Capa da publicação Pornografia não consensual: o problema da falta de tipificação penal
Artigo Destaque dos editores

Pornografia não consensual: o problema da falta de tipificação penal

Exibindo página 2 de 2
29/12/2017 às 16:03

Resumo:


  • O presente artigo abordou a pornografia de vingança ou pornografia não consensual, destacando a divulgação de conteúdo íntimo sem consentimento da vítima.

  • Foram analisadas as consequências graves desse tipo de conduta, bem como a falta de tipificação penal específica para lidar com esses casos.

  • Destacou-se um projeto de lei em trâmite no Congresso Nacional que propõe a criação de um tipo penal para enfrentar a pornografia não consensual.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

4.      O PROBLEMA DA FALTA DE TIPIFICAÇÃO

O crime eletrônico é, em princípio, um crime de meio. Isso quer dizer que ele pode ocorrer também no mundo real, sendo a internet apenas um facilitador. Mas há necessidade de tipificação penal de algumas modalidades que, em razão de suas peculiaridades, merecem um tipo penal próprio (PINHEIRO, 2013). Esse é justamente o caso da pornografia não consensual, onde a ausência de tipo penal específico dificulta a punição dos responsáveis no âmbito penal (OLIVEIRA; PAULINO, 2016).

Parte da doutrina entende que tratar a pornografia não consensual como crime contra a honra impede a proteção eficaz da vítima e a punição adequada do ofensor. Crimes contra a honra são infrações de menor potencial ofensivo e a pena cominada é branda e desproporcional à magnitude da lesão, visto as graves consequências do crime (FREITAS, 2015; GUIMARÃES; DRESCH, 2014). Também estão sujeitos às medidas despenalizadoras implementadas pela Lei nº 9.099/1995.

Outro ponto a considerar é que nesses crimes a persecução penal somente ocorre mediante queixa (ação penal privada), cabendo ao ofendido o ônus da acusação em juízo por meio de advogado constituído. Importante seria o processamento mediante ação penal pública condicionada à representação para desonerar a vítima do ônus da acusação.

Também vale mencionar que a pornografia não consensual ofende simultaneamente as honras objetiva e subjetiva (PEREIRA, 2017). Atualmente, não há tipo penal com essa característica e alternativa seria um concurso dos crimes de injúria e difamação. Se os crimes forem praticados em contextos fáticos autônomos, o concurso é possível (CUNHA, 2016). Todavia, esse não é o caso da pornografia não consensual, onde há ofensa simultânea às honras objetiva e subjetiva em um único contexto fático. Nesses casos, não há consenso sobre a possibilidade de concurso.

Algumas decisões reconhecem a continuidade delitiva, pois ofendem o mesmo bem jurídico. Há corrente defendendo a aplicação do princípio da consunção, de modo que o crime mais leve é absorvido pelo mais grave, não importando a espécie de honra ofendida. Cunha (2016) entende ser possível o concurso de delitos (material ou formal, conforme o caso) quando as condutas atingirem honras diferentes se o agente divulgar no mesmo escrito texto que ofendam as honras objetiva e subjetiva (CUNHA, 2016).

Diante do caráter peculiar da pornografia não consensual de ofensa simultânea à honra objetiva e subjetiva, bem como o descompasso entre a sanção penal leniente e as cruéis consequências para a vítima, faz-se necessário criar tipo penal específico com previsão de pena compatível com a gravidade da lesão, pois, não há subsunção perfeita do fato a nenhuma figura típica existente atualmente (PEREIRA, 2017).

Também é importante discutir a natureza do bem jurídico violado. Defender que a exposição pública da intimidade sexual constitui lesão à honra tem conotação moral, algo que se vincula aos tabus e moralismos que enxergam na sexualidade (especialmente a feminina) pecados e imoralidades (GUIMARÃES; DRESCH, 2014).

Por isso, defende-se que o bem jurídico violado pelo crime de pornografia não consensual é a dignidade sexual da vítima, e não a sua honra. Legislação de Israel (2014) foi a primeira a classificar a pornografia não consensual como agressão sexual (FRANKS, 2015). O crime é discutido associado ao tema da autonomia sexual, privacidade sexual e do controle do próprio corpo (CITRON; FRANKS, 2014).

Embora não haja contato físico como na maioria dos casos de estupro, Citron e Franks (2014) defendem que a pornografia não consensual é uma forma de agressão sexual. Há precedentes para a criminalização de formas de violência sexual sem contato físico no direito penal internacional. Os Tribunais Penais Internacionais para Ruanda (1994) e para a Ex-Iugoslávia (1993) estabeleceram a nudez forçada como forma de violência sexual que independe de contato físico com o agressor (GUIMARÃES; DRESCH, 2014).

O PLC nº18/2017 de autoria do Deputado João Arruda (PMDB/PR) propõe, além de outras alterações, a tipificação da conduta de exposição pública da intimidade sexual (pornografia não consensual). A proposta era alterar o Código Penal para incluir um novo tipo penal no rol dos crimes contra a honra, considerando-o espécie qualificada de injúria. O projeto também propunha alterar a Lei Maria da Penha, deixando claro que a violação da intimidade da mulher, por meio da divulgação de dados pessoais, vídeos, áudios, montagens e fotocomposições da mulher, obtidos no âmbito das relações domésticas, constitui forma de violência doméstica e familiar contra a mulher.

Após aprovação pelo plenário da Câmara dos Deputados, a proposta seguiu para o Senado Federal onde se encontra em análise, sendo distribuído para a Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa (CDH), sob relatoria da Senadora Gleisi Hoffmann (PT/SC).

Durante a discussão do projeto na CDH, foi apresentado e aprovado texto substitutivo que mantinha a tipificação do crime de exposição pública da intimidade sexual, mas, reposicionando o tipo penal na parte que trata dos crimes contra a dignidade sexual. Uma vez aprovado pela CDH, o texto substitutivo foi aprovado pela Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ) e aguarda votação pelo plenário do Senado Federal. Dessa forma, percebe-se que o legislador pátrio compartilha a opinião de que o bem ofendido pela pornografia não consensual é a dignidade sexual e não a honra.

Conforme mencionado anteriormente, doutrina e jurisprudência já reconheciam a pornografia não consensual como forma de violência doméstica e familiar contra a mulher, demandando a aplicação da Lei Maria da Penha, em situações em que a vítima for mulher e existir vínculo afetivo entre agressor e vítima. Entretanto, a inciativa de alterar o texto da Lei Maria da Penha para deixar esse entendimento explícito é muito bem-vinda.

A aplicação da Lei Maria da Penha nem sempre é admitida no âmbito da Justiça por razões diversas, como a precariedade dos equipamentos de atendimento à mulher, despreparo dos servidores públicos envolvidos, imaginário social relacionado ao tema, entre outros. Dessa forma, reconhece-se a importância de tipificar de maneira explícita a pornografia não consensual, de maneira que não reste dúvida de que suas vítimas contam com a proteção e o amparo previsto na Lei Maria da Penha.


5.      CONCLUSÃO

A pornografia não consensual corresponde à divulgação ilícita de imagens e vídeos expondo nudez ou atividade sexual da vítima sem o seu consentimento. Trata-se de um crime que gera graves consequências paras as vítimas, indo desde a execração pública até o suicídio. Há casos em que a vítima consente na produção do material íntimo. Em outras situações o conteúdo é gravado ao seu alvedrio. Quando a vítima se deixa gravar, o agressor costuma ser seu ex-parceiro que expõe sua intimidade como vingança após o término de relacionamento. Por isso o termo pornografia de vingança é tão comum na literatura especializada.

As mulheres correspondem a 90% das vítimas (CCRI, 2013) e são também as que sofrem as piores consequências. Em especial quando consentem em registrar o momento de intimidade. Como uma das consequências do crime, a vítima precisa lidar com o julgamento da sociedade. Mas, da mesma forma que o comportamento e a forma de vestir não justifica o estupro, o exercício da liberdade sexual, consentindo em se deixar gravar em um momento de intimidade, de forma totalmente lícita, não significa autorização implícita para a exposição ampla e irrestrita desses momentos.

A culpabilização da vítima é reflexo de uma sociedade hipócrita e machista, que ainda vê com ressalvas o livre exercício da sexualidade feminina. Quem merece a punição não é a vítima, mas o autor que abusou de uma situação de confiança, expondo sua intimidade sem o seu consentimento. Não basta uma lei penal mais rigorosa para erradicar esse comportamento. A mudança de cultura de uma sociedade exige medidas políticas e sociais mais amplas do que a promulgação de textos legais (GUIMARÃES; DRESCH, 2014).

A inexistência de um tipo penal específico para a pornografia não consensual dificulta a punição do agressor, sendo que a maioria dos autores responde por crimes contra a honra. Vários autores relatam que a sanção penal é muito branda, face a gravidade das consequências advindas para a vítima. Todavia, essa não é a questão mais relevante. Mas o fato mais grave está em reconhecer que, em situações assim, o bem jurídico violado foi a honra da vítima.

Tratar a pornografia não consensual como crime contra honra evidencia uma sociedade em que ainda persistem tabus e moralismos rodeando o tema da sexualidade humana, especialmente a feminina. Parece bastante claro que o bem jurídico lesionado com a exposição não consentida da intimidade sexual não é a honra, mas a dignidade sexual. Felizmente, o Senado Federal apresentou um texto substitutivo ao PLC nº 18/2017, propondo a tipificação penal da pornografia não consensual como crime contra a dignidade sexual.

Apesar de a pena cominada pelo novo tipo penal proposto ser muito próxima daquela conferida pelos crimes contra honra, o efeito simbólico de reconhecer que o bem jurídico violado pela conduta do autor foi a dignidade sexual da vítima e não a sua honra é muito importante.


6.      REFERÊNCIAS

BRASIL. Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de Dezembro de 1940. Código Penal. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del2848compilado.htm>. Acesso em: 24 nov. 2017.

BRASIL. Lei nº 11.340, de 7 de Agosto de 2006. Cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos do §8º do art. 226 da Constituição Federal, da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres e da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher; dispõe sobre a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher; altera o Código de Processo Penal, o Código Penal e a Lei de Execução Penal; e dá outras providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11340.htm>. Acesso em: 24 nov. 2017.

BRASIL. Lei n° 12.737, de 30 de Novembro de 2012. Dispõe sobre a tipificação criminal de delitos informáticos; altera o Decreto-Lei no 2.848, de 7 de dezembro de 1940 - Código Penal; e dá outras providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2012/lei/l12737.htm>. Acesso em: 24 nov. 2017.

CAVALCANTE, Vivianne Albuquerque Pereira; LELIS, Acácia Gardênia Santos. Violência de gênero contemporâneo: uma nova modalidade através da pornografia da vingança. Interfaces Científicas – Direito, Aracaju, v. 4, n.3, p. 59-68, jun. 2016. Disponível em: <http://dx.doi.org/10.17564/2316-381X.2016v4n3p59-68>. Acesso em: 09 nov. 2017.

Assine a nossa newsletter! Seja o primeiro a receber nossas novidades exclusivas e recentes diretamente em sua caixa de entrada.
Publique seus artigos

CITRON, Danielle Keats; FRANKS, Mary Anne. Criminalizing Revenge Porn. Wake Forest Law Review. Salem – EUA, n. 49, p. 345-391, verão de 2014. Disponível em: <https://repository.law.miami.edu/cgi/viewcontent.cgi?article=1059&context=fac_articles>. Acesso em 09 nov. 2017.

CUNHA, Rogério Sanches. Manual de Direito Penal Parte Especial. Salvador: Editora Juspodvium, 2016

CYBER CIVIL RIGHTS INITIATIVE (CCRI). Statistics on Revenge Porn. EUA, 2013. Disponível em: <https://www.cybercivilrights.org/wp-content/uploads/2014/12/RPStatistics.pdf>. Acesso em: 20 nov. 2017

FRANKS, Mary Anne. Drafting An Effective “Revenge Porn” Law: A Guide for Legislators. Agosto de 2015. Social Science Research Network. Rochester – EUA, Agosto de 2015. Disponível em: <https://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=2468823>. Acesso em: 09 nov. 2017.

FREITAS, Kamila Katrine Nascimento de. A Pornografia de Vingança e a culpabilização das vítimas pela mídia. In: Congresso de Ciências da Comunicação na Região Nordeste, 17., Julho 2014, Natal. Anais... Natal: Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação, 2015. Disponível em: <http://www.portalintercom.org.br/anais/nordeste2015/resumos/R47-2316-1.pdf>. Acesso em: 09 nov. 2017

LINS, Beatriz Accioly. A Internet Não Gosta de Mulheres? Gênero, Sexualidade e Violência nos Debates sobre “Pornografia De Vingança”. In: V Reunião Equatorial de Antropologia (REA) / Reunião de Antropólogos do Norte e Nordeste (ABANNE), 5. / 14., 2015, Maceió. Anais...  Maceió: V REA/ XIV ABANNE, 2015. Disponível em: <http://eventos.livera.com.br/trabalho/98-1020264_20_06_2015_19-38-29_3450.PDF>. Acesso em: 09 nov. 2017.

GUIMARÃES, Bárbara Linhares; DRESCH, Márcia Leardini. Violação dos Direitos à Intimidade e à Privacidade como Formas de Violência de Gênero. Percurso. Curitiba, v1, n. 14, 2014. Disponível em: <http://revista.unicuritiba.edu.br/index.php/percurso/article/view/833/619 >. Acesso em: 09 nov. 2017

OLIVEIRA, Alyne Farias de; PAULINO, Leticia Andrade. A Vítima da Pornografia de Vingança no Âmbito Penal: Amparo Judicial Fronte a Ausência de Tipo Penal Incriminador. In: Encontro de pesquisas judiciárias da ESMAL (ENPEJUD), 1., Julho de 2016, Maceió. Anais... Maceió: Escola Superior da Magistratura do Estado de Alagoas (ESMAL), 2016. Disponível em: <http://enpejud.tjal.jus.br/index.php/exmpteste01/article/view/32/16>. Acesso em: 09 nov. 2017.

PINHEIRO, Patrícia Peck. Direito digital. São Paulo: Saraiva, 2013.

PORTAL BRASIL. Mulheres são principal alvo da pornografia de vingança. Brasília, 2016. Disponível em: <http://www.brasil.gov.br/cidadania-e-justica/2016/11/mulheres-sao-principal-alvo-da-pornografia-de-vinganca>. Acesso em: 24 nov. 2017.


Notas

[1] O termo pornografia de vingança é o mais comum e corresponde à tradução do termo original em inglês Revenge Porn (FREITAS, 2015). Para Franks (2015) o termo pornografia de vingança não é adequado, pois, nem sempre o agente é motivado por vingança, mas por desejo de lucro, notoriedade ou simples entretenimento. Ou seja, a motivação do agente é irrelevante. Para os fins do presente trabalho, as expressões pornografia não consensual e pornografia de vingança serão consideradas sinônimas. Alguns autores como Oliveira e Paulino (2016) consideram que a pornografia de vingança é uma espécie de pornografia não consensual. Outras expressões encontradas na literatura são: pornografia de revanche, vingança pornô e pornô de vingança.

[2] O jornal The New York Times retrata um caso ocorrido no início da década de 1980 (FRANKS, 2015).

[3] Termo sem equivalente em português que designa o ato de atacar e ofender uma mulher por ter descumprindo os preceitos de recato e moralidade esperados de uma mulher honesta (CAVALCANTE; LELIS, 2016)

[4] De fato, se a vítima consentir em expor sua intimidade, o fato será atípico. É o que acontece, por exemplo, com a pornografia tradicional.

Assuntos relacionados
Sobre o autor
Giordano Alan Barbosa Sereno

Pesquisador-Tecnologista em Informações e Avaliações Educacionais no Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP). Bacharel em Ciência da Computação no Centro Universitário de Brasília (UNICEUB). Especialista em Engenharia de Software pela Universidade Católica de Brasília (UCB). Mestre em Gestão do Conhecimento e Tecnologia da Informação pela Universidade Católica de Brasília (UCB). Acadêmico de Direito pela Universidade de Brasília (UnB)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SERENO, Giordano Alan Barbosa. Pornografia não consensual: o problema da falta de tipificação penal. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 5294, 29 dez. 2017. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/63138. Acesso em: 22 dez. 2024.

Leia seus artigos favoritos sem distrações, em qualquer lugar e como quiser

Assine o JusPlus e tenha recursos exclusivos

  • Baixe arquivos PDF: imprima ou leia depois
  • Navegue sem anúncios: concentre-se mais
  • Esteja na frente: descubra novas ferramentas
Economize 17%
Logo JusPlus
JusPlus
de R$
29,50
por

R$ 2,95

No primeiro mês

Cobrança mensal, cancele quando quiser
Assinar
Já é assinante? Faça login
Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!
Colabore
Publique seus artigos
Fique sempre informado! Seja o primeiro a receber nossas novidades exclusivas e recentes diretamente em sua caixa de entrada.
Publique seus artigos