BREVE RELATO:Este artigo inicia-se com uma análise da delação premiada que foi regulamentada recentemente no direito penal brasileiro, apontando os privilégios que o delator pode obter com o uso desse mecanismo. Em seguida, verifica-se a aplicabilidade prática, exemplificando com a recente e polêmica delação feita pelos sócios da empresa JBS no âmbito da operação Lava Jato, comparando suas penalidades com demais casos tão mais singelos e, no entanto, com punições muito maiores, observando as desigualdades no tratamento punitivo. Em sequência, expõe-se o pensamento de Jessé Souza sobre o habitus existente nas sociedades periféricas, de modo a entender porque certas políticas criminais têm reforçado a naturalização da desigualdade através de leis e práticas como da delação premiada, relacionando ainda com a teoria do reconhecimento de Axel Honneth, de forma a compreender o papel do reconhecimento recíproco para efetivar a igualdade entre as pessoas, observando o processo de luta constante para alcance deste bem comum. Ao final, destaca-se a necessária percepção dos impactos nocivos da delação premiada frente a luta por reconhecimento, para buscar a eliminação das injustiças geradas e reestabelecer a alteridade que deve conduzir a vida em sociedade.
PALAVRAS-CHAVES: Delação Premiada; Privilégios; Subcidadania; Igualdade; Luta por reconhecimento.
ABSTRACT:This article aims to verify if the institute of the plea agreement and its proposed privileges for a certain class of criminal offenders contributes to the increase of the inequality and consequently maintenance of the sub-citizenship. It begins with an analysis of the plea agreement that recently was regulated in Brazilian criminal law, pointing out the privileges that the informant can obtain with the use of this mechanism. Then, the practical applicability is verified, exemplifying with the recent and controversial disclosure made by the partners of the company JBS in the ambit of the operation Lava Jato, comparing its penalties with other cases so much simpler and yet, with much greater punishments, observing the inequalities in punitive treatment. In sequence, it is made the exposure of the thought of Jessé Souza on the existing habitus in the peripheral society, in order to understand why certain criminal policies have reinforced the naturalization of inequality through laws and practices as of the plea agreement. Also, relating to the theory of recognition Of Axel Honneth, in order to understand the role of reciprocal recognition to bring about equality between people, observing the process of constant struggle for the attainment of this common good. In the end, it is highlighted the necessary perception of the harmful impacts of the plea agreement against the struggle for recognition, in order to seek to eliminate the injustices generated and to re-establish the otherness that should lead to life in society.
KEYWORDS: Plea Bargain; Privileges; Sub-citizenship; Equality; Fight for recognition.
INTRODUÇÃO
A Carta Constitucional de 1988 optou por instituir um modelo de Estado Democrático de Direito, fundamentado na cidadania e dignidade da pessoa humana. Construir uma sociedade livre, justa e solidária, erradicando a pobreza e reduzindo as desigualdades sociais constituem os principais objetivos fundamentais.
Tais objetivos, foram muito aplaudidos, pois, enfim, uma carta constitucional instituiu, ao menos formalmente, princípios básicos a guiar o Estado na tentativa de minimizar os problemas sociais e econômicos que afligem a massa de subcidadãos brasileiros.
Nesse cenário e para alcance dos objetivos propostos, a igualdade possui valor de elemento fundante de instituições modernas e práticas associadas às emergências do capitalismo e do individualismo liberal, um verdadeiro pressuposto simbólico do convívio intersubjetivo, da qual as sociedades periféricas, como o Brasil, experimentam uma completa ausência desse alicerce valorativo (MOREIRA, 2010, p.126-130).
Por essas sociedades serem desprovidas do imaginário simbólico da igualdade, previu-se, com o intuito de atrelar a edificação da ordem social, política e jurídica, dentre os direitos e garantias fundamentais o direito a igualdade, consagrado no artigo 5º, caput no qual prescreve que “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade [...]”.
Assim, busca-se que esse valor abrigado pela Constituição, norteie a interpretação de leis existentes, além de ser observado na elaboração das normas jurídicas e nas práticas cotidianas dos cidadãos e subcidadãos.
Diante desses fundamentos que orientam a sociedade brasileira é necessário observar, com cautela, comportamentos que violem direitos fundamentais atribuídos a toda pessoa humana e as distancie dos pressupostos éticos, econômicos e políticos constituintes da nossa sociedade, especialmente aqueles violadores do princípio da igualdade.
Nesse contexto, uma questão bastante delicada é a limitação imposta pela lei penal na liberdade de agir do indivíduo, que não pode proibir e sancionar mais do que o necessário para o alcance de uma coexistência livre e pacífica, devendo proteger a dignidade e a igualdade dos indivíduos, pois estes compõem condições essenciais da liberdade individual (ROXIN, 2006, p. 33).
Desta maneira, a igualdade jurídica dos cidadãos perante a lei é um dos efeitos fundamentais a ser observado no direito penal, que na configuração normativa não pode se referir ou conduzir a diferenças pessoais, políticas ou sociais, pressupondo um tratamento penal desigual.
No entanto, a igualdade entre pena e delito que, deveria garantir a igualdade de tratamento, tem sido sempre negada pelo profundo sentimento de desigualdade social (FERRAJOLI, 2002, p. 313).
Este renomado pensador (idem ibdem) cita que até Beccaria, contradizendo suas teses igualitárias, escreveu em 1791, comentando as penas corporais, que enquanto nos delitos criminais não constitui um grande inconveniente que os nobres estejam sujeitos a uma pena igual que a dos plebeus, nos delitos políticos deve-se ter muitíssima consideração com a condição das pessoas, porque o bastão que pode corrigir o plebeu, avilta e humilha um nobre, um honesto comerciante e qualquer pessoa de cultura, afundando toda sua família na mais lutuosa desonra.
Não muito diferente disso tem-se presenciado no cenário atual brasileiro, no qual o instituto da delação premiada tem servido de supedâneo para aliviar políticos, grandes empresários e gestores das mazelas do sistema criminal.
Com isso, o objetivo do presente artigo é verificar se o instituto da delação premiada e seus privilégios propostos para uma determinada classe de infratores penais contribuem para o aumento da desigualdade e consequentemente manutenção da subcidadania no Brasil.
1. DELAÇÃO PREMIADA COMO INSTRUMENTO DO DIREITO PENAL SELETIVO NO BRASIL
A delação premiada é um termo doutrinário muito difundido para a colaboração premiada, que ganhou procedimentos próprios e regulamentação mais abrangente com a Lei nº 12.850 de 02 de agosto de 2013.
Utilizado como meio de obtenção de elementos de prova, o objetivo da colaboração premiada é promover uma rápida apuração dos delitos com imediata aplicação da pena pertinente.
No entanto, tal instrumento do direito penal negocial, diante da tendente expansão, vem preocupando cada vez mais os estudiosos, bem como os atores judiciários, que tem questionado os rumos, limites, vantagens e inconvenientes da delação premiada, gerando acirradas discussões sobre o assunto. Nesse sentido, Aury Lopes Junior e Alexandre Morais da Rosa (2015) anunciam ainda que
O pacto no processo penal pode se constituir em um perverso intercâmbio, que transforma a acusação em um instrumento de pressão, capaz de gerar autoacusações falsas, testemunhos caluniosos por conveniência, obstrucionismo ou prevaricações sobre a defesa, desigualdade de tratamento e insegurança.
Entre esses e os diversos aspectos que envolvem a delação premiada, o mais sutil e preocupante é a desigualdade de tratamento penalizador que o mecanismo proporciona com os demais sujeitos submetidos ao sistema penal, uma vez que possibilita que uma parcela de infratores, e como se verá, parcela muitas vezes proveniente de classes privilegiadas da sociedade, tenha acesso ao benefício e a penas muito brandas comparando-se a casos mais simples e severamente punidos, não só provocando a desigualdade como mantendo a já existente e naturalizada, indo contra o estado constitucional e os princípios que o fundamentam.
1.1 Aspectos contemporâneos da delação premiada no Brasil
Diversos diplomas legais disciplinaram sobre formas de colaboração antes da lei que trata das organizações criminosas ampliar e regulamentar esse instituto.
A possibilidade de colaboração surgiu no ordenamento jurídico brasileiro pela lei dos crimes hediondos (Lei 8.072/1990), que introduziu o §4º no artigo 159 do Código Penal, para em casos de extorsão mediante sequestro, ser possível a redução da pena de um a dois terços em favor do coautor que colabore com a autoridade competente.
Tal dispositivo inicialmente, limitava aos crimes cometidos por quadrilha ou bando, no qual era necessários mais de três integrantes, não cumprindo perfeitamente com sua finalidade que era a busca da preservação da vida do sequestrado. Com isso, o dispositivo foi alterado em 1996 (Lei nº 9.269/1996) para crimes cometidos em concursos de agentes, desprezando, assim, a quantidade de infratores.
Em 1995 foi editada a Lei nº 9.080 somente para acrescentar dispositivos na lei nº 7.492/1986 (crimes contra o sistema financeiro) e na Lei nº 8.137/1990 (crimes tributários) prevendo a redução de pena de um a dois terços para coautor ou partícipe que através de confissão espontânea, revela-se a autoridade policial ou judicial toda a trama delituosa.
A colaboração também está prevista na lei de lavagem de dinheiro (Lei nº 9.613/1998) em situações que o autor, coautor ou partícipe ajudar espontaneamente as autoridades, prestando esclarecimentos que conduzam a apuração das infrações penais e na identificação de autores, coautores e partícipes, ou na localização dos bens, direitos ou valores objeto do crime.
Nesse caso, inclusive o autor tem direito aos benefícios como redução de um a dois terços da pena a ser cumprida em regime aberto ou semiaberto, facultando-se ao juiz deixar de aplicá-la ou substituí-la, a qualquer tempo, por pena restritiva de direitos, conforme previsto no §5º do artigo 1º da referida lei.
Um pouco mais abrangente, a lei nº 9.807/1999 que dispõe sobre o sistema de proteção a vítimas e testemunhas, também estabelece sobre a proteção e benefícios de acusados ou condenados que tenham voluntariamente prestado efetiva colaboração à investigação policial ou ao processo criminal.
Nessa lei é possível a redução de pena, de um a dois terços para aqueles que tenham colaborado efetiva e voluntariamente, possibilitando a identificação dos demais coautores ou partícipes, a localização da vítima com vida e/ou a recuperação total ou parcial do produto do crime, bem como possibilita a aplicação do instituto do perdão judicial, caso o agente seja primário, levando-se em conta a personalidade do beneficiado e a natureza, circunstâncias, gravidade e repercussão social do fato criminoso.
Esse dispositivo legal foi mais inclusivo, pois estendeu o benefício a todos os crimes cometidos em concurso de pessoas.
A colaboração também foi objeto de causa de diminuição de pena no caso de condenação na lei de drogas (Lei nº 11.343/2006) beneficiando aqueles que contribuírem na identificação dos demais coautores ou partícipes do crime e na recuperação total ou parcial do produto do crime.
Até aqui, as previsões apenas estabeleciam causas de redução de pena, alguma possibilidade de pena substitutiva no caso de lavagem de dinheiro e o perdão judicial na lei de proteção a testemunhas e vítimas, observando em todos o devido processo legal e o preenchimento dos restritos requisitos para obtenção do benefício.
Contudo, a mais recente disposição sobre o tema foi a feita pela Lei nº 12.850/2013 que trata das organizações criminosas, revogando a antiga lei sobre o assunto (lei nº 9.034/1995) e inovando ao trazer o termo “colaboração premiada”, mais conhecida por delação premiada, como meio de obtenção de elementos de prova, ampliando e definindo hipóteses de cabimento, questões procedimentais, requisitos para concessão, consequências jurídicas, entre outros aspectos.
A nova regulamentação da delação premiada tem o propósito específico para os crimes praticados por organização criminosa. O §1º do artigo 1º da referida lei trouxe a previsão legal de organização criminosa no qual
Considera-se organização criminosa a associação de 4 (quatro) ou mais pessoas estruturalmente ordenada e caracterizada pela divisão de tarefas, ainda que informalmente, com objetivo de obter, direta ou indiretamente, vantagem de qualquer natureza, mediante a prática de infrações penais cujas penas máximas sejam superiores a 4 (quatro) anos, ou que sejam de caráter transnacional.
Denota-se que para ser organização criminosa é necessário a associação de 4 (quatro) ou mais pessoas, que possuam propósitos comuns, mesmo com desempenho de atividades diferentes dentro da estrutura e que podem estar estabelecidas de maneira formal ou informal.
Destaca-se que a finalidade da organização deve ser obter vantagem de qualquer natureza, através da pratica de infrações penais. No entanto, não é qualquer infração penal, somente aquelas apenadas com pena máxima superior a 04 anos ou que constituam crime de caráter transnacional.
Além disso, foi aumentado os benefícios ao colaborador, que além da pena reduzida, pode ter também o perdão judicial, a substituição da pena corpórea por restritiva de direitos e a possibilidade de não ser denunciado (art. 4º, caput e §4º).
A nova regulamentação ampliou significativamente o rol de resultados para a concessão de possíveis benefícios, sendo eles:
Art. 4o O juiz poderá, a requerimento das partes, conceder o perdão judicial, reduzir em até 2/3 (dois terços) a pena privativa de liberdade ou substituí-la por restritiva de direitos daquele que tenha colaborado efetiva e voluntariamente com a investigação e com o processo criminal, desde que dessa colaboração advenha um ou mais dos seguintes resultados:
I - a identificação dos demais coautores e partícipes da organização criminosa e das infrações penais por eles praticadas;
II - a revelação da estrutura hierárquica e da divisão de tarefas da organização criminosa;
III - a prevenção de infrações penais decorrentes das atividades da organização criminosa;
IV - a recuperação total ou parcial do produto ou do proveito das infrações penais praticadas pela organização criminosa;
V - a localização de eventual vítima com a sua integridade física preservada.
A lei também estabeleceu direitos ao colaborador, bem como instituiu requisitos de validade do termo de acordo da colaboração e permitiu uma ilimitada liberdade de negociação das penas, que salta aos olhos, segundo Aury Lopes Junior e Alexandre Morais da Rosa (2015), pois tem possibilitado os mais diversos regimes de cumprimento da pena, numa verdadeira “execução a la carte”.
Diante do quadro apresentado, percebe-se que a principal marca desse benefício nas diferentes normas jurídicas é que sempre se refere a crimes praticados por mais de um agente, seja em coautoria, coparticipação, organização criminosa e quadrilha ou bando, ficando claro que a colaboração não se aplica aos casos de crimes individuais ou sem tais características.
Além do mais, é inevitável observar os destinatários dessas leis e consequentemente dos benefícios instituídos aos mesmos, uma vez que a maioria são normas de cunho patrimonial e geralmente praticado por pessoas de capacidade econômica elevada, sugerindo uma certa preferência e uma espécie de consenso e preocupação em beneficiar certos infratores.