (coords.). Regulação. Séries ANP, nº 1. Rio de Janeiro: ANP, 2000.

MIHALI, Daniel Hargain Gabriel. Direito do Comércio Internacional e Circulação de Bens no Mercosul. Rio de Janeiro: Forense, 2003.

ROSA, Pedro Valls Feu. Direito Comunitário. Rio de Janeiro: Esplanada, 2001.

SEITENFUS, Ricardo. Manual das Organizações Internacionais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003.

SOUTO, Marcos Juruena Villela Souto. Direito Administrativo Regulatório. Rio de Janeiro: Lumen Júris, 2002.

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Sobre os autores
Otacílio dos Santos Silveira Neto

professor da UFRN, mestre em Direito Econômico

Diogo Pignataro de Oliveira

advogado em Natal (RN), habilitado em Direito do Petróleo e Gás, mestrando em Direito Constitucional pela UFRN

Camila Colares Bezerra

bacharelanda em Direito, bolsista da Agência Nacional do Petróleo

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVEIRA NETO, Otacílio Santos ; OLIVEIRA, Diogo Pignataro et al. A regulação do gás natural no Direito Comunitário europeu e no Mercosul. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 584, 11 fev. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/6303. Acesso em: 18 nov. 2024.

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