Imunidade tributária dos templos e instituições religiosas como expressão da realidade jurídica ao direito fundamental da liberdade de culto ao sagrado

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27/12/2017 às 15:28
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4. A LIBERDADE RELIGIOSA COMO DIREITO FUNDAMENTAL PARA A CONCEPÇÃO DA IMUNIDADE PREVISTA NO ART. 150, INCISO VI, ALÍNEA B DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL.

4.1 A garantia constitucional das imunidades e o seu fenômeno jurídico

O direito se revela no cotidiano das pessoas como uma imposição, linguisticamente estruturada, que carrega em seu bojo as mais diversas formas moldadas pelas distintas searas que compõem a realidade jurídica testificada pela ciência. Assim, o conflito entre os interesses públicos e as liberdades individuais, se torna uma relação de eterno amor e ódio, haja vista os direitos presentes na Constituição estarem ligados diretamente com a função do Estado em os promover: essa íntima convivência sentida, todos os dias, pelos membros da sociedade é concretizada, pela linguagem, em forma de tributo. Nesse sentido, convém trazer ao debate a lídima colocação do tributarista Aliomar Baleeiro:

“O tributo é vetusta e fiel sombra do poder político há mais de 20 séculos. Onde ergue um governante, ela se projeta sobre o solo de sua dominação. Inúmeros testemunhos, desde a Antiguidade até hoje, excluem qualquer dúvida. No curso do tempo, o imposto, atributo do Estado, que dele não pode prescindir sequer nos regimes comunistas de nosso tempo, aperfeiçoa-se do ponto de vista moral, adapta-se às cambiantes formas políticas, reflete-se sobre a Economia ou sobre os reflexos desta, filtra-se em princípios ou regras jurídicas e utiliza diferentes técnicas para execução prática.”[30] (grifo nosso)

 

Através dessa toada, o tributarista e desembargador federal[31], Leandro Paulsen, se apropria das lições de Aliomar Baleeiro, contidas no livro “uma introdução à ciência das finanças” para elencar os meios, considerados universais, em que o Estado aufere seus recursos a serem despendidos às despesas públicas: extorsões e doações voluntárias; recolhimento de rendas; arrecadação de tributos; empréstimos forçados; fabricação de dinheiro.

Outrossim, Paulsen afirma:

“Os problemas relacionados à tributação, desde cedo, despertam a necessidade de compatibilização da arrecadação com o respeito à liberdade e ao patrimônio dos contribuintes. Por envolver imposição, poder, autoridade, a tributação deu ensejo a muitos excessos e arbitrariedades ao longo da história. Muitas vezes foi sentida como simples confisco. Não raramente, a cobrança de tributos envolveu violência, constrangimentos, restrições a direitos.”[32]

A linha reflexiva exposta a respeito da coação Estatal sobre os particulares ganha, com o caminhar histórico, o fomento advindo da soma de valores socialmente estabelecidos pela linguagem, os quais são recebidos pelos receptores como a prestação de deveres estatais para com a sociedade, assim cabe versar sobre um Estado de Direito que possui a função de tributar com a intencionalidade de beneficiar a coletividade em prol do bem comum.

Diante do exposto, vem a lume a garantia constitucional das imunidades, palavra que advém do latim, immunis, ou seja, “livre”, estando associada diretamente com as liberdades que sustentam a supremacia do Estado de Direito.

 As imunidades se caracterizam como a expressão do direito que legitima, na esfera da realidade fática, a proteção das liberdades públicas fundamentais para a formação da personalidade do indivíduo inserido em sociedade; elas estão ao lado da isenção como produtoras da proteção aos anseios arrecadatórios do Estado, contudo, ao contrário destas, que estão previstas em lei, aquelas são estabelecidas na Constituição, e, portanto, possuem mais do que um comando normativo, adquirem a essencialidade de um valor historicamente fundamental para o alicerce que sustenta a república.

Conforme aduzido, é de extrema importância expor o conceito de imunidade cunhado pela tributarista e ministra do Superior Tribunal de Justiça, a doutora Regina Helena Costa:

“A imunidade tributária, então, pode ser definida como exoneração, fixada constitucionalmente, traduzida em norma expressa impeditiva da atribuição de competência tributária ou extraível, necessariamente, de um ou mais princípios constitucionais, que confere direito público subjetivo a certas pessoas, nos termos por ela delimitados, de não se sujeitar à tributação.” [33]

Isso posto, vem à tona o debate acerca da não-incidência constitucionalmente qualificada a respeito das imunidades: a norma tributária é uma expressão de comando do Estado de Direito que está nas regiões abstratas da razão proveniente da realidade jurídica disposta na Carta Magna, concebendo a república.

Assim, embora a doutrina majoritária diga que as imunidades incorrem através da não incidência, o professor Paulo de Barros Carvalho afirma ser a imunidade uma norma de estrutura, ou seja, é um comando que atinge o relacionamento intersubjetivo dos interesses públicos frente aos interesses particulares, testificando à sociedade o zelo pelas liberdades públicas que estão asseguradas pela norma imunizante:

“É por incidir que a proposição normativa qualifica pessoas, coisas e estados de coisas, bem como é incidindo que o sistema, como um todo, atinge a disciplina integral do relacionamento intersubjetivo. Realmente, asseverar que a regra não incide equivale a negar-lhe tom de juridicidade, marca universal das unidades juridico-normativas. Norma que não tenha essa virtude está à margem  do direito ou não foi produzida segundo os ditames do ordenamento em vigor.”[34]

Todavia, o ilustre jurista nos orienta que a doutrina majoritária pode estar percebendo apenas o aspecto referente ao nascimento da obrigação tributária ao versar sobre a não-incidência: a incidência da norma gera a obrigação. Ora, alude o professor Paulo de Barros Carvalho que, de fato, se não houver a incidência que gera a obrigação, por conseguinte, não haverá o fato que produz a relação jurídica: a prestação e o dever de prestar não existirão.

Essa situação levou, segundo o professor, o tributarista Sacha Calmon Navarro Coelho a cunhar a expressão, “incidência da regra que não incide”[35], diante disso o professor expõe que tal expressão deve se qualificar como um “disparate”[36], pois não se poderá enquadrá-la no cabedal científico da juridicidade. Com expertise, vem a lume a preleção elucidativa do professor:

“Em obséquio a esse intento cumpre relegar a locução não-incidência constitucionalmente qualificada ao espaço comum das definições impróprias, que não se hão de acomodar num corpo de linguagem de pretensões científicas.”[37]

Destarte, a realidade fática só será expressada pela realidade jurídica se o conceito estiver em consonância com o fato observável. Ora, o que se observa é o desaparecimento da imposição do fisco sobre o contribuinte, justamente porque neste momento, onde haveria a presença do poder de tributar, resplandece a expulsão do ato restritivo em prol da liberdade pública substanciada em um direito fundamental.

4.2. A imunidade como mantenedora dos direitos fundamentais

Os direitos e garantias fundamentais{C}[38] estão positivadas na Constituição Federativa do Brasil, no título 2, dispostas no artigo 5º ao 17: devem ser considerados instrumentos jurídicos para a proteção do indivíduo frente a coação estatal. Contudo devemos esclarecer que está instrumentalidade protetiva não se vale de escudo para o Estado de Direito, pois este é constituído justamente para alicerçar o indivíduo em face de suas necessidades, fomentando a ordem em meio ao caos do mundo fático.

Isso posto, o caráter protetivo dos direitos fundamentais assegura que nenhum governo[39] tirânico venha a engendrar nas estruturas do Estado a função de solapar as liberdades públicas, desta forma o confronto não será com o Estado de Direito, mas com o Estado corrompido pelos interesses de um príncipe sem virtú.

Em conformidade com o versado e a título de exposição, se ilustra, abaixo, o quadro evolutivo das gerações de direitos fundamentais:

Primeira geração

São os direitos civis e políticos

Segunda geração

Referem-se aos direitos de igualdade

Terceira geração

Aludem aos direitos de solidariedade

Quarta geração

Inferem aos direitos relacionados à pluralidade social

Assim, deve-se trazer à exposição serem os direitos fundamentais fruto de um movimento dialético, historicamente produzido pela confluência das intencionalidades do ser humano materializados em movimentos sociais, bem como superação doutrinária por elevação dogmática de cunho humanístico. 

Nesse sentido, podemos colocar como exemplos, conforme mencionado pelo constitucionalista José Afonso da Silva, “o Manifesto do Partido Comunista e as doutrinas marxistas com sua crítica ao capitalismo burguês e a doutrina social da igreja, a partir do Papa Leão XIII, que teve especialmente o sentido de fundamentar uma ordem mais justa”[40]: essa evolução de itinerário fez com que a Igreja Católica Apostólica Romana se aproximasse dos pobres, corroborando para que a realidade jurídica abraçasse as classes abastadas e , por conseguinte, expandisse esse acolhimento para toda a sociedade:

“a expressão direitos fundamentais do homem são situações jurídicas, objetivas e subjetivas, definidas no direito positivo, em prol da dignidade, igualdade e liberdade da pessoa humana. Desde que, no plano interno, assumiram o caráter concreto de normas positivas constitucionais, não tem cabimento retomar a velha disputa sobre seu valor jurídico, que sua previsão em declaração ou em preâmbulos das constituições francesas suscita. Sua natureza passará a ser constitucional, o que já era uma posição expressa no art. 16 de Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, a ponto de, segundo este, sua adoção ser um dos elementos essenciais do próprio conceito de constituição.”[41]

Desta maneira, nos referimos à imunidade como uma forma utilizada pelo próprio Estado com a finalidade de proteger os direitos fundamentais que residem nas liberdades públicas em prol dos cidadãos. Eis a derradeira missão do Estado construído pela modernidade: promover a proteção do bem comum através da tecnologia da linguagem posta pelo direito, e, portanto, não olvidar que o fomento da tributação está intimamente associado com a legitimidade estatal através do zelo pelos direitos fundamentais.

Visto, a professora Regina Helena Costa expõe que as imunidades possuem o condão de aplicar, bem como aprofundar o “princípio da não-obstância do exercício de direitos fundamentais por via da tributação”[42], sendo consideradas normas que detém comando direto e imediato, devido a sua adjetivação como cláusulas pétreas. Diante disso, se deve trazer a lume as imunidades pertencerem aos direitos fundamentais de primeira geração, haja vista agirem em conformidade com a  não permissão para a imposição obrigacional do Estado ao sujeito de direito[43].

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Em sede de exemplificação, podemos citar o Art. 5º, incisos IV, VI, e IX, da Constituição Federal (ambos zelam pela liberdade de pensamento, consciência e religião), bem como o Art. 150, inciso VI, alínea, b e d da Constituição Federal (assegura a liberdade religiosa, bem como a livre circulação de ideais através da imunização de templos e instituições religiosas e jornais, periódicos, bem como o papel destinado à sua impressão).

Em consonância com o exposto, convém a lição da professora Regina Helena Costa:

“Em conclusão, verifica-se que as imunidades tributárias, além de densificarem princípios e valores constitucionais, conferindo a determinados sujeitos autêntico direito público subjetivo de não-sujeição à imposição fiscal, revelam-se, também, instrumentos de proteção de outros direitos fundamentais.”[44]

Ademais, é nessa toada que se visualiza a compilação dos valores sociais em benefício da ratio, ou seja, da razão humana, autora de uma realidade onde o permitir ou o proibir que algo aconteça deve ser trabalhado com profunda dinâmica, originando um cenário onde o equilíbrio deve preponderar sobre qualquer intento de exacerbação: é aqui que reside o ponto médio aristotélico.

4.3 A liberdade religiosa protegida pelo Art. 150, inciso VI, alínea b da Carta Magna

Sir{C}[45]{C} Isaac Newton[46], certa feita, disse: “se eu vi mais longe, foi por estar sobre os ombros de gigantes”. Essa fala convém a qualquer empreendimento de caráter científico, inclusive na seara de estudos a respeito das imunidades, pois só se pode falar de imunidades devido ao cabedal linguístico construído ao longo dos séculos, através da gama de filósofos e juristas que analisaram a engrenagem do Estado de Direito.

Entre todas as imunidades, uma, em particular, chama a atenção: é a contida no Art. 150, inciso VI, alínea b da Carta Magna, in verbis:

Art. 150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:

[...]

VI - instituir impostos sobre:

[...]

b) templos de qualquer culto; [...].

Essa espécie de imunidade advém, primeiramente, do preâmbulo da Constituição Federal, que nos diz:

“Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembléia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL.” (grifo nosso) 

E segue, através dos dispositivos que resguardam os direitos de assistência religiosa, contidos em seu artigo 5º:

VI - é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias.

VII - é assegurada, nos termos da lei, a prestação de assistência religiosa nas entidades civis e militares de internação coletiva;

VIII - ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para eximir-se de obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação alternativa, fixada em lei

Destarte, o Art.19, inciso I, da Carta Magna estabelece que o Estado de Direito precisa proteger a liberdade religiosa:

Art. 19. É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:

I - estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público; [...].

Conforme a exposição supra, esses dispositivos legais representam a concretização do significado primeiro da república: possibilitar aos cidadãos o pleno gozo de suas faculdades para a formação da personalidade individual e da comunidade. O fundo civilizacional religioso discrimina que toda civilização possui, como condão basilar, um senso de orientação no cosmos; verdadeiro e falso; pertencentes ao mundo natural, cujo qual fomenta no ser humano a tentativa de apreensão da totalidade dos objetos, essa direção culmina na aglomeração de símbolos que constituem o sagrado, afastando a civilização da ignorância simbólica, e, portanto, fundando os pilares cognitivos à razão disciplinar o mundo fático pelo viés do método científico. Diante disso, Jean Rivero e Hugues Moutouh dizem ser através da “liberdade religiosa que poderemos designar a liberdade de consciência”.[47]

4.3.1 Antecedentes

Segundo o professor Heleno Torres, a imunidade conferida aos templos de culto e instituições religiosas surgiu no ordenamento constitucional brasileiro, na Constituição de 1946[48], conforme expõe através de caráter panorâmico:

“A imunidade a templos de qualquer culto somente aparece na Constituic?a?o de 1946 e, desde enta?o, foi mantida pelos sucessivos textos constitucionais, como um modo de garantir a expressa?o da fe? religiosa, a crenc?a, em todas as suas dimenso?es. A partir da Constituic?a?o de 1891, com a separac?a?o entre estado e igreja, essa liberdade tornou-se um patrimo?nio dos cidada?os livres que na?o poderia ser violado por ac?o?es do poder de tributar.”[49]

Diante disso, convém trazer para a análise em apreço as palavras de Aliomar Baleeiro, um dos grandes mentores da constituição de 1946, a respeito dos valores espirituais que fundam a imunidade aos templos de culto:

“Quando o preâmbulo da Constituição proclama que ela invoca a proteção de Deus, para organizar um regime representativo (art. 1º) e democrático (art. 151, I; 152, I; e 154), exterioriza ao mesmo tempo a fé em certos valores espirituais. Ela, pois, naturalmente, procurou protegê-los, preservá-los e encorajá-los pelos meios eficazes ao seu alcance. A escolha do regime democrático não traduz apenas uma orientação política e jurídica, mas também ética e filosófica. Fim em si mesmo, na concepção kantiana, o homem, ou a mulher, recebe do regime democrático o compromisso de assegurar-lhe o harmonioso desenvolvimento de todas as suas potencialidades materiais e morais para o bem comum.”[50]

Isso posto, mostra-se inegável a função estruturante da norma tributária à imunidade de natureza religiosa, pois é através deste comando que a sociedade possibilita aos seus membros se felicitarem da experiência do bem comum: o gozo não será usufruído, apenas, por grupos ligados ao cristianismo, islamismo e judaísmo (religiões monoteístas), muito menos será absorvido, exclusivamente, pela religião budista ou de matriz africana; a imunidade deve ser vivida por toda a sociedade: do crente ao Deus uno ou deuses de diversas estirpes, até o agnóstico ou o ateu, que devem possuir a liberdade de não se filiarem a qualquer corrente religiosa. Desta maneira, ensina o tributarista Roque Antonio Carrazza:

“Como vemos, a liberdade religiosa, afirmada e confirmada em nosso Texto Supremo, reclama, máxime das autoridades públicas, o pleno respeito às convicções e à independência espiritual de cada indivíduo. Direito fundamental, consagrado na própria Declaração Universal dos Direitos Humanos (art. 18), da qual o Brasil é signatário, é, em nosso ordenamento constitucional, “cláusula pétrea”, ou seja, pertence ao núcleo irredutível da Constituição Federal. Em suma, o Estado Brasileiro tem a obrigação constitucional de respeitar as convicções religiosas - sejam quais forem - de seus habitantes. Deste modo, deve manter neutralidade sobre o assunto (não pode subvencionar nenhum culto) e tratar com isonomia as múltiplas religiões existentes (...) Remarque-se que o nosso País assegura a livre manifestação de qualquer culto. Daí o desafio constante de, sem perda do secularismo, proteger o direito fundamental à liberdade religiosa, que se imbrica num dos pilares do nosso ordenamento jurídico: a dignidade da pessoa humana. É ela que justifica a atribuição de direitos fundamentais aos cidadãos, quando se defrontam com o Estado-Poder.”[51]

Assim, como toda a realidade jurídica se perfaz em um ganho historicamente constituído pela racionalidade humana, a imunidade, que zela pela liberdade religiosa, derivará de um processo de aperfeiçoamento social, institucionalmente consolidado, conforme panorama apresentado pelas constituições que vigoraram ao longo da história do Brasil:

“Constituição de 1824: a religião católica apostólica romana é a religião oficial do império, contudo não se deve perseguir a ninguém por motivos religiosos.

Constituição de 1891: o Estado não pode embaraçar qualquer manifestação de cunho religioso. A liberdade religiosa deve ser preservada.

Constituição de 1934:  E? inviola?vel a liberdade de conscie?ncia e de crenc?a e garantido o livre exerci?cio dos cultos religiosos, desde que na?o contravenham a? ordem pu?blica e aos bons costumes.

Constituição de 1937: todos os indivi?duos e confisso?es religiosas podem exercer pu?blica e livremente o seu culto.

Constituição de 1946: A imunidade sobre os templos de qualquer culto é normatizada.

Constituição de 1967: A imunidade sobre os templos de qualquer culto é mantida.

Constituição de 1988: a imunidade sobre os templos religiosos ganha maior proporção, dando ensejo para que a norma incida, não apenas, nos locais onde os cultos são realizados, mas também, nas atividades que detém como finalidade a liberdade religiosa.”[52]

A progressão constitucional referente à imunidade para a proteção da prática religiosa demonstra a importância da norma ao poder constituinte, pois ela não foi restringida nem no período em que vigorou o regime militar, considerado um agrupamento de anos turbulentos para a sociedade brasileira.

Ora, a realidade jurídica possui a qualidade de agasalhar o mundo fático paulatinamente, pois a atitude política deverá agir em primeiro lugar ao legislar um campo da realidade percebida e, por derradeiro, positivar os valores sociais em direitos.

 Assim, será por meio desta confluência de situações que a liberdade religiosa será hasteada como uma das espécies de liberdade com maior importância para o corpo social, dando azo ao debate acerca da plausibilidade sobre o extensão que a imunidade deve abarcar. As respostas podem parecer insatisfatórias para ambos os lados, por isso nesse momento o argumento de melhor aprumo será o que possuir a maior coerência científica.

4.3.2 Atualidade

Nas quadras do século XXI, a globalização atinge todos os departamentos do expediente em prol do conhecimento humano: aquilo que ocorre no Japão é sentido com vigor aqui no Brasil. Destarte, se atingirmos a reflexão econômica, a intensidade desta constatação fica ainda mais evidente, conforme expõe com precisão lúcida o professor José Eduardo Faria:

“A identificação da natureza das instituições de direito surgidas com a globalização econômica, o mapeamento das práticas normativas emergentes com esse fenomeno e o exame dos inumeros e complexos desafios teóricos, problemas analiticos e questões metodologicas por elas hoje interpostas ao pensamento jurídico passam, obrigatoriamente, como se vê, pela importante questão da efetividade do próprio princípio da soberania do Estado-nação, enquanto condição epistemológica necessária (ainda que não suficiente) da teoria jurídica moderna. Nação, Estado e soberania, como é sabido, são conceitos conectados ou relacionados com processos econômicos, sociais, políticos e culturais que se implicam e se completam.”[53]

Diante desse panorama, as instituições religiosas expandem a sua rede de influências através das tecnologias disponíveis ao rápido e fácil alargamento institucional, nesse sentido as imunidades dão ensejo a uma midiatização da fé, ensejando posicionamentos contrários às imunidades, conforme se verifica na coluna, do site Consultor Jurídico, escrita pelo ex-presidente do Tribunal de Ética e Disciplina da OAB-SP, Raul Haidar:

“Várias entidades que se intitulam igrejas já se transformaram em impérios econômicos, cujo poder ninguém sabe até onde vai e cujos líderes exercem esse poder de forma totalmente obscura ou mesmo através de ordem hereditária. Não há exagero em vermos tal situação como estado dentro do Estado. Afinal, há redes de comunicação (TV, Rádio, jornal) e até partidos políticos agindo abertamente como órgãos subordinados a instituições religiosas, onde é possível a subordinação dos eleitos à hierarquia da seita.”[54]

Utilizando o mesmo fundo crítico, está em análise, no Senado, uma sugestão legislativa (SUG 2/2015), de relatoria do Senador José Medeiros, que pede o fim da imunidade às entidades religiosas: essa sugestão legislativa ainda será apreciada pela casa, e, no momento, se encontra com a Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa (Secretaria de Apoio à Comissão de Direitos Humanos e Legislação).

Isso posto, devemos iluminar a narrativa com o sapiente entendimento jurisprudêncial e doutrinário sobre a extensão do conceito de templos, importante para se analisar a extensão da proteção do Estado aos cultos de qualquer natureza religiosa, disposto na alínea b, do inciso VI contido no Art. 150 da Constituição do Brasil.

 Para o tributarista Aliomar Baleeiro:

O templo não deve ser apenas a igreja, sinagoga ou edifício principal, onde se celebra a cerimônia pública, mas também a dependência acaso contígua, o convento, os anexos por força de compreensão, inclusive a casa ou residência do pároco ou pastor, desde que não empregados em fins econômicos.”[55]

Hodiernamente, Roque Antonio Carrazza nos diz:

“Retomando nossa linha de pensamento, a expressão “templos de qualquer culto” há de receber interpretação abrangente, de modo a ser tomada no sentido de Igrejas, em suas várias formas organizacionais. Por Igreja há que se entender a instituição religiosa que cultua, por meio de ritos próprios, um Ser Transcendental e que, no dizer expressivo de Del Giudice, “tende a conseguir o bem comum sobrenatural da santificação dos fiéis.”[56]

Outrossim, a jurisprudência preserva, bem como fomenta, um entendimento de maior extensividade para a análise da imunidade, conforme se depreende do estudo de caso concreto a respeito da aquisição de mercadorias pelo templo.

Primeiramente, deve-se depreender que, ao se tratar da atividade dos templos para a aquisição de mercadorias, não se deve olvidar que a norma imunizante só produzirá o fato tributário quando a finalidade essencial do templo, ou seja, o propagar a doutrina religiosa, estiver em consonância fática com a mercadoria adquirida.

Essa expressão fática originou, recentemente, entendimento do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, favorável à não incidência de ICMS[57] na aquisição de aparelhos de rádio e tv para a transmissão de programa cristão para todo o país através de grande rede televisiva. Vejamos as ementas:[58]

ICMS. Imunidade tributária. Entidade religiosa. Importação de equipamentos televisivos para renovação da unidade de produção. Produtos adquiridos para a realização de finalidade essencial da entidade, consistente em propagação da doutrina religiosa por meio televisivo. Imunidade reconhecida. Precedentes desta Corte. Procedência da ação mantida. Recurso improvido.[59]

Prosseguindo:

APELAÇÃO CÍVEL - MANDADO DE SEGURANÇA - ICMS Importação de equipamentos do exterior por entidade religiosa, para a utilização em suas atividades essenciais Pretensão à imunidade religiosa, nos termos do art. 150, inciso VI, alínea "b", da Constituição Federal Admissibilidade O ICMS é tributo que, a princípio, não admite a aplicação da regra da imunidade tributária, exceto quando o bem seja importado para o fim de incorporar o ativo permanente da instituição - Produtos não destinados à circulação Imunidade cabível - Precedentes R. sentença reformada Recurso provido.{C}[60]{C}

Em derradeiro:

APELAÇÃO ICMS-importação – Entidade religiosa que promoveu a importação de equipamentos de televisão, visando adequar-se às exigências promovidas pela Agência Nacional de Telecomunicações ANATEL, referentes à transmissão de sinal digital (HDTV) Pretensão ao reconhecimento da incidência da denominada imunidade religiosa sobre o ICMSimportação, nos termos do artigo 150, caput, inciso VI, alínea “b” e §4º, da Constituição Federal. PRELIMINARES. Cerceamento de defesa Inexistência Desnecessidade de produção de prova pericial Matéria majoritariamente de direito e, na porção fática, bem arrimada na documentação coligida aos autos Preliminar repelida. Nulidade do julgado por parcialidade do magistrado Rejeição Alegação genérica, que sequer faz menção ao fato que teria supostamente prejudicado a parcialidade do magistrado (artigos 145 e 146, do Código de Processo Civil CPC/15) O julgamento contrário à pretensão da parte, sob nenhum ângulo, traduz imparcialidade, mormente quando desacompanhada de qualquer fundamento ou prova Preliminar rechaçada. MÉRITO A demandante é entidade religiosa, sendo certo que o seu estatuto elege entre os seus objetivos a propagação de sua doutrina por meio oral, escrito e televisado Acervo de bens importados que estão endereçados à renovação de equipamentos televisivos, com o intuito de adequação às exigências da agência reguladora competente Acervo patrimonial da demandante, a atrair a imunidade fiscal prevista no artigo 150, caput, inciso VI, alínea “b” e §4º, da Constituição Federal, tendo-se em vista a afinidade ao desempenho de suas atividades típicas (essenciais) Divisada a relação de congruência entre os bens adquiridos e a realização de atividades institucionais é inevitável reconhecer o aperfeiçoamento da imunidade fiscal “O Supremo Tribunal Federal tem entendido que a limitação ao poder de tributar que a imunidade do artigo 150, VI, 'b', contempla há de ser amplamente considerada, de sorte a ter-se como cultos distintas expressões de crença espiritual. Mais ainda, no RE n. 325.822, relator para acórdão o Ministro Gilmar Mendes, definiu que ela abrange não apenas os prédios destinados ao culto, mas também o patrimônio, a renda e os serviços 'relacionados com as finalidades essenciais das entidades' mencionadas no preceito constitucional. Daí que a regra do §4º desse artigo 150 serve de vetor interpretativo dos textos das alíneas 'b' e 'c' do seu inciso VI.” (RE 578562- 9/BA, Tribunal Pleno, Rel. Min. Eros Grau, j. 21.05.08) Igualmente, o acervo documental demonstra que a apelante promoveu diretamente a importação dos bens, revestindo-se como contribuinte de direito, a engrossar a conclusão acerca da imunidade tributária “O Colegiado rememorou que prevalece no STF o entendimento de que a imunidade tributária subjetiva se aplica aos seus beneficiários na posição de contribuinte de direito, mas não àqueles na condição de contribuintes de fato, bem como que é irrelevante, para a verificação ou não da imunidade constitucional, a discussão acerca da repercussão do tributo envolvido.” (RE 608872/MG, Plenário, Rel. Min. Dias Toffoli, j. 22 e 23.02.17 Noticiado no Informativo nº 855) Precedentes desta Corte de Justiça Sentença reformada Recurso provido.[61]

Conforme aludido, se verifica que as instituições religiosas, na contemporaneidade, conquistaram perante a realidade jurídica, argumentos, bem como entendimentos favoráveis à extensão da imunidade que a agasalha, sendo, não apenas, o conceito de templo alargado aos membros que constituem o núcleo institucional da entidade religiosa, como também, o alcance do relacionamento das técnicas sociais (compra e venda, importação de produtos essenciais, importação de produtos propagadores da fé, etc) com relação ao que se considera a finalidade religiosa cuja qual está, ad aeternum, sujeita ao condão da liberdade religiosa.

Em suma, o direito deve ser operado buscando, de maneira analítica, uma linguagem que comunique ao receptor os conceitos das coisas existentes, bem como valoradas ao direito, ou seja, o jurídico precisa versar sobre aquilo que existe dentro de sua realidade, e, qualquer hipótese marginal, não poderá ser incidida pela norma. Ademais, a liberdade religiosa condensa em seu seio o fulcro do princípio republicano, conforme explanado pela ministra Regina Helena Costa:

“Do conteúdo do princípio republicano, tão marginalmente estudado por Geraldo Ataliba, extrai-se que para a gestão da res publica, dentre outros expedientes, pode o Estado lançar mão da exoneração tributária, promovida no próprio plano constitucional. Essa noção rima com a ideia de isonomia, uma vez que quem se beneficia, em última análise, com a intributabilidade, como sublinhado anteriormente, não é o ente alcançado pela imunidade, mas a própria sociedade.” [62]

Portanto, conforme sintetiza, o mestre Carrazza:

“Imprescindível, porém, que se atenda à determinação constituinte e se estenda, de modo efetivo, o manto da imunidade tributária sobre as verdadeiras Igrejas, que diretamente ou por meio de suas instituições religiosas, cumprem a preceito o papel sobrenatural e humano, para o qual foram criadas.”[63]

Enfim, há de ser imprescindível a proteção da liberdade religiosa pelo viés da imunidade, conforme a autoridade cientifica exposta pelo mestre:

“Prescindível dizer que o interesse da coletividade e todos os valores fundamentais tutelados pela ordem jurídica concorrem para estabelecer os limites de efusão da fé religiosa e a devida utilização dos templos onde se realize. E quanto ao âmbito de compreensão destes últimos (os templos), também há de prevalecer uma exegese bem larga, atendendo-se, apenas, para os fins específicos de sua utilização, como expressamente reconhecido em nosso ordenamento, no art. 150, §4º.”[64]

Em Suma, não convém versar sobre a extinção da imunidade aos templos e instituições religiosas, pois ela se concretiza no plano do mundo fático como uma expressão da realidade jurídica, haja vista todo o itinerário percorrido pela sociedade à concepção do Estado de Direito e sua manutenção pela matriz republicana.

Caso a liberdade religiosa fosse atingida pela repressão de um Estado com essência totalitária, o desmantelamento das outras liberdades seria algo imediato, ou gradativamente rápido. Por isso, o mestre Paulo de Barros Carvalho nos orienta, em citação supra, ser o interesse de toda coletividade ligado ao interesse do particular de professar a fé, e, por este motivo, se o indivíduo for solapado, consequentemente, toda a sociedade também será.

4.3.3 Experiência

A realidade jurídica se mostra autora das equações que produzem o dinamismo social, pois será através da lógica jurídica que a sociedade encontrará o fecho que sustentará o contrato social materializado no Estado de Direito.

Diante disto, a linguagem do direito produzirá o regulamento necessário para a multiplicidade de intenções que darão forma a intersubjetividade do espírito do nosso tempo, aspirante à busca pela efetivação dos direitos dispostos na Constituição da República Federativa do Brasil: o direito se mostra uma conjunção entre a hipótese prevista no plano abstrato da razão e a prática, executada pelos entes corpóreos no plano empírico da realidade fática, ou seja, o direito se realiza como experiência, conforme monumental preleção do professor dos professores, o filósofo Lourival Vilanova:

“Ante a concreção existencial do Direito dado na experiência profissional e na experiência cientifico-dogmática (para não aludir às ciências jurídicas não-dogmáticas, como a sociologia do Direito), a analise formal-lógica do Direito nos dá muito pouco. Dá-nos as estruturas formalizadas que não retratam especificadamente este ou aquele Direito positivo, mas, por isso mesmo, retém o universal da forma lógica, que se encontra em qualquer Direito positivo. Não nos dá o universal concreto, seja axiológico, seja factual-histórico, porque estes se revelem no processo mesmo da cultura, que é a forma concreta global em que se desenvolve o Direito, como os demais subsistemas normativos reguladores da conduta humana. ”[65]

Visto, a experiência realiza o Direito como realidade jurídica, por isso, os valores que a fundam inferem ser a liberdade de culto ao sagrado uma garantia fundamental com caráter axiológico, pois, conforme ilustra o mestre Ives Gandra da Silva Martins:

“A Igreja Católica, os evangélicos ou judeus não estiveram lá [na Assembleia Constituinte] como instituições. Foram os cidadãos, de acordo com suas convicções, eleitas pelo povo, que definiram contra o voto daqueles que não acreditavam em Deus.”[66]  

Em suma, a escolha de acreditar em Deus está além do plano religioso, escoltando, portanto, a coisa publica, ou seja, possibilita que a republica seja primazia para a sobrevivência da atitude civilizacional: o ato de crer está diretamente associado ao movimento de existir em sociedade.

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Sobre o autor
José Alberto Machado Neto

Discente do 5º ano da graduação em Direito pela Universidade São Judas Tadeu. Pesquisador.

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