4. O PROBLEMA DA FALTA DE TIPIFICAÇÃO
O crime eletrônico é, em princípio, um crime de meio. Isso quer dizer que ele pode ocorrer também no mundo real, sendo a internet apenas um facilitador. Mas há necessidade de tipificação penal de algumas modalidades que, em razão de suas peculiaridades, merecem um tipo penal próprio (PINHEIRO, 2013). Esse é justamente o caso da pornografia não consensual, onde a ausência de tipo penal específico dificulta a punição dos responsáveis no âmbito penal (OLIVEIRA; PAULINO, 2016).
Parte da doutrina entende que tratar a pornografia não consensual como crime contra a honra impede a proteção eficaz da vítima e a punição adequada do ofensor. Crimes contra a honra são infrações de menor potencial ofensivo e a pena cominada é branda e desproporcional à magnitude da lesão, visto as graves consequências do crime (FREITAS, 2015; GUIMARÃES; DRESCH, 2014). Também estão sujeitos às medidas despenalizadoras implementadas pela Lei nº 9.099/1995.
Outro ponto a considerar é que nesses crimes a persecução penal somente ocorre mediante queixa (ação penal privada), cabendo ao ofendido o ônus da acusação em juízo por meio de advogado constituído. Importante seria o processamento mediante ação penal pública condicionada à representação para desonerar a vítima do ônus da acusação.
Também vale mencionar que a pornografia não consensual ofende simultaneamente as honras objetiva e subjetiva (PEREIRA, 2017). Atualmente, não há tipo penal com essa característica e alternativa seria um concurso dos crimes de injúria e difamação. Se os crimes forem praticados em contextos fáticos autônomos, o concurso é possível (CUNHA, 2016). Todavia, esse não é o caso da pornografia não consensual, onde há ofensa simultânea às honras objetiva e subjetiva em um único contexto fático. Nesses casos, não há consenso sobre a possibilidade de concurso.
Algumas decisões reconhecem a continuidade delitiva, pois ofendem o mesmo bem jurídico. Há corrente defendendo a aplicação do princípio da consunção, de modo que o crime mais leve é absorvido pelo mais grave, não importando a espécie de honra ofendida. Cunha (2016) entende ser possível o concurso de delitos (material ou formal, conforme o caso) quando as condutas atingirem honras diferentes se o agente divulgar no mesmo escrito texto que ofendam as honras objetiva e subjetiva (CUNHA, 2016).
Diante do caráter peculiar da pornografia não consensual de ofensa simultânea à honra objetiva e subjetiva, bem como o descompasso entre a sanção penal leniente e as cruéis consequências para a vítima, faz-se necessário criar tipo penal específico com previsão de pena compatível com a gravidade da lesão, pois, não há subsunção perfeita do fato a nenhuma figura típica existente atualmente (PEREIRA, 2017).
Também é importante discutir a natureza do bem jurídico violado. Defender que a exposição pública da intimidade sexual constitui lesão à honra tem conotação moral, algo que se vincula aos tabus e moralismos que enxergam na sexualidade (especialmente a feminina) pecados e imoralidades (GUIMARÃES; DRESCH, 2014).
Por isso, defende-se que o bem jurídico violado pelo crime de pornografia não consensual é a dignidade sexual da vítima, e não a sua honra. Legislação de Israel (2014) foi a primeira a classificar a pornografia não consensual como agressão sexual (FRANKS, 2015). O crime é discutido associado ao tema da autonomia sexual, privacidade sexual e do controle do próprio corpo (CITRON; FRANKS, 2014).
Embora não haja contato físico como na maioria dos casos de estupro, Citron e Franks (2014) defendem que a pornografia não consensual é uma forma de agressão sexual. Há precedentes para a criminalização de formas de violência sexual sem contato físico no direito penal internacional. Os Tribunais Penais Internacionais para Ruanda (1994) e para a Ex-Iugoslávia (1993) estabeleceram a nudez forçada como forma de violência sexual que independe de contato físico com o agressor (GUIMARÃES; DRESCH, 2014).
O PLC nº18/2017 de autoria do Deputado João Arruda (PMDB/PR) propõe, além de outras alterações, a tipificação da conduta de exposição pública da intimidade sexual (pornografia não consensual). A proposta era alterar o Código Penal para incluir um novo tipo penal no rol dos crimes contra a honra, considerando-o espécie qualificada de injúria. O projeto também propunha alterar a Lei Maria da Penha, deixando claro que a violação da intimidade da mulher, por meio da divulgação de dados pessoais, vídeos, áudios, montagens e fotocomposições da mulher, obtidos no âmbito das relações domésticas, constitui forma de violência doméstica e familiar contra a mulher.
Após aprovação pelo plenário da Câmara dos Deputados, a proposta seguiu para o Senado Federal onde se encontra em análise, sendo distribuído para a Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa (CDH), sob relatoria da Senadora Gleisi Hoffmann (PT/SC).
Durante a discussão do projeto na CDH, foi apresentado e aprovado texto substitutivo que mantinha a tipificação do crime de exposição pública da intimidade sexual, mas, reposicionando o tipo penal na parte que trata dos crimes contra a dignidade sexual. Uma vez aprovado pela CDH, o texto substitutivo foi aprovado pela Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ) e aguarda votação pelo plenário do Senado Federal. Dessa forma, percebe-se que o legislador pátrio compartilha a opinião de que o bem ofendido pela pornografia não consensual é a dignidade sexual e não a honra.
Conforme mencionado anteriormente, doutrina e jurisprudência já reconheciam a pornografia não consensual como forma de violência doméstica e familiar contra a mulher, demandando a aplicação da Lei Maria da Penha, em situações em que a vítima for mulher e existir vínculo afetivo entre agressor e vítima. Entretanto, a inciativa de alterar o texto da Lei Maria da Penha para deixar esse entendimento explícito é muito bem-vinda.
A aplicação da Lei Maria da Penha nem sempre é admitida no âmbito da Justiça por razões diversas, como a precariedade dos equipamentos de atendimento à mulher, despreparo dos servidores públicos envolvidos, imaginário social relacionado ao tema, entre outros. Dessa forma, reconhece-se a importância de tipificar de maneira explícita a pornografia não consensual, de maneira que não reste dúvida de que suas vítimas contam com a proteção e o amparo previsto na Lei Maria da Penha.
5. CONCLUSÃO
A pornografia não consensual corresponde à divulgação ilícita de imagens e vídeos expondo nudez ou atividade sexual da vítima sem o seu consentimento. Trata-se de um crime que gera graves consequências paras as vítimas, indo desde a execração pública até o suicídio. Há casos em que a vítima consente na produção do material íntimo. Em outras situações o conteúdo é gravado ao seu alvedrio. Quando a vítima se deixa gravar, o agressor costuma ser seu ex-parceiro que expõe sua intimidade como vingança após o término de relacionamento. Por isso o termo pornografia de vingança é tão comum na literatura especializada.
As mulheres correspondem a 90% das vítimas (CCRI, 2013) e são também as que sofrem as piores consequências. Em especial quando consentem em registrar o momento de intimidade. Como uma das consequências do crime, a vítima precisa lidar com o julgamento da sociedade. Mas, da mesma forma que o comportamento e a forma de vestir não justifica o estupro, o exercício da liberdade sexual, consentindo em se deixar gravar em um momento de intimidade, de forma totalmente lícita, não significa autorização implícita para a exposição ampla e irrestrita desses momentos.
A culpabilização da vítima é reflexo de uma sociedade hipócrita e machista, que ainda vê com ressalvas o livre exercício da sexualidade feminina. Quem merece a punição não é a vítima, mas o autor que abusou de uma situação de confiança, expondo sua intimidade sem o seu consentimento. Não basta uma lei penal mais rigorosa para erradicar esse comportamento. A mudança de cultura de uma sociedade exige medidas políticas e sociais mais amplas do que a promulgação de textos legais (GUIMARÃES; DRESCH, 2014).
A inexistência de um tipo penal específico para a pornografia não consensual dificulta a punição do agressor, sendo que a maioria dos autores responde por crimes contra a honra. Vários autores relatam que a sanção penal é muito branda, face a gravidade das consequências advindas para a vítima. Todavia, essa não é a questão mais relevante. Mas o fato mais grave está em reconhecer que, em situações assim, o bem jurídico violado foi a honra da vítima.
Tratar a pornografia não consensual como crime contra honra evidencia uma sociedade em que ainda persistem tabus e moralismos rodeando o tema da sexualidade humana, especialmente a feminina. Parece bastante claro que o bem jurídico lesionado com a exposição não consentida da intimidade sexual não é a honra, mas a dignidade sexual. Felizmente, o Senado Federal apresentou um texto substitutivo ao PLC nº 18/2017, propondo a tipificação penal da pornografia não consensual como crime contra a dignidade sexual.
Apesar de a pena cominada pelo novo tipo penal proposto ser muito próxima daquela conferida pelos crimes contra honra, o efeito simbólico de reconhecer que o bem jurídico violado pela conduta do autor foi a dignidade sexual da vítima e não a sua honra é muito importante.
6. REFERÊNCIAS
BRASIL. Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de Dezembro de 1940. Código Penal. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del2848compilado.htm>. Acesso em: 24 nov. 2017.
BRASIL. Lei nº 11.340, de 7 de Agosto de 2006. Cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos do §8º do art. 226 da Constituição Federal, da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres e da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher; dispõe sobre a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher; altera o Código de Processo Penal, o Código Penal e a Lei de Execução Penal; e dá outras providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11340.htm>. Acesso em: 24 nov. 2017.
BRASIL. Lei n° 12.737, de 30 de Novembro de 2012. Dispõe sobre a tipificação criminal de delitos informáticos; altera o Decreto-Lei no 2.848, de 7 de dezembro de 1940 - Código Penal; e dá outras providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2012/lei/l12737.htm>. Acesso em: 24 nov. 2017.
CAVALCANTE, Vivianne Albuquerque Pereira; LELIS, Acácia Gardênia Santos. Violência de gênero contemporâneo: uma nova modalidade através da pornografia da vingança. Interfaces Científicas – Direito, Aracaju, v. 4, n.3, p. 59-68, jun. 2016. Disponível em: <http://dx.doi.org/10.17564/2316-381X.2016v4n3p59-68>. Acesso em: 09 nov. 2017.
CITRON, Danielle Keats; FRANKS, Mary Anne. Criminalizing Revenge Porn. Wake Forest Law Review. Salem – EUA, n. 49, p. 345-391, verão de 2014. Disponível em: <https://repository.law.miami.edu/cgi/viewcontent.cgi?article=1059&context=fac_articles>. Acesso em 09 nov. 2017.
CUNHA, Rogério Sanches. Manual de Direito Penal Parte Especial. Salvador: Editora Juspodvium, 2016
CYBER CIVIL RIGHTS INITIATIVE (CCRI). Statistics on Revenge Porn. EUA, 2013. Disponível em: <https://www.cybercivilrights.org/wp-content/uploads/2014/12/RPStatistics.pdf>. Acesso em: 20 nov. 2017
FRANKS, Mary Anne. Drafting An Effective “Revenge Porn” Law: A Guide for Legislators. Agosto de 2015. Social Science Research Network. Rochester – EUA, Agosto de 2015. Disponível em: <https://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=2468823>. Acesso em: 09 nov. 2017.
FREITAS, Kamila Katrine Nascimento de. A Pornografia de Vingança e a culpabilização das vítimas pela mídia. In: Congresso de Ciências da Comunicação na Região Nordeste, 17., Julho 2014, Natal. Anais... Natal: Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação, 2015. Disponível em: <http://www.portalintercom.org.br/anais/nordeste2015/resumos/R47-2316-1.pdf>. Acesso em: 09 nov. 2017
LINS, Beatriz Accioly. A Internet Não Gosta de Mulheres? Gênero, Sexualidade e Violência nos Debates sobre “Pornografia De Vingança”. In: V Reunião Equatorial de Antropologia (REA) / Reunião de Antropólogos do Norte e Nordeste (ABANNE), 5. / 14., 2015, Maceió. Anais... Maceió: V REA/ XIV ABANNE, 2015. Disponível em: <http://eventos.livera.com.br/trabalho/98-1020264_20_06_2015_19-38-29_3450.PDF>. Acesso em: 09 nov. 2017.
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OLIVEIRA, Alyne Farias de; PAULINO, Leticia Andrade. A Vítima da Pornografia de Vingança no Âmbito Penal: Amparo Judicial Fronte a Ausência de Tipo Penal Incriminador. In: Encontro de pesquisas judiciárias da ESMAL (ENPEJUD), 1., Julho de 2016, Maceió. Anais... Maceió: Escola Superior da Magistratura do Estado de Alagoas (ESMAL), 2016. Disponível em: <http://enpejud.tjal.jus.br/index.php/exmpteste01/article/view/32/16>. Acesso em: 09 nov. 2017.
PINHEIRO, Patrícia Peck. Direito digital. São Paulo: Saraiva, 2013.
PORTAL BRASIL. Mulheres são principal alvo da pornografia de vingança. Brasília, 2016. Disponível em: <http://www.brasil.gov.br/cidadania-e-justica/2016/11/mulheres-sao-principal-alvo-da-pornografia-de-vinganca>. Acesso em: 24 nov. 2017.
Notas
[1] O termo pornografia de vingança é o mais comum e corresponde à tradução do termo original em inglês Revenge Porn (FREITAS, 2015). Para Franks (2015) o termo pornografia de vingança não é adequado, pois, nem sempre o agente é motivado por vingança, mas por desejo de lucro, notoriedade ou simples entretenimento. Ou seja, a motivação do agente é irrelevante. Para os fins do presente trabalho, as expressões pornografia não consensual e pornografia de vingança serão consideradas sinônimas. Alguns autores como Oliveira e Paulino (2016) consideram que a pornografia de vingança é uma espécie de pornografia não consensual. Outras expressões encontradas na literatura são: pornografia de revanche, vingança pornô e pornô de vingança.
[2] O jornal The New York Times retrata um caso ocorrido no início da década de 1980 (FRANKS, 2015).
[3] Termo sem equivalente em português que designa o ato de atacar e ofender uma mulher por ter descumprindo os preceitos de recato e moralidade esperados de uma mulher honesta (CAVALCANTE; LELIS, 2016)
[4] De fato, se a vítima consentir em expor sua intimidade, o fato será atípico. É o que acontece, por exemplo, com a pornografia tradicional.