2 A FORMAÇÃO DO PREÇO PELO FORNECEDOR
Conforme já advertimos, não será objeto deste tópico analisar as teorias existentes sobre a formação do preço e suas oscilações, posto que matéria por demais extensa e complexa, merecedora de um estudo exclusivo para tanto, queremos, entretanto, entender, em linhas gerais, como se forma o preço final para o consumidor e como os custos do fornecedor influenciam nesta formação.
De início, é necessário pontuar, como informam BALDÃO e ROCHA (2012), que a formação de preços tem vasta literatura voltada para a indústria, carecendo de uma maior bibliografia para o segmento varejista[5].
Ainda assim, dentre a maior parte dos que se debruçam sobre o tema, existe uma concordância de que, na formação do preço do varejo, dois métodos são os principais: o financeiro ou de custos (que se baseia no cálculo do preço pelos custos do fornecedor) e o mercadológico (que se baseia no reflexo que o preço causa nos clientes, seja pelo valor percebido pelos clientes ou pela concorrência) (ABREU et all, 2006).
Com relação ao método financeiro, este se caracteriza pela aplicação, sobre o preço de custo de uma dada mercadoria, de um marcador (mark-up), que determina o preço de venda. Esta taxa de marcação já considera, de uma forma proporcional[6] os custos sobre a venda (impostos), bem como custos fixos (aluguel, funcionários) e a margem de lucro (SPERLING, 2008).
Já o método mercadológico tem por base a fixação do preço a partir da análise de qual o valor que o cliente atribui àquela mercadoria, bem como comparando o quanto praticado pela concorrência (ABREU et all, 2006).
Ocorre que, utilizados com exclusividade, cada método tem uma fragilidade por excluir o outro, por isso, WERNKE (2005, p.47) pondera a necessidade de mesclar os dois métodos, podendo assim o comerciante saber, pelo mark-up, qual o preço mínimo que pode vender sem prejuízo e pelo mercadológico qual o preço que torna o seu produto competitivo.
Vemos assim, que a base da precificação pelo fornecedor são os seus custos. Exemplificando quais custos entram na composição do mark-up, WERNKE (2005, p. 53), inclui a “taxa cobrada pela administradora do cartão de crédito nas vendas com essa ferramenta”.
Sendo assim, ainda que nem todas as vendas sejam realizadas com o cartão de crédito, o fornecedor, ao elaborar a sua marcação, deverá diluir no preço de todos os clientes, os custos referentes às taxas que pagar nas vendas em que efetivamente forem utilizados cartões de crédito.
Frise-se que o mark-up é uma metodologia de precificação típica do varejo, ou seja, que considera todos os consumidores como iguais, estipulando um preço único para todos eles.
Por isso, por mais que a ideia de o fornecedor repassar os custos da sua atividade para o consumidor seja rechaçada por alguns, na prática, isso sempre acontece, pois, a precificação imprescinde de agregar as despesas (como um todo) dos custos do fornecedor ao preço.
Entretanto, adverte Bruno Miragem que:
Isso não significa que o fornecedor deva ser mero repassador de custos. A rigor, seu propósito racional deverá ser sempre o de oferecer produtos e serviços de qualidade com preços competitivos, vale dizer, que tenha aptidão para atrair o consumidor (MIRAGEM, 2016).
Ainda pondera o referido autor que, nosso sistema econômico é, constitucionalmente, fundado na livre iniciativa e defesa da concorrência, de modo que os fornecedores têm liberdade para gerenciarem seus negócios, ressalvadas as exceções previstas em lei.
Por outro lado, como veremos adiante, toda vez que a legislação impõe mais um custo ao fornecedor, este imediatamente os repassa aos consumidores, sendo que, no caso da vedação ao sobrepreço nas vendas com cartão, esse repasse será feito a todos os consumidores, em benefício daqueles que usam cartão.
Pelo exposto, resta claro que ao formular os seus preços, o fornecedor já inclui neles todos os custos da atividade, inclusive os provenientes de taxas de administradoras de cartão de crédito, não havendo, para o consumidor, como afastar esse repasse, senão através de concessão de descontos quando do pagamento sem cartão de crédito.
2.1 O CARTÃO DE CRÉDITO COMO MEIO DE PAGAMENTO
O cartão de crédito é hoje um dos meios de pagamento mais utilizados no mercado de consumo. Segundo relatório do Banco Central, foram 3,3 bilhões de transações em 2010, para 175,4 milhões de cartões ativos (BANCO CENTRAL DO BRASIL, 2011, p. 7). Sua segurança e praticidade fizeram-no desbancar o cheque, que hoje é de rara aceitação no mercado varejista.
É difícil formular um conceito exato do que seja o cartão de crédito, mas a noção de defini-lo como um conjunto de contratos ou sistema operacional parece-nos mais adequada. Desta forma, tem-se entendido o cartão de crédito como um sistema operacional que pretende captar uma clientela, pela oferta de facilitação, segurança e desregulamentação do crédito nessa clientela (AVELAR, 2014).
Com entendimento similar, Gerson Branco (1998, p. 78) sustenta que tentar entender o conjunto das relações de forma separada torna o entendimento impreciso, em razão da interdependência que existe entre os contratos, de forma que a melhor noção é a de sistema.
Dessa forma, fica mais fácil perceber que, em verdade, o contrato de cartão de crédito encerra de três a quatro relações jurídicas, quais sejam: a relação do fornecedor que se afilia; a relação do consumidor que porta o cartão; a relação da administradora de cartão com a instituição financeira e, a relação que fecha o ciclo, o contrato entre fornecedor e consumidor.
Na relação com o fornecedor, a administradora se compromete a honrar com as compras efetuadas pelos consumidores portadores dos cartões, desde que verificada a regularidade das operações. É de se ressaltar que a compra será paga no prazo de 30 dias ao fornecedor (salvo se for parcelada, o que implica em recebimento parcelado), independentemente do pagamento do consumidor.
Desta forma, o risco do fornecedor afiliado passa a ser apenas o de fraude no uso do cartão, sendo que mesmo esse risco tem sido mitigado pelas administradoras com o uso de novas soluções de segurança (senhas, cartões com chip).
Por esta afiliação, os fornecedores pagam um valor fixo pelo aluguel do equipamento destinado à realização das transações e mais um percentual sobre cada compra, este de 2,84% em média (BANCO CENTRAL DO BRASIL, 2011, p. 7).
Na relação com o consumidor, a administradora concede àquele um limite crédito rotativo pré-aprovado, com o qual se pode efetuar compras nos fornecedores afiliados, sendo determinado um dia específico para o pagamento das compras (data de vencimento da fatura). Com isso, o consumidor tem, além da praticidade e segurança de não portar dinheiro, a possibilidade de organizar seus gastos, pagando-os sempre na data que lhe for mais interessante.
É importante ressaltar que o consumidor ainda tem a possibilidade de não efetuar o pagamento total da fatura na data aprazada, desde que efetue, ao menos, o pagamento de um determinado percentual (valor mínimo), sendo que o restante do valor devido é financiado por meio de um crédito também rotativo, para pagamento na próxima fatura.
É nesta última transação que pode se inserir a instituição financeira[7], concedendo este crédito rotativo, o qual, usualmente, tem as maiores taxas de juros do sistema financeiro.
Pelo direito ao uso do cartão, o consumidor paga um valor de anuidade, a qual normalmente é cobrada mensalmente, e os juros se utilizar da prerrogativa de pagamento inferior ao devido[8].
A consolidação desse emaranhado de relações em um sistema relativamente simples e que permite a utilização do crédito pelos portadores de cartão sem dificuldade e com segurança para os fornecedores, parece-nos ser o motivo do sucesso desta ferramenta, dado que no nosso sistema econômico, a facilitação da circulação da riqueza é sempre bem vista, posto que aumenta a eficiência do sistema como um todo.
A relação contratual que se estabelece entre a administradora e os estabelecimentos fornecedores é tipicamente empresarial/comercial, prevalecendo, assim, a autonomia da vontade contratual.
Neste particular é importante ressaltar que as administradoras incluem em seu contrato de afiliação que os estabelecimentos fornecedores deverão oferecer seus produtos e serviços pelo mesmo preço aos clientes que pagarem com cartão de crédito e em espécie. Neste sentido é, por exemplo, a Cláusula 8ª do Contrato de Credenciamento da Cielo, que prescreve que “o cliente se obriga a praticar as mesmas condições em todas as transações que realizar, independentemente do meio de pagamento” (CIELO, 2013).
Não obstante essa cláusula ser, a princípio, válida na relação contratual entre administradoras e estabelecimentos, poder-se-á questionar a eficácia da mesma com relação aos consumidores, dada a existência de um sistema contratual (ou cadeia de fornecimento).
Neste sentido, seria possível obrigar o fornecedor a não diferenciar o preço, pois seu contrato de afiliação assim estabelece e pode o consumidor pedir a execução específica, ainda que não tenha sido parte direta neste contrato, mas é por ele diretamente afetado quando da relação consumo com o fornecedor e com a administradora de cartão de crédito.
Com essa linha de raciocínio, pondera Daniel de Avelar (2014) que o entendimento em contrário fere o quanto prescrito no Código de Defesa do Consumidor: “Esse tipo de disposição rompe com as ligações internas do sistema contratual do cartão de crédito, isolando as relações particulares como se as mesmas fossem autônomas e não interligadas”.
Entretanto, como veremos adiante, não obstante seja possível aplicar essa cláusula de vedação ao sobrepreço, ela não deverá ser imposta, pois violaria direitos básicos do consumidor, especialmente da igualdade, além da função social do contrato.
Ainda no tocante às relações entre administradora e fornecedor afiliado, é importante destacar que existe previsão contratual, na maioria dos contratos, de que em caso de fraude no uso do cartão, as compras registradas pelo fornecedor não serão pagas pela administradora. Esse ponto mitiga um pouco a segurança desse meio de pagamento, mas tem sido remediada com todas as medidas de segurança adotadas (uso de senha, inclusão de chip no cartão, dentre outras) (CIELO, 2013).
Já nas relações entre consumidor e administradora, bem como com o fornecedor afiliado, é pacífica a incidência do Código de Defesa do Consumidor.
No que tange à realidade do mercado de cartões de crédito, vemos que este se caracteriza por uma concentração entre as três maiores instituições financeiras do país, o que tem determinado também uma falta de competitividade no setor, bem como a não redução dos custos. Veja-se que Bradesco, Banco do Brasil e Itaú detêm, juntos, o controle da Cielo e da Redecard, que respondem por mais de 80% do mercado, segundo relatório do Banco Central sobre o tema (2011, p. 8).
Além disso, da forma como o sistema funciona, parece-nos que não há como entender a venda com cartão de crédito como à vista, dado que a conclusão do negócio fica condicionada à verificação de regularidade pela administradora, a qual ocorre à posteriori, bem como visto que o efetivo recebimento do valor pelo fornecedor só ocorre 30 (trinta) dias após a compra.
Neste sentido é o entendimento de Fran Martins (1976, p. 168), segundo o qual a venda à vista se caracteriza pelo recebimento da contraprestação no momento da tradição do produto, o que não ocorre no caso do cartão de crédito, no qual o efetivo recebimento pelo fornecedor só ocorre trinta dias depois da tradição.
Ainda acrescenta o referido autor que a própria gênese dos cartões de crédito se deu para possibilitar que ocorressem transações comerciais presentes com pagamentos futuros, as quais seriam garantidas pela administradora (MARTINS, 1976, p. 209).
Como já pontuamos no subitem anterior, este prazo para recebimento dos valores, para o fornecedor, representa um custo, qual seja o custo de não dispor do capital, já tendo realizado a venda, o qual se soma com os valores cobrados pelas administradoras (aluguel e percentual sobre as transações).
Pode parecer que estes custos são pequenos e não representam grande quantia quando divididos por todos os consumidores, porém o relatório do Banco Central sobre a Indústria de Cartões de Crédito estima uma transferência de renda anual de R$ 3,7 bilhões de reais para os usuários de cartões coletivamente (BANCO CENTRAL DO BRASIL, 2011, p. 74).
Analisando individualmente, a transferência de renda é ainda mais alarmante, pois demonstra que os usuários de cartão recebem um subsídio de R$ 194,00 (cento e noventa e quatro reais) anuais dos consumidores que utilizam outros meios de pagamento (estes arcam, individualmente, com R$ 97,00). Ainda, considerando-se apenas as famílias de alta renda portadoras de cartão de crédito, o benefício recebido é de R$ 301,00 (trezentos e um reais) anuais (BANCO CENTRAL DO BRASIL, 2011, p. 74).
Segundo o citado relatório, esse subsídio cruzado, que é a transferência dos custos das transações com cartão de crédito para todo o mercado, faz com que pessoas que não utilizam esse meio de pagamento arquem com os custos dele, posto que estes estão diluídos em todos os preços pela impossibilidade de diferenciação (BANCO CENTRAL DO BRASIL, 2011, p. 64).
Segundo os economistas, o cartão de crédito é um meio de pagamento que tem uma eficiência diferente do pagamento em dinheiro ou em cheque. Desta forma, se a legislação iguala os preços entre todos os meios de pagamento, o custo dessa diferença de eficiência haverá de ser diluído para todos os consumidores.
Analisando a questão por outro ângulo, mas também com enfoque no preço final ao consumidor, Marcos Jorge e Wilfredo Maldonado (2013), utilizando modelos econômicos, demonstram que comparando dois cenários ideais hipotéticos em que um não permite o sobrepreço e outro permite, no cenário em que se permite, o preço médio das mercadorias é menor.
Diante disso, resta demonstrado que, ao permitir a diferenciação de preços permite-se que o fornecedor repasse ao consumidor o efetivo preço da transação, contrariando as suposições de que os fornecedores apenas criariam um preço maior (do que os atuais) para os cartões de crédito com a liberação do sobrepreço.
Assim, parece-nos que, em verdade, quem se beneficia da impossibilidade da diferenciação dos preços nos pagamentos com cartão de crédito são as administradoras, as quais podem vender os seus serviços, equiparando-os ao uso do dinheiro (o que é uma grande vantagem competitiva).