Artigo Destaque dos editores

Poder regulamentar no direito concorrencial em matéria de gás natural:

abordagem dos limites de atuação do CADE, da ANP e das agências reguladoras estaduais

Exibindo página 2 de 2
Leia nesta página:

4. DO CONFLITO DE COMPETÊNCIAS - PAPEL SUBSIDIÁRIO DA ANP PERANTE O CADE E O SDE.

A competência da ANP em matéria de concorrência pode ser visualizada dentro do seguinte esquema: Inicialmente, cabe-lhe promover a competitividade dentro da indústria do petróleo e gás natural, uma vez que este foi um dos objetivos vislumbrados pelo o legislador ao criá-la. Dentro de suas atribuições, mormente em razão de sua atuação direta dentro da indústria e dos esforços envidados para promover a concorrência, pode vir a ANP a tomar conhecimento de manobras, ilícitos praticados por agentes que visam a obstar o livre desempenho da concorrência. Em se deparando com tal situação, deve a ANP comunicar imediatamente o fato ao CADE ou à SDE, segundo a competência para atuar no caso, para que devidas providências sejam tomadas. Logo, a ANP exerce a função de órgão auxiliar, "promotora" dentro da estrutura tutelar da concorrência na indústria do petróleo e gás natural no Brasil. (2)

Os limites acima traçados são os que encontram guarida na legislação em vigor e nos princípio gerais do Direito Penal.

Nesse diapasão, afirma NUSDEO (2002, p. 184) que: "As agências reguladoras, no entanto, estarão extrapolando a sua competência se aplicarem por sua conta as regras e as penalidades contidas na Lei n.º 8.884/94. A constatação da existência de possíveis infrações à ordem econômica deverá dar ensejo ao procedimento de investigações estabelecido na Lei 8.884/94, culminando com uma decisão do CADE".

Lúcia Helena Salgado (3) destaca que as agências reguladoras cumprem o duplo papel de estruturar mercados onde antes só havia a atuação estatal, e garantir que esses mesmos mercados se pautem por regras da concorrência.

A lei nº 8.884, em seu art. 15, expressamente submete ao regime antitruste todas as pessoas físicas ou jurídicas, de direito público ou privado, mesmo que exerçam atividade sob regime de monopólio legal. Essa disposição corresponde ao desejo, expressamente declarado pelos autores do projeto, de submeter ao controle do CADE todos os atos e ajustes entre empresas, mesmo aqueles sujeitos ao controle estatal.

Disso decorre, como bem registra Bolívar Moura Rocha (4), uma complexidade subjacente ao relacionamento entre sistemas de defesa da concorrência e órgãos reguladores, encerrando um dilema entre dois imperativos: "Por um lado, o de assegurar uma aplicação uniforme e sistêmica do direito e das políticas concorrenciais no país como um todo. Com efeito, caso fosse conferida a cada agência reguladora a atribuição relativa à concepção e aplicação das políticas de concorrência no respectivo setor, haveria um risco de fragmentação e desvirtuamento da política de concorrência no País. O outro imperativo é o de atribuir a um órgão dotado de capacitação técnica apropriada o tratamento de problemas que com freqüência envolverão questões de grande especificidade e tecnicalidade. Esse primeiro dilema comporta outro, consistente no risco de serem criados conflitos de competência, positivos ou negativos – ou seja, situações em que duas autoridades entendem ter competência para tratar determinado assunto; ou em que cada uma acha que a outra é que tem essa competência. Ambas situações indesejáveis".

Devido às características monopolistas de algumas atividades da indústria gasífera, é necessário que haja um acompanhamento por parte do regulador, visando a proteger os interesses do consumidor, garantir o abastecimento do energético e zelar pelo eficiente funcionamento do setor. Tal papel é desempenhado pela ANP.

Uma vez que a legislação supracitada não concede à ANP a competência para atuar sobre o controle das estruturas de mercado no setor de gás natural, esta atua por meio do monitoramento das ações dos agentes econômicos.

4.1. O Acordo de Cooperação Técnica ANP/CADE.

A ANP, através do Núcleo de Defesa da Concorrência (NDC/ANP), mantém um Acordo de Cooperação Técnica com a SDE. Este acordo interinstitucional reforça o importante papel da autoridade reguladora do setor na promoção da concorrência e na prevenção de práticas anticompetitivas.

A princípio, sabemos que o CADE e a SDE podem atuar sem haver a participação do órgão regulador setorial. Porém, não é o que vem sendo observado. A atuação conjunta é decorrência de alguns fatores. Vejamos alguns deles: a necessidade de um órgão setorial detentor de conhecimento específico, proporcionando uma gama de informações imprescindíveis ao parecer técnico; o esforço conjunto dos órgãos viabilizando a apuração e julgamento das infrações econômicas em razão de uma maior celeridade processual; e ainda temos o fator vinculado ao fornecimento de esclarecimentos junto à sociedade, haja vista que a existência de um órgão regulador setorial implica que todas as cobranças recaiam sobre ele, independentemente da questão ser de sua competência.

Ademais, destaca-se que o CADE e a SDE já vêm requisitando informações e pareceres a ANP, com fulcro no art. 36 da Lei nº 8.884/94. Isto demonstra que o acordo de cooperação, na prática, formaliza esses requerimentos. E ainda, além do aspecto operacional, esta cooperação conjunta visa incrementar a cultura antitruste na agência setorial.


5. O ATUAL ESTÁGIO DA REGULAÇÃO EM DIREITO CONCORRENCIAL: VIRTUDES E PERSPECTIVAS

A Lei nº 9.478/97 traçou as diretrizes básicas do modelo de atuação da ANP e agências estaduais na regulação e fiscalização do mercado atinente à indústria do petróleo e gás natural, visando efetivar a harmonização dos interesses dos agentes econômicos e dos consumidores, através de medidas preventivas e coercitivas reguladoras deste mercado tendenciosamente monopolista.

Percebe-se, então, haver a preocupação da ANP em coibir, na indústria nacional do petróleo e do gás natural, a abusiva concentração econômica, de forma a resguardar os interesses dos consumidores e proteger o mercado. Todavia, o papel desta agência reguladora em termos de repressão a condutas anticompetitivas ainda não foi suficientemente delineado. No aspecto preventivo, entretanto, sua lei instituidora não impõe limites, conferindo-lhe grande margem de atuação.

Fique sempre informado com o Jus! Receba gratuitamente as atualizações jurídicas em sua caixa de entrada. Inscreva-se agora e não perca as novidades diárias essenciais!
Os boletins são gratuitos. Não enviamos spam. Privacidade Publique seus artigos

A grande lesividade social e econômica das infrações ao ambiente competitivo, sobretudo aquelas que atingem de forma mais direta o cidadão-consumidor, por exemplo, o ajuste ilegal de preços entre concorrentes, justifica uma incisiva atuação do Estado em sua prevenção e repressão. A cooperação entre os órgãos do Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência e os órgãos de regulação setorial, no caso a ANP, se mostra extremamente benéfica por aliar diferentes abordagens e conhecimentos técnicos na busca pela preservação da livre concorrência e repressão dos abusos de poder econômico.

Quanto ao transporte, face ao reconhecimento legal expresso, deve a ANP atuar diretamente para proteger a concorrência por meio da viabilização do uso de oleodutos e gasodutos e terminais marítimos, mediante remuneração paga ao proprietário de tais estruturas de transporte, funcionando ainda como árbitro, caso inexista consenso entre os envolvidos na relação negocial no que concerne ao preço; prescinde da comunicação junto ao CADE e à SDE.

Assim, pode-se dizer que a ANP desempenha um papel de atuação direta no fluxo protetivo da concorrência no segmento industrial de transporte de petróleo e gás natural e de mero informante do CADE e SDE nas demais situações de obstaculização infracional da concorrência na indústria petróleo e gás natural.

Em se tratando das agências estaduais, diante da atual situação de monopólio de fato exercida pelas concessionárias de distribuição de gás, é inexistente a concorrência, visto que cada distribuidora tem uma área de atuação delimitada em contrato, não podendo com isso atuar em área de outra. Logo, afirma-se que as agências estaduais, assim como a ANP, podem apenas denunciar atos de concentração de mercado, no que tange à indústria de gás natural, ao órgão competente (CADE), pois as mesmas não são investidas de poderes de jurisdição, atuando, assim, como verdadeiras "promotoras".

Ressalta-se que com a flexibilização do monopólio da Petrobrás e a conseqüente inserção de novos agentes no mercado de gás natural, a legislação antitruste é indispensável à efetiva introdução da concorrência e ao controle do mercado. Porém, como se sabe, a estrutura física da rede de transporte é ínfima, levando em conta as dimensões de nosso território. Com efeito, é razoável que alguns elos da cadeia produtiva permaneçam sob o regime de monopólio, porque isso implicará um ganho de eficiência no fornecimento desse serviço e um benefício ao consumidor, o qual é o fim primordial de proteção pela legislação antitruste. E como se trata de uma atividade em expansão, é aconselhável uma inserção progressiva da concorrência a fim de promover uma maior evolução tecnológica e um maior incremento da eficiência econômica no setor.

Por fim, mister se faz a inserção correta e responsável da concorrência, que implica em garantir não apenas a pluralidade de escolhas para o consumidor, mas incentivar a diversidade da produção e manter a dinâmica do mercado, o qual permite a inovação tecnológica e, gera emprego e renda.


NOTAS

  1. A redação do artigo 10 da Lei n.º 9.478, 06.08.97, foi modificada pela Lei n.º 10.202, de 20.02.01. Com a nova redação, a Secretaria de Direito Econômico passou a ser destinatária também das informações prestadas pela ANP, previsão esta não contida no primitivo artigo 10 em referência. O acerto do legislador na postura tomada foi marcante, pois aquela Secretaria possui a competência de instaurar e instruir o processo investigativo relacionado à infrações cometidas contra a ordem econômica, conforme se encontra previsto no art. 32 e seguintes da Lei n.º 8.884, de 11.06.94.
  2. NUSDEO (2002, p. 186) defende que: "A ANP e a ANEEL, por sua vez, poderiam firmar um convênio com o CADE para aproveitamento da competência consultiva a ele atribuída pela Lei 8.884, de 1994. Embora a lei não dê a essas Agências qualquer poder em matéria de controle formal de estruturas, no exercício de sua tarefa de monitoramento dos respectivos mercados e, em particular, dos contratos de concessão as Agências podem adotar medidas que tenham impacto sobre questões concorrenciais."
  3. Salgado, Lúcia Helena. "As agências regulatórias no País". Rio de Janeiro: Jornal Diário Gazeta Mercantil, 18/12/2000.
  4. Rocha, Bolívar Moura. "Regulação de infra-estrutura e defesa da concorrência: proposta de articulação", in Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro. São Paulo: Malheiros, ano XXXVI, nº 112, out./dez. 1998, pp. 85-92.

BIBLIOGRAFIA

ANDRADE, Rogério Emilio. "Regulação da concorrência: uma visão panorâmica" in: Andrade, Rogério Emilio (coord). Regulação Pública da Economia no Brasil. Ed. Edicamp, São Paulo 2003.

ANP. "O Acordo de Cooperação Técnica ANP-CADE-SDE" in Informe Conjuntura e Informaçãonº 09, fevereiro-março de 2000.

ANP. Regulação. 1. ed. ANP, Rio de Janeiro 2000.

BRUM, Argemiro J. Desenvolvimento Econômico Brasileiro. 19 ed. Ed. Vozes, Petrópolis 1998.

CECCHI, José Cesário (coord.). Indústria Brasileira de Gás Natural: Regulação Atual e Desafios Futuros. 1. ed. ANP, Rio de Janeiro 2001.

FARIA, José Eduardo. O Direito na Economia Globalizada. Ed. Malheiros, São Paulo 2000.

FRANCESCHINI, José Inácio Gonzaga. Introdução ao Direito da Concorrência. Ed. Malheiros, São Paulo 1996.

MENEZELLO, Maria D’Assunção Costa. Comentários à Lei do Petróleo: lei federal n. 9.478, de 6-8-1997. Ed. Atlas, São Paulo 2000.

NUSDEO, A. M de Oliveira. Direito Administrativo Econômico. Carlos Ari Sunfeld (coord.) Ed. Malheiros, São Paulo 2002.

SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 19 ed. Ed. Malheiros, São Paulo 2002.

SUSLICK, Saul B. et al. Regulação em petróleo e gás natural. Ed. Komedi, Campinas 2001.

SUNFELD, Carlos Ari. "Introdução às Agências Reguladoras" in Sunfeld, Carlos Ari (coord.). Direito Administrativo Econômico. Ed. Malheiros, São Paulo 2000.

Assuntos relacionados
Sobre os autores
Janine Medeiros Santos

aluna bolsista do Programa de Recursos Humanos ANP-MCT/UFRN nº 36 (Especialização em Direito do Petróleo e Gás Natural), bacharelanda em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte

Felipe Maciel P. Barros

aluno colaborador do Programa de Recursos Humanos ANP-MCT/UFRN nº 36 (Especialização em Direito do Petróleo e Gás Natural), bacharelando em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte

Gaudêncio J. de Souza Neto

bacharelando em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SANTOS, Janine Medeiros ; BARROS, Felipe Maciel P. et al. Poder regulamentar no direito concorrencial em matéria de gás natural:: abordagem dos limites de atuação do CADE, da ANP e das agências reguladoras estaduais. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 584, 11 fev. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/6304. Acesso em: 19 abr. 2024.

Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!
Publique seus artigos