Capa da publicação Presunção de inocência, direitos fundamentais e indevida mitigação de salvaguardas constitucionais
Artigo Destaque dos editores

Notas sobre presunção de inocência, direitos fundamentais e a indevida mitigação de salvaguardas constitucionais

Exibindo página 1 de 2
Leia nesta página:

É papel do STF a salvaguarda de direitos fundamentais, que são cláusulas pétreas, podem ser relativizados, mas não abolidos ou menosprezados. A mutação constitucional tem limites. Direitos fundamentais são universalizáveis e representam o direito ao não retrocesso social.

“ (...) E o convescote epistêmico varou a noite. O próximo tema da pauta seria o HC 126.292, sobre a presunção da inocência e a frase do ministro Barroso, de que o STF, com a decisão permitindo execução provisória, “libertou os advogados de terem que ingressar com recursos procrastinatórios”. Mas a ata dessa parte da reunião ainda não está concluída. É que, como foi escrita à mão, parte do papel molhou e ficou ilegível, face a um copo de cerveja derramado por Kelsen, que pegara da biblioteca um livro em que ele era classificado como um positivista exegeta e que pugnava pela aplicação da letra fria da lei. Foi demais para o velho. Levamos tempo para acalmá-lo.” (STRECK, Lênio Luiz. Um encontro de titãs: Kelsen, Hart & Cia analisam acórdão do STJ. Disponível em www.conjur.com.br. Acesso em 07 de julho de 2016.)

1. Noções basilares sobre direitos fundamentais

A presunção de inocência, ou não culpabilidade (frivolidades terminológicas à parte), é prevista na Constituição Federal dentre os direitos fundamentais do art. quinto:

LVII - ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória.

Sendo direito fundamental, tal diretiva é vetor da interpretação e aplicação do Direito, servindo como baliza para filtragem de todo o ordenamento jurídico. Leis e práticas judiciais não podem ser realizadas sem respeito espartano aos preceitos constitucionais. Este é o óbvio ululante. De tão óbvio, não deveria gerar polêmica. Contudo, vivemos tempos estranhos e uma mistura de conservadorismo, obtuso ativismo judicial (ora até positivamente progressista, vide as manifestações do Supremo Tribunal Federal razoável em temas como aborto, entidades familiares homoafetivas, exclusão do tráfico de entorpecentes privilegiado como crime hediondo, marcha da maconha, vedação da vaquejada, sucessão da companheira em situação não inferior à esposa, uso de células tronco para fins terapêuticos,etc..) e movimentos midiáticos pautados no senso comum e nos preconceitos da opinião pública tem relativizado, de forma caótica, direitos fundamentais. Sim, os direitos fundamentais podem ser relativizados. Não, não da forma como vem sendo...

 O caso concreto pode demandar ponderações, sobretudo quando há conflito entre direitos fundamentais, o hard case. Entretanto, e a teoria do limite dos limites? E a idéia de não retrocesso social, de vedação da evolução reacionária?

Para debater as múltiplas dimensões das últimas decisões do Supremo Tribunal Federal em que presunção de inocência é a pauta, torna-se preciso compreender, de início, direitos fundamentais, até para percebermos que, lamentavelmente, o STF, que deveria, justamente, enquanto guardião da Constituição, tutelar minorias e proteger direitos fundamentais, vêm, com exegese nada lógica e fruto de inegável arbitrariedade, deixando a descoberto ditames da própria Constituição.

Lembremos que juízes não são eleitos. O STF, em específico, com 11 membros, é composto tão somente por nomes indicados pelo Presidente da República, aprovados após sabatina do Senado Federal. Não cabe ao STF funcionar como legislador positivo. Isto é simples: quem edita leis, via de regra, é quem é eleito. Idiossincrasias da democracia pátria nos tempos atuais à parte, é o que temos...

A mutação constitucional tem limites. Não é um horizonte sem fim. Juízes não são artistas plásticos. O que é uma boa estratégia para atualizar o texto constitucional, com alterações informais em seu sentido pode, se manipulada de maneira não republicana, gerar abusos e injustiças. Não cabe ao interprete do texto constitucional restringir direitos fundamentais inadvertidamente. A Hermenêutica em direitos fundamentais deve ser emancipatória, expansiva, ampliativa de direitos. No que concerne a restrição de direitos, a função das Cortes Constitucionais, até mesmo em defesa da leitura de garantismo penal que os direitos fundamentais merecem ter, é de  sopesar vedações, evitar mutilamento de direitos. Onde for necessária a exegese literal, que nenhum excesso de modismos jurídicos inconvenientes esteja a vedar o melhor caminho da prática constitucional.

Ainda que de forma perfunctória, os direitos fundamentais demandam um estudo especial, até para que as vicissitudes nos entendimentos recentes do STF sejam compreendidas.

Os direitos fundamentais não estão apenas no art. quinto da CF/88. Englobam também:

•          Direitos sociais

•          Direitos à nacionalidade;

•          Direitos políticos;

•          Direitos advindos de tratados e acordos internacionais;

•          Princípios implícitos;

•          Outros direitos esparsos na Constituição.

Os direitos fundamentais, em uma análise histórica, podem ser divididos em cinco gerações:

  • Primeira geração- direitos políticos e civis, vinculados à uma acepção liberal de Estado. Decorrem disto, por exemplo, a liberdade e o direito ao voto;
  • Segunda geração- direitos sociais, vinculados à uma acepção de Estado de Bem Estar Social. Decorrem disto, por exemplo, a igualdade e o direito ao trabalho;
  • Terceira geração- direitos ligados à solidariedade, de conteúdo difuso, transindividuais. Decorrem disto, por exemplo, os direitos ao meio ambiente saudável e os direitos do consumidor;
  • Quarta geração- Direitos vinculados à Bioética, na tutela do patrimônio genético. Um exemplo é a possibilidade de clonagem humana para fins terapêuticos;
  • Quinta geração- Direito à paz, à convivência pacífica, à autodeterminação dos povos, aos direitos humanos, à tolerância, à não violência.

Feitas tais ponderações, aquilata-se que a presunção de inocência, isto é, a não consideração de culpado enquanto não houver trânsito em julgado, diz respeito à primeira dimensão dos direitos fundamentais. Garantir a liberdade e utilizar mecanismos de sanção como ultima ratio são premissas ligadas à fixação de limites contra a barbárie e excessos cometidos pelo Estado. O Direito Penal é do fato, não do autor. As pessoas não podem ser etiquetadas, estigmatizadas. Sob a pecha de um moralismo de ocasião (lembremos: o sufixo “ismo” é uma patologia, um excesso, uma doença), não podemos ofender a íntegra do texto constitucional. Não estamos com o Poder Constituinte Originário nas mãos. Não reescrevemos o texto constitucional a nosso bel prazer. A Constituição Federal de 1988 é garantista, democrática, faz apologia à liberdade, é contra o arbítrio estatal desmedido, é conduzida pela razoabilidade, é permeada de proporcionalidade. O termo “transitado em julgado” não está inserido na Constituição sem uma intenção específica. Não nos cabe, cumpre repetir, mutilar o texto constitucional.

Direitos fundamentais se diferenciam de garantias fundamentais. Garantias são assecuratórias, direitos são declaratórios. Direitos se vinculam a bens, garantias se vinculam a instrumentos.

São características dos direitos fundamentais:

•          Historicidade;

•          Universalidade;

•          Limitabilidade;

•          Concorrência;

•          Irrenunciabilidade;

•          Inalienabilidade;

•          Imprescritibilidade.

Os direitos fundamentais têm abrangência extensa. Esta realidade é uma decorrência da universalidade, ou seja, tais direitos aplicam-se a brasileiros, natos ou naturalizados, pessoas jurídicas, estrangeiros aqui residentes ou de passagem, até mesmo apátridas.

Os direitos fundamentais são, em regra, normas de aplicabilidade imediata.

A eficácia horizontal dos direitos fundamentais, também denominada de privada ou externa, diz que tais direitos se aplicam nas relações entre particulares e particulares. Segundo a teoria da eficácia indireta, seriam aplicados de maneira reflexa, numa dimensão proibitiva e voltada para os legisladores, que não poderiam editar normas que violem os direitos fundamentais. Já a teoria da eficácia direta ou imediata prevê que os direitos fundamentais podem ser aplicados em relações privadas em a necessidade de intermediação legislativa para sua aplicação. A última teoria é a mais aplicável.

A polêmica da aplicabilidade direta de direitos fundamentais em relações privadas exige uma ponderação de interesses. De um lado destaca-se parâmetros de autonomia da vontade e livre iniciativa, todos consagrados na CF/88 (arts. 1, IV e 170, caput). Por outro giro, a Constituição também celebra a dignidade da pessoa humana e a máxima efetividade dos direitos fundamentais (art. 1, III e 5, parágrafo primeiro). Nesta colisão de princípios, cabe ao magistrado se valer, na ponderação de interesses, das máximas de razoabilidade e concordância prática ou harmonização de princípios.

Os direitos fundamentais são cláusulas pétreas.

Enquanto cláusulas pétreas, não podem ser abolidos de nosso ordenamento.

Não temos uma nova Constituição. Temos a Constituição de 1988, rígida, que só pode ser alterada formalmente por um processo solene de mudança constitucional, não podendo ser modificada sem quórum qualificado (três quintos dos votos), em dois turnos, sem atingir cláusulas pétreas, nem ofender direitos consolidados dos cidadãos. A essência constitucional não pode ser atingida, sob pena de violação ultrajante à força normativa da Constituição. Ora, a Constituição precisa ser mais forte justamente em momentos de turbulência constitucional, em instantes de crise institucional, sob pena de perder normatividade e tornar-se uma Carta nominalista, repleta de boas intenções, mas sem correlação com o processo político e as forças reais de Poder.

Voltamos a dizer, não temos o Poder Constituinte Originário nas mãos.

As cláusulas pétreas até podem ser modificadas, mas em aspectos pontuais, desde que isto seja para aclarar a exegese ou até ampliar direitos. Cláusulas pétreas vedam restrições exageradas a direitos fundamentais, sob pena de ofensa a teoria dos limites dos limites (nada é absoluto em matéria constitucional, mas nem tudo pode ser relativizado; a essência, um núcleo duro de direitos garante a permanência, a solidez, a integridade e a segurança jurídica do texto constitucional). O atalhamento constitucional, isto é, a jurisprudência que modifica informalmente o texto constitucional e, com indevido efeito erga omnes e abusiva abstrativização, modificam a prática do texto constitucional e restringem lídimos direitos consagrados pelo Poder Constituinte Originário, constituem verdadeiras aberrações.


2.Uma indevida contextualização- uma roupa que não nos cabe- alemães nos ensinam futebol, e nada mais...

As últimas deliberações do STF sobre mitigação da presunção de inocência e possibilidade, sem maiores critérios, de prisão de condenado em segunda instância, mesmo sem o trânsito em julgado, fazem, pontualmente, uma menção inadequada às Constituições de outros países, tidos como ordenamentos constitucionais progressistas e justos, mas bem diferentes do nosso contexto.

O transplante indevido da prática constitucional de um país para outro gera o Frankenstein jurídico, a utilização de roupagem jurídica inadequada para nossas práticas jurídicas. O Brasil é um país de tamanho continental, que conjuga Pré Modernidade, Modernidade e Pós Modernidade. Tem favelas, tem shoppings, tem questionamentos constantes ao status quo dominante. É um país de singularidades, que precisa de um texto constitucional analítico, repleto de detalhes, minucioso. Voltamos a dizer, aqui a Constituição não tem termos jurídicos inadequados. Se acrescemos ao texto o termo “trânsito em julgado”, há uma intencionalidade nisto. Não foi uma inserção ao acaso.

O Poder Constituinte Originário é de fato. É uma força política. É um momento de reconstrução do Direito, de fundação de um novo Estado. Não nos cabe alterar, especialmente em cláusulas pétreas, o texto constitucional, sem leviandades...

Uma indevida comparação utilizada para “justificar” a relativização dantesca da presunção de inocência foi utilizar a leitura do tema na Alemanha.

Os alemães não construíram uma realidade constitucional idêntica à nossa. Não somos iguais quando a igualdade sufoca, cria purismos imprudentes, homogeneizações impertinentes, perda de identidade. E não somos diferentes quando a diferença discrimina, nos diminui.

Fique sempre informado com o Jus! Receba gratuitamente as atualizações jurídicas em sua caixa de entrada. Inscreva-se agora e não perca as novidades diárias essenciais!
Os boletins são gratuitos. Não enviamos spam. Privacidade Publique seus artigos

Assim sendo, a Constituição alemã e a prática de sua Corte Constitucional, por mais bem construídas que sejam, com sofisticações notáveis, não constituem o nosso caminho. Precisamos criar o nosso constitucionalismo, com nossas características, com nossa roupagem. Não iremos prescindir das contribuições do Direito de outros ordenamentos, inclusive dos alemães. O radicalismo nacionalista não é a saída. Contudo, precisamos respeitar nossa alteridade.

Pior ainda é que a transcrição da realidade constitucional alemã a justificar a prisão em segunda instância e a relativização do trânsito em julgado e da presunção de inocência foi feita sem estudo minucioso. Tratou-se de uma transposição despida de técnica, de razoabilidade e, com efeito, foi dito algo que não é verdade. Definitivamente, a realidade alemã não é o melhor espelho para relativização forte da presunção de inocência.

Nossas palavras são escassas para explicar isto. Para findar esta apresentação, temos o seguinte texto, extraído do site CONJUR (CANARIO, 2016):

Citada como exemplo, Alemanha espera trânsito em julgado para prender

Por Pedro Canário

Quem defende que a prisão possa ser executada já depois da decisão de segundo grau, mesmo ainda havendo recursos pendentes de julgamento, costuma citar os sistemas dos Estados Unidos e da França como mais eficientes. Lá, dizem, as prisões são executadas depois da primeira confirmação. O sistema da Alemanha, no entanto, pode ser mais "comparável" ao nacional. Citado como bom exemplo, o modelo alemão também espera o trânsito em julgado da condenação para prender.

A explicação é do advogado Luís Henrique Machado, criminalista e sócio do escritório Machado Ramos e Von Glehn Advogados. Ele é mestre e doutorando em Processo Penal pela Universidade de Humboldt, em Berlim, e conhece bem o sistema de execução do país.

O advogado explica que, embora o sistema alemão obrigue o trânsito em julgado para executar a pena, um processo é considerado terminado depois da decisão do Bundesgerichtshof (BGH), equivalente ao Superior Tribunal de Justiça brasileiro. Portanto, a Alemanha segue o mesmo padrão brasileiro: depois da decisão do juiz de primeiro grau, um recurso é analisado por um tribunal local e, por último, vai o recurso de revisão, chamado de Revision, ao BGH.

“É um recurso que possui natureza processual e tem efeito suspensivo, muito semelhante ao nosso recurso especial”, comenta Machado. Ele ressalva que os recursos cabíveis ao STJ não têm efeito suspensivo automático, como acontece no sistema alemão. “Na Alemanha, é incabível a execução das sentenças das instâncias ordinárias.”

A diferença está na participação da corte constitucional alemã. Lá, conta Machado, não existe recurso ao Tribunal Federal Constitucional. O que existe é a Reclamação Constitucional (Verfassungsbeschwerde) e, especialmente em matéria penal, a Revisão Criminal (Wiederaufnahme des Verfahrens).

Ambas só podem ser ajuizadas depois do trânsito em julgado das decisões, e não têm efeito suspensivo. As partes podem pedir que elas interrompam o trânsito em julgado, mas é raro que o Judiciário concorde, conta o criminalista. (...)”

Assuntos relacionados
Sobre o autor
João Fernando Vieira da Silva

advogado, professor de Teoria Geral do Processo, Processo Civil, Direito Civil e Prática Jurídica das Faculdades Doctum - Campus Leopoldina, especialista em Direito Civil pela UNIPAC - Ubá (MG), mestrando em Teoria Geral do Estado e Direito Constitucional pela PUC/RJ, pesquisador de grupo sobre Acesso à Justiça da PUC/RJ e do Viva Rio

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVA, João Fernando Vieira. Notas sobre presunção de inocência, direitos fundamentais e a indevida mitigação de salvaguardas constitucionais. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 23, n. 5300, 4 jan. 2018. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/63187. Acesso em: 19 mar. 2024.

Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!
Publique seus artigos