4. HERMENÊUTICA CONSTITUCIONAL: A REINCIDÊNCIA À LUZ DO PRINCÍPIO DA DIGNIDADE HUMANA
"É o conhecimento dos princípios, e a habilitação para manejá-los, que distingue o jurista do mero conhecedor de textos legais".
Carlos Ari Sundfeld
(em Fundamentos de Direito Público)
4.1. O ESTADO SOCIAL DEMOCRÁTICO DE DIREITO
A partir da promulgação da Carta Política de 1988, estabeleceu-se um pacto social fundado no paradigma do Estado Democrático de Direito, em que se balizou, de forma clara, as abstenções dos poderes públicos frente às garantias individuais, as obrigações do Estado em satisfazer os direitos de seu povo, bem como os objetivos fundamentais decorrentes dos incisos de seu artigo 3º, in verbis:
Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:
I – construir uma sociedade livre, justa e solidária;
II – garantir o desenvolvimento nacional;
III – erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais;
IV – promover o bem de todos, sem preconceito de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.
Em assim sendo, seguindo o moderno constitucionalismo, fica implícito estarmos diante de uma Constituição normativa e classificável como social. Isso, à evidência, implica compromissos e inexoráveis conseqüências no campo da formulação, interpretação e aplicação das leis. Logo, deve-se partir da premissa – e não há originalidade alguma em dizer isto – de que a Constituição de 1988 é dirigente e compromissória, pelo fato de apresentar uma direção vinculante à sociedade e ao Estado88.
Demais disso, destaca-se, ante os ensinamentos de CANOTILHO, EROS GRAU, BONAVIDES, LÊNIO STRECK, BANDEIRA DE MELO, JORGE MIRANDA, entre outros, que todas as normas constitucionais têm eficácia e nisso se incluem as normas ditas "programáticas".
Com efeito, nos dizeres de LÊNIO STRECK, essa é a nossa cultura que a partir da Carta Política de 1988 solidificou-se em termos normativos, e parece não haver mais qualquer dúvida de que o direito penal também deve servir de instrumento interventivo, organizador e transformador da sociedade. Afinal, não é demais lembrar que o Direito e o Estado passaram por profundas transformações no decorrer dos séculos: de um Direito meramente ordenador, próprio da tradição liberal-individualista, passamos para um Direito de feição promovedora e transformadora, produtos do surgimento da concepção de Estado Social e Democrático de Direito89.
Dito isso, já não há mais espaço à postura ignava e complacente para com a reiterada prática judiciária que, embora submissa a uma Constituição rica em direitos individuais, coletivos e sociais, (só)nega a aplicação desses direitos ao seu povo90.
Nessa vertente, assoma a inspiração marxista em que se conclama à ação, pois os "juristas", assim como os filósofos, limitaram-se "a interpretar o mundo de maneiras diversas", contudo, "trata-se de transformá-lo"91. Nessa empreitada, frisa-se que o ordenamento jurídico brasileiro não passa de um mero instrumento92 a uma consecução maior, qual seja, a promoção dos objetivos fundamentais antes referidos, por meio de um processo de efetiva concretização constitucional.
4.2. HERMENÊUTICA CONSTITUCIONAL
Pela formulação teórica de KELSEN, amplamente aceita e difundida pela obra Teoria pura do direito, a Constituição representa o fundamento de validade de toda a ordem jurídica no qual se reconduzem todas as normas vigentes no âmbito do Estado, conferindo unidade ao sistema93. Desse modo, a Constituição escrita ordena, sistematicamente, os princípios fundamentais da organização política do Estado e das relações entre este Estado e o povo que o compõe94.
Nessa seara, considerando que a Carta da República "não é somente o documento para organizar o Estado, mas, sim, a própria explicação do contrato social (a Constituição, portanto, Constitui) e o espaço de mediação ético política da sociedade"95, o Texto Fundamental consiste "no paradigma hermenêutico de definição do que seja uma norma válida ou inválida, propiciando toda uma filtragem das normas infraconstitucionais que, embora vigentes, perdem sua validade em face da Lei Maior"96.
No mesmo sentido, PAULO RICARDO SCHIER advoga a necessidade de um processo em que toda a ordem jurídica, sob a perspectiva material e formal e assim os seus procedimentos e valores, devem passar pelo filtro axiológico da Constituição Federal, impondo a cada momento da aplicação do direito, uma releitura e atualização de suas normas97.
Diante do exposto, inolvidável o magistério de JIMÉNEZ DE ASÚA no qual "toda nova Constituição requer um novo Código Penal"98, juntamente a lição de FAUZI HASSAN CHOUKR, em que "o rumo constitucional tomado com a edição do texto de 1988, rico em garantias e altamente coeso no tema que nos interessa, não pode ser mudado, sob pena de deixarmos o saudável caminho do processo penal democrático, cuja concretização depende da adequada e necessariamente coerente reforma da legislação ordinária"99.
Com isso, segundo LÊNIO STRECK, é preciso dizer o óbvio, ou seja, precisamos constitucionalizar o direito infraconstitucional e as ações do Estado100. A tanto, pelas letras de LUÍS ROBERTO BARROSO:
O ponto de partida do intérprete há que ser sempre os princípios constitucionais, que são o conjunto de normas que espelham a ideologia da Constituição, seus postulados básicos e seus fins. Dito de forma sumária, os princípios constitucionais são as normas eleitas pelo constituinte como fundamentos ou qualificações essenciais da ordem jurídica que institui. A atividade de interpretação da Constituição deve começar pela identificação do princípio maior que rege o tema a ser apreciado, descendo do mais genérico ao mais específico, até chegar à formulação da regra concreta que vai reger a espécie101.
Nessa perspectiva, DANIEL SARMENTO ensina que a liberdade do operador do direito tem como norte e como limite a constelação de valores subjacentes à ordem constitucional, dentre os quais cintila com maior destaque o da dignidade humana que confere unidade teleológica a todos os demais princípios. Assim sendo, nenhuma ponderação poderá importar em desprestígio à dignidade do homem, já que a garantia e promoção desta dignidade representa o objetivo magno colimado pela Constituição e pelo Direito.
Portanto, como fundamento basilar da ordem constitucional, esse princípio configura diretriz inafastável para a integração de todo o ordenamento. Na qualidade de vértice axiológico da Constituição, o cânone em pauta condensa a idéia unificadora que percorre toda a ordem jurídica, condicionando e inspirando a exegese e aplicação do direito positivo, em suas mais variadas manifestações102.
A partir dessa postura, a dignidade humana revela-se como guia ontológico à realização da ponderação entre interesses constitucionais, visto que esse método ostenta uma irredutível dimensão substantiva, dirigindo-se à afirmação e à concretização dos valores supremos de igualdade, liberdade, fraternidade e justiça, no qual se apoia todo ordenamento constitucional, e que estão condensados no princípio da dignidade da "pessoa humana"103.
Em síntese, os axiomas constitucionais representam as premissas básicas do sistema normativo brasileiro, cujos se irradiam por todo o ordenamento jurídico, em virtude de condensarem os valores mais relevantes dessa estrutura, com destaque à dignidade humana. Portanto, os mesmos indicam o ponto de partida e os caminhos a serem percorridos pelo hermeneuta104.
Nessa vereda, passamos ao confronto do instituto da recidiva ao axioma da dignidade humana, em referência específica ao princípio da secularização e da proibição das leis penais constitutivas, afora não sejam os únicos que subjazem desse axioma.
4.3. O INSTITUTO DA REINCIDÊNCIA E A DIGNIDADE HUMANA
4.3.1 PRINCÍPIO DA DIGNIDADE HUMANA
Na atualidade, sem embargo de reconhecer-se a dignidade da "pessoa humana"105 como valor intangível, não se deve perder de vista que sua positivação resultou de um longo processo forjado na dor e na angústia de milhares de seres humanos vitimados pelas atrocidades das quais a história mundial presta-lhes testemunho.
Ademais, transparece da própria dicção desse princípio sua universalidade, à evidência, por exemplo, da redação da Declaração Universal dos Direitos do Homem, em cujo preâmbulo consta que a dignidade, inerente a todos os membros da família humana, é fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo. Logo, a todo e qualquer indivíduo é reconhecida dignidade, pelo simples fato de pertencer à espécie humana. Dela não se despe nenhuma pessoa, por mais grave que tenham sido os atos que praticou, pois em cada ser humano, por mais humilde e obscura que seja sua existência, pulsa toda a Humanidade106.
Convém anotar que a idéia da dignidade humana assenta-se na tradição cristã em conceber o Homem como ser criado à imagem e semelhança de Deus107, concepção que serviu de alicerce ao conceito de pessoa, o qual desenvolvido pela filosofia patrística e aprimorado pelos escolásticos, como categoria espiritual rica em subjetividade, ser de fins absolutos, e que, em conseqüência, detém direitos subjetivos (ou fundamentais).
Com o advento da modernidade, os teóricos humanistas laicizam tal conceito, sendo que essa contribuição serviu de base ao constitucionalismo do século XVIII. Esse, por sua vez, na esteira do Iluminismo e do Racionalismo, consagrou a idéia de limitação dos poderes do Estado com vistas à proteção dos direitos individuais do cidadão. Assim, durante a Ilustração edificaram-se os pilares do jusnaturalismo racionalista, que centrava preocupações no ser humano, considerando-o como ente dotado de direitos que precediam o Estado e que deveriam ser assegurados pela ordem jurídica.
No entanto, observa-se que a premissa antropológica subjacente ao constitucionalismo modificou-se, de maneira profunda, do advento do Estado liberal até nossos dias. Do individualismo-burguês voltado a uma visão limitativa do Homem na qual o Estado deveria assegurar a sua autonomia e liberdade, escapando às suas preocupações a garantia de condições reais de subsistência, para que o Homem pudesse, de fato, exercitar aquela liberdade que lhe era formalmente franqueada, passamos ao Estado Social, preocupado agora não apenas com a liberdade, mas com o bem-estar de seus cidadãos108.
Portanto, não mais se concebe o Homem como ser que, ao cuidar egoisticamente dos seus interesses, numa sociedade atomizada, estaria contribuindo para o progresso de todos, como sustentava o individualismo burguês. Por outro lado, não se incorre no vício oposto, do transpersonalismo, a partir de uma visão orgânica da sociedade, vislumbra no homem apenas uma parte no todo social, cujos direitos e interesses podem ser sacrificados em benefício da coletividade.
Depois de comentar tais concepções, SARMENTO postula que a ótica prevalecente nessa matéria, no tocante ao constitucionalismo contemporâneo, é a do personalismo, que busca uma solução de compromisso entre as concepções individualista e coletivista.
Nesse prisma, o ser humano é considerado um valor em si mesmo, superior ao Estado e a qualquer coletividade à qual se integre, trata-se de uma pessoa real, palpável, histórica e geograficamente situada, que partilha valores e tradições com seus semelhantes e que tem necessidades reais que devem ser atendidas. É um ente que não apenas vive, mas convive109.
Marcante nessa teoria, em que se busca, principalmente, a compatibilização, a inter-relação entre os valores individuais e valores coletivos, é a distinção entre indivíduo e pessoa. Se ali, exalta-se o individualismo, o homem abstrato, típico do liberalismo-burguês, aqui, destaca-se que ele "não é apenas uma parte, como uma pedra-de-edifício no topo, ele, é, não obstante, uma forma do mais alto gênero, uma pessoa, em sentido amplo – o que uma unidade coletiva jamais pode ser", como sintetiza NICOLAI HARTIMANN, citado por MATA-MACHADO110.
Por isso e lastro no inciso III, art. 1º, da CF, a dignidade da "pessoa humana" constitui um dos fundamentos da República Federativa do Brasil, cujo corolário é a proteção do livre desenvolvimento da personalidade. Em verdade, esse princípio exprime, em termos jurídicos, a máxima kantiana, segundo a qual o Homem deve sempre ser tratado como um fim em si mesmo e nunca como um meio111. O ser humano precede o Direito e o Estado, que apenas se justificam em razão dele112.
Nesse prumo, a "pessoa humana" deve ser concebida e tratada como valor–fonte113, como assevera MIGUEL REALE, sendo a defesa e promoção da sua dignidade, em todas as suas dimensões, a tarefa primordial do Estado Social Democrático de Direito. Assim, apenas o respeito a essa dignidade legitima a ordem estatal e comunitária, constituindo, a um só tempo, pressuposto e objetivo da democracia114.
4.3.2. A separação iluminista entre direito e moral
A doutrina da separação entre direito e moral reflete o processo contemporâneo ao nascimento do Estado Moderno, por meio do qual direito e cultura jurídica, particularmente de conteúdo penal, tornaram-se laicos.
Por intermédio de uma postura política reformadora no tocante ao direito positivo vigente, a cultura jurídica iluminista consentiu-lhe a crítica desmistificante e sem prejulgamentos, livre de deferências morais ou religiosas à ordem constituída. Ao passo que as teorias políticas do jusnaturalismo contratual foram todas, essencialmente, doutrinas utilitaristas de justificação externa do então nascente Estado Moderno, do qual repudiaram a idéia de uma fundação apriorística – natural, ética ou religiosa.
Dessa forma, SALO DE CARVALHO escreve que "o discurso jurídico-penal do iluminismo foi estruturado sob a égide da secularização e da tolerância. A negação do fundamento teológico (moral eclesiástica) do direito, principalmente nos critérios de interpretação e imputação dos desvios puníveis, obteve como conseqüência a radical substituição da concepção ontológica do crime (mala in se) para a noção garantista" em que o "crime passa a ser a descrição legal da conduta, criminoso é aquela pessoa que violou livremente (capacidade, conhecimento e vontade) o contrato social, e a pena representa o limite retributivo de intervenção do Estado na liberdade do indivíduo".
Todavia, conquanto o exortado pensamento acima ilustrado, "o modelo inquisitorial do direito do autor, simbolizado em institutos como o da reincidência, renascerá com absoluto vigor no movimento penal da segunda metade dos oitocentos"115, sob o influxo da criminologia etiológica da Escola Positiva italiana, a qual serviu de suporte, principalmente, às doutrinas políticas e jurídicas do período nazi-faccista.
Como identificado na segunda metade do século XIX, devido à ação convergente das teses idealistas, positivistas, éticas, espiritualistas e, nas suas diversas formas, estatistas, as concepções subjetivistas voltam a ser, uma vez mais, objeto de qualificação, inquisição e tratamento penal sob as modernas etiquetas da "periculosidade", da "capacidade de delinqüir", do "caráter do réu" ou de outras semelhantes.
Assim, a transformação ética do direito chegou a fazer com que o princípio de legalidade passasse a ser irracional e decisionista, consentindo com o ingresso, no direito penal, do mais exasperado substancialismo e subjetivismo, mediante as nefastas figuras do "tipo normativo do autor"116 ou do "inimigo" (do povo ou do Estado), identificados, a despeito dos fatos cometidos ou não, com base, simplesmente, na atitude interiormente infiel ou antijurídica do acusado117.
Contudo, a fronteira intransponível à invasão do Estado na esfera moral, intelectual, religiosa e sentimental que se constitui em elemento comum a toda a cultura política do iluminismo, definida pelo requisito da materialidade da ação, será firmemente defendida, uma vez mais, pela Escola clássica, diante dos ataques da Escola positiva, contra a idéia de que os delinqüentes são uma espécie dentro do gênero humano. Desse modo, ENRICO PESSINA reafirma o princípio, mais igualitário que liberal, – "o homem delinqüi não pelo que é, senão pelo que faz"118.
De efeito, ressalta-se que a doutrina iluminista da separação entre direito e moral elaborou, a um só tempo, o pressuposto necessário de qualquer teoria garantista119 e de qualquer sistema de direito penal mínimo120, enquanto as várias doutrinas pré e pós-iluministas da confusão (entre direito e moral) viram-se colocadas na origem de culturas e modelos penais substancialistas e variadamente autoritários.
Dessa feita, pode-se precisar que o significado teórico da doutrina da separação diz respeito às condições formais da legitimação interna, identificada pela mesma com a satisfação do princípio da legalidade, o qual, em sentido lato, comporta o fato de que constitui delito somente aquilo que é proibido, e não aquilo que é apenas reprovável, e, em sentido estrito, exige, ainda, que as proibições legais sejam formuladas, não apenas incorporando critérios genéricos de avaliação ou reprovação externa, mas, sim, individuando, taxativamente121, os comportamentos proibidos.
Assim, o que o pensamento iluminista subtrai à criminalização e ao controle é, sobretudo, o interior da pessoa em seu conjunto, quer dizer, sua alma ou a personalidade. Com esteio nessa opção laica, o direito penal afasta-se da tarefa de impor ou de reforçar a (ou uma determinada) moral, passando, somente, a criminalizar o cometimento de ações (ou omissões) danosas a terceiros.
Nessa perspectiva, para que se possa proibir e punir comportamentos, o princípio utilitário da separação entre direito e moral exige, como igualmente necessário, o fato de que esses ofendam concretamente bens jurídicos122 alheios, cuja tutela é a única justificação das leis penais enquanto técnica de prevenção daquelas ofensas. O Estado, com efeito, não deve imiscuir-se coercitivamente na vida moral dos cidadãos nem mesmo prover-lhes, de forma coativa, a moralidade, mas, somente, tutelar-lhes a segurança, impedindo que os mesmos causem danos uns aos outros123.
Em segundo lugar, se aplicado ao processo, e conseqüentemente aos problemas da jurisdição, o princípio normativo da secularização impõe que o julgamento não verse sobre a moralidade, ou sobre o caráter, ou, ainda, sobre outros aspectos substanciais da personalidade do acusado, mas apenas sobre os fatos penalmente proibidos que lhe são imputados e que, por seu turno, constituem as únicas coisas que podem ser empiricamente provadas pela acusação e refutadas pela defesa. Assim, o juiz não deve indagar sobre a alma do imputado, e tampouco emitir veredictos morais sobre a sua pessoa, mas apenas individuar os seus comportamentos vedados pela lei. Um cidadão pode ser punido apenas por aquilo que fez, e não pelo que é124.
Com isso, FERRAJOLI ensina que "o Estado, além de não ter o direito de obrigar os cidadãos a não serem ruins, podendo somente impedir que se destruam entre si, não possui, igualmente, o direito de alterar – reeducar, redimir, recuperar, ressocializar etc. – a personalidade dos réus. O cidadão tem o dever de não cometer fatos delituosos e o direito de ser internamente ruim e de permanecer aquilo que é".
4.3.3. Dignidade da pessoa e a proibição de leis penais constitutivas
Sob a égide garantista, a regulatividade penal é um pressuposto indispensável da tutela da dignidade do homem, cuja permite que deste sejam exigidas somente ações e omissões, devendo ser respeitado, seja quem for, em razão da livre desenvolvimento de sua personalidade. Logo, igualdade e respeito à pessoa conectam-se, pois a primeira se define como idêntica valoração das diferenças pessoais e igual direito de cada um à sua tutela. Dizer que são exigíveis apenas as formas de atuar e não os modos de ser, significa não se imputar, penalmente, condições pessoais.
Precisamente no que se refere ao que cada um é, ou pode ser – e que compõe a identidade humana -, consiste o respeito à pessoa ou, melhor, à sua humanidade. Assim, a regulatividade das normas penais consiste na condição de sua generalidade e, desse modo, um pressuposto da igualdade penal, porquanto todos os homens são iguais penalmente enquanto punidos pelo que fazem e não pelo que são e enquanto somente suas ações, e não sua personalidade, podem ser tipificadas e culpabilizadas como igualmente desviadas.
No entanto, FERRAJOLI adverte que as normas penais constitutivas não proíbem atuar, senão ser. Ademais, o sobredito jurista comenta que esse esquema tem sido reproduzido infinitas vezes na nem sempre edificante história do direito penal. Vez ou outra, o lugar das bruxas tem sido ocupado pelos hereges, os judeus, os infiéis e, na época contemporânea, pelas classes e sujeitos perigosos, ociosos e vagabundos, pelos propensos a delinqüir e pelos reincidentes.
Se tomarmos a expressão "caráter constitutivo" em um sentido amplo, passam a fazer parte do sistema constitutivo todas as normas ou segmentos de normas que elevam o status racial, social, político, religioso ou jurídico de uma pessoa à categoria de elemento constitutivo do delito e/ou de uma eximente, agravante ou atenunante125.
Desse modo, um dos tipos mais importantes em que se explica esse moderno paradigma quase-constitutivo é o da reincidência, vez que essa consiste uma forma de ser mais do que de agir, que atua, indevidamente, como um substantivo da culpabilidade no qual se expressa a atual subjetivação do direito penal.
Trata-se, em razão disso, de uma técnica punitiva que criminaliza imediatamente a interioridade ou, pior ainda, a identidade subjetiva do acusado. Portanto, tem um caráter explicitamente discriminatório, além de antiliberal126.
Assim, SANTIAGO MIR PUIG refere-se à recidiva "como circunstância que expressa uma atitude mais acentuadamente contrária ao Direito". Logo, "nada impede que se possa reputar constitucionalmente inconveniente a agravação da pena por reincidir. É, com efeito, rechaçável que agrave a pena, em um Direito Penal respeitoso do foro interno e que queira legitimar a proteger bens jurídicos (social-externos), uma mera atitude interna do sujeito não afeta o grau nem a forma da lesão produzida"127
Integrando às críticas, ALBERTO SILVA FRANCO comenta que se mostra bastante duvidosa, em sua constitucionalidade, a agravação obrigatória da pena, em razão de o agente ser reincidente. Não se compreende como uma pessoa possa, por mais vezes, ser punida pela mesma infração. O fato criminoso que originou a primeira condenação não pode, depois, servir de fundamento a uma agravação obrigatória de pena, em relação a um outro fato delitivo, a não ser que se admita um direito penal atado ao tipo de autor (ser reincidente)128, atitude contrária à lógica democrática deste Estado, como adredemente referido neste capítulo.
No mesmo sentido, CÂNDIDO FURTADO MAIA NETO, ao confrontar a reincidência com o modelo garantista de direito, leciona que:
O instituto da reincidência é polêmico e incompatível com os princípios reitores do Direito Penal democrático e humanitário, uma vez que a reincidência na forma de agravante criminal configura um plus para a condenação anterior já transitada em julgado. Quando o Juiz agrava a pena na sentença posterior, está, em verdade, aumentando o quantum da pena do delito anterior, e não elevando a pena do segundo crime129.
Nada mais sendo do que uma nova reprovação ao delito anterior, a aplicação do plus de gravidade da pena (seja em sua quantidade, seja na forma de seu cumprimento), decorrente do reconhecimento da reincidência, constitui intolerável afastando de princípios e regras constitucionais, segundo expõe MARIA LUCIA KARAM, citando ZAFFARONI130.
Percebe, assim, ANDRÉ COPETTI que "ao aumentar-se a pena do delito posterior pela existência da circunstância agravante da reincidência, em realidade se está punindo novamente a situação anterior já sentenciada".131
Todavia, oportuno se torna dizer que na história do direito penal moderno, o instituto da reincidência já havia sido duramente criticado por inúmeros escritores iluministas que alijaram a hipótese de que o mesmo fosse considerado motivo de aumento da pena132. PAGANO, citado por FERRAJOLI, advoga que "a pena cancela e extingue integralmente o delito, restaurando, ao condenado que a sofreu, a condição de inocente (...) Portanto, não se pode importunar o cidadão por aquele delito cuja pena já tenha sido cumprida". Do mesmo modo, MORELLY chega, inclusive, a pedir que seja castigado quem ousar recordar publicamente as penas sofridas no passado por alguém em face de delitos precedentes.
Aliás, palmilhando pelos contornos da filosofia iluminista, o estatuto penal decorrente da Riforma della Legislazione Criminale Toscana, ocorrida em 30.11.1786, estabelecera, em seu §57, que, "após executada a sanção imposta pela prática de conduta descrita como crime, as pessoas não poderão ser consideradas como infames, para nenhum efeito, nem ninguém poderá jamais reprovar-lhes por seu delito passado, que deverá se considerar plenamente purgado e expiado com a pena sofrida"133.
Essas indicações foram, contudo, totalmente subvertidas na segunda metade do século XIX pela regressão positivista da cultura penal, que concentrou grande parte da nova política criminal na relevância e no tratamento dos tipos de autor, mais do que nos de delito. Tal ideologia permitiu o surgimento de uma articulada tipologia de delinqüentes reincidentes – simples, habituais, profissionais e por tendência – a qual foi estampada no Código Penal de 1940. Por isso, os mesmos foram tratados com penas progressivamente severas, submetidos à medida de segurança, excluídos dos benefícios previstos para outros condenados, "impelidos, de fato, à carreira criminal como incorrigíveis ou irrecuperáveis"134.
Atualmente, no entanto, em reação às teorias positivistas, anti-garantistas e autoritárias, o legislador colombiano fornece o exemplo de abolição da reincidência pelo disposto no artigo 8º de seu CP de 1980, in verbis:
Proibição de dupla incriminação. A ninguém se lhe poderá imputar mais de uma vez a mesma conduta punível, qualquer seja a denominação jurídica que se lhe der ou haja dado, salvo o estabelecido nos instrumentos internacionais.
De modo menos abrangente, o sistema penal germânico, por intermédio da 23ª Lei de reforma, de 13 de abril de 1986, revogou a agravante genérica da reincidência, considerada, na exposição de motivos, contrária ao princípio da culpabilidade. De forma similar, essa espécie de reincidência foi banida do Código Penal espanhol de 1995, por considerar-se desligada do novo crime praticado pelo agente135.
Por outro enlace, merece relevo que as sentenças constitutivas não são, somente, como as leis constititutivas, fonte de desigualdade e discriminação; são, também, um fator de antiliberdade, na medida em que expressam um poder de disposição tão ilimitado quanto ilegítimo, em razão de seu caráter extralegal. O poder de julgar, enquanto não se restringe à função cognitiva que, além de provas e contraprovas, inclui um poder direto e autônomo de qualificação e etiquetamento, dá origem a uma relação inevitavelmente desigual, de domínio, que anula a dignidade da pessoa processada136.
Em sendo assim, sob a orientação do princípio da culpabilidade, mormente por sua conseqüência material de que a responsabilidade penal dá-se pelo fato e não pelo autor, NILO BATISTA arremata: "Ai de vós, penalistas, que proclamais o direito penal do ato quando ensinais culpabilidade e exerceis implacavelmente o direito penal de autor quando aplicais a pena! Ai de vós que vos louvarem, porque assim procederam seus pais os falsos profetas"137.
De todo o exposto, a realidade é que "a reincidência decorre unicamente de um interesse estatal de classificar as pessoas em ‘disciplinadas’ e ‘indisciplinadas’, e, é óbvio, não ser esta função do direito penal garantidor"138.
De resto, as práticas legislativas e judiciais articuladas pelo agravamento do caráter punitivo ao condenado reincidente, ressumbram contrárias aos princípios liberais da secularização e da culpabilidade, em razão de edificarem-se, preponderantemente, com referência à subjetividade desviada do acusado; o que redunda, de modo reflexo, em franca agressão ao axioma da dignidade humana.