3. A NECESSÁRIA PERCEPÇÃO DOS IMPACTOS NOCIVOS DA DELAÇÃO PREMIADA FRENTE A LUTA POR RECONHECIMENTO
Como conclui Moreira (2010, p.60), “a negação do reconhecimento de alguém implica em privação de um pré-requisito básico para o seu desenvolvimento humano”.
Por certo, várias são as violações ao direito de reconhecimento que ocorrem nas sociedades periféricas como a brasileira. Por isso, existe uma constante luta por mais igualdade e dignidade humana, que somente podem ser alcançados pelo reconhecimento recíproco intersubjetivo.
No entanto, igualdade não é um mero direito que pode ser compensado por valores e práticas benignas. Igualdade é um valor básico, fonte de dignidade e reconhecimento individual em primeira instância (MOREIRA, 2010, p. 134).
Por esse motivo, o valor igualdade deve ser forçosamente observado nas condutas que ponham em jogo os direitos das pessoas, principalmente quando estão a lidar com a liberdade dos indivíduos, de modo a não cometer nenhuma injustiça que ofenda a moral e a dignidade pessoal.
Conforme já elucidado, a delação premiada tem proporcionado um tratamento desigual aos infratores das leis penais, fazendo com que seja sequer comparável os delitos praticados e penas cominadas em situações comuns e as que permitem a utilização do benefício, produzindo lesividades a liberdade interior e a dignidade pessoal. Nesse sentido,
Tanto a diferenciação quanto o tratamento reeducativo e a discricionariedade administrativa na determinação da qualidade e da duração da privação de liberdade contradizem, efetivamente, não só os princípios de retributividade, legalidade e jurisdicionalidade, senão também os de necessidade e humanidade das penas, resolvendo-se em tratamentos desiguais não justificados pela diversidade do delito e, por conseguinte, lesivos para a liberdade interior e a dignidade pessoal do réu, pela sua pretensão de transformar a pessoa (FERRAJOLI, 2002, p.319).
Ferrajoli (2002, p. 584) ainda se posiciona que “rompem, igualmente, o nexo retributivo entre pena e delito as diferenças de tratamento segundo o tipo de acusado, como são as constituídas pelos prêmios penais e processuais[...]”. Assim, ainda que de forma imperceptível, diante de tantos questionamentos que tem se feito sobre a delação premiada, a desigualdade de tratamento gerado por este mecanismo, por si só, deveria ser capaz de corrigir os rumos e frear os verdadeiros abusos em face das desigualdades geradas e mantidas pelo habitus que perpetua na sociedade moderna periférica.
Neste contexto, Honneth (2011, p.194) explica que
“Tanto Hegel como Mead estão convencidos de que há um prosseguimento da “luta por reconhecimento” no interior da esfera jurídica; portanto, os confrontos práticos, que se seguem por conta da experiência do reconhecimento denegado ou do desrespeito, representam conflitos em torno da ampliação tanto do conteúdo material como do alcance social do status de uma pessoa de direito.
Essa luta por reconhecimento é uma forma de restituir a autorrespeito, e no caso das sociedades periféricas como o Brasil, para constituir o autorrespeito e consequentemente a estima social, buscando efetivar direitos negados no processo de construção das relações sociais, restaurando o sentimento de valor perante os demais membros da sociedade.
A igualdade de direitos leva a uma reciprocidade dentro da relação jurídica, que segundo Honneth (2011, p.181) é capaz de gerar o autorrespeito, onde o sujeito concebendo a si e ao outro como sujeito de direito, nutre o sentimento de estima mútua, no qual todos os indivíduos conseguem reconhecer sua importância na sociedade, e assim, estabelecer a estima social.
CONCLUSÃO
O objetivo do presente artigo foi verificar se o instituto da delação premiada e seus privilégios propostos para uma determinada classe de infratores penais contribuem para o aumento da desigualdade e consequentemente manutenção da subcidadania.
Como visto, o instituto é polêmico. Antes de ser regulamentado pela Lei nº 12.850/2013 já se previa alguns mecanismos de colaboração em leis esparsas, mas a sua disposição em lei especificamente aplicada a um tipo de crime, de cunho econômico e que privilegia uma determinada classe da sociedade, com benefícios inimagináveis, tem feito surgir o questionamento dos valores que permeiam a sociedade a qual permite a adoção de privilégios em troca de um suposto proveito para a investigação ou processo em face da ineficiência do Estado.
Enquanto criminosos que roubam ou desviam milhões e tiram proveito de todo o povo são apenados com prisão domiciliar, uso de tornozeleira eletrônica, aquele pobre, da “ralé”, que furta um objeto de pequeno valor é condenado à prisão em regime fechado por anos, padecendo nas mazelas do sistema carcerário.
Em ambos os casos não se cumprem as funções da pena de ressocializar e prevenir o crime. Em ambos, por ineficiência do Estado. Mas um tem o privilégio de praticar o crime, negociar sua pena para cumpri-la em liberdade em curto tempo ou em alguns casos não responder nem ao processo penal, enquanto o outro, aquele detentor dos estereótipos e preconceitos da sociedade, é submetido ao rigor das leis penais e processuais, cumprindo rigidamente as penas impostas, sem direito a colaboração, a arrependimento e a negociar o que e como quer cumprir a sanção pelo ilícito praticado.
Se isso não contribui para a desigualdade entre os indivíduos de uma mesma sociedade, também não teria fundamento a existência do habitus precário e do habitus secundário, bem como não seria necessário falar em luta por reconhecimento, o que de longe é o mais recorrente nas sociedades diferenciadas.
São essas sutis e aparentemente inofensivas concessões, que alimentam o não reconhecimento dos indivíduos, mantendo forte e ávida a categoria de subcidadãos, carentes de respeito dos outros para adquirirem seu autorrespeito e assim se fazer com que a igualdade esteja presente no imaginário simbólico dessas sociedades em desenvolvimento.
REFERÊNCIAS
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Congresso Nacional, 1988. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/ constituicaocompilado.htm >. Acesso em: 25 jul. 2017.
DEPEN – Departamento Penitenciário Nacional. Ministério da Justiça. Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias INFOPEN. Junho de 2014.
FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão: teoria do garantismo penal. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002.
HONNETH, Axel. Luta por reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais. Tradução. Luiz Repa. 2ª ed. São Paulo: Ed. 34, 2011.
LOPES JR., Aury; ROSA, Alexandre Morais da. Com delação premiada e pena negociada, Direito Penal também é lavado a jato. São Paulo: Consultor Jurídico, 2015. Disponível em < http://www.conjur.com.br/2015-jul-24/limite-penal-delacao-premiada-direito-penal-tambem-lavado-jato>. Acesso em: 25 jul. 2017.
________. Delação premiada: com a faca, o queijo e o dinheiro nas mãos. São Paulo: Consultor Jurídico, 2016. Disponível em < http://www.conjur.com.br/2016-mar-25/limite-penal-delacao-premiada-faca-queijo-dinheiro-maos>. Acesso em: 25 jul. 2017.
MOREIRA, Nelson Camatta. Fundamentos de uma Teoria da Constituição Dirigente. Florianópolis: Conceito Editorial, 2010.
ROXIN, Claus. Estudos de direito penal. Tradução de Luís Greco— Rio de Janeiro: Renovar, 2006.
SOUZA, Jessé. A construção social da subcidadania: para uma sociologia política da modernidade periférica. Belo Horizonte: UFMG. Rio de Janeiro: Iuperj, 2006.