A Constituição Federal brasileira completou 30 anos em outubro. Apesar da maior idade, diversos dispositivos ali inseridos permanecem sem regulamentação. Ilustrativa é a situação do inciso I, do art. 7º, que pretendemos analisar no vertente artigo:
“Art. 7º São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social:
I - relação de emprego protegida contra despedida arbitrária ou sem justa causa, nos termos de lei complementar, que preverá indenização compensatória, dentre outros direitos”.
Da leitura do regramento acima, uma constatação emerge reluzente: a norma constitucional alberga um direito fundamental do trabalhador, consistente no “princípio protetor contra a despedida arbitrária ou sem justa causa”[1], ou, no dizer de Alexandre de Moraes, a norma em tela, consagra o “direito à segurança no emprego”, impedindo, assim, a dispensa injustificada, sem motivo socialmente relevante[2].
Ora, se estamos falando de adoção expressa, pela Constituição Federal, do “princípio protetor contra a despedida arbitrária ou sem justa causa”, como admitir que o ato do empregador de promover a despedida sem justa causa seja considerado como direito potestativo?
Respondemos negativamente à indagação acima. Ou seja, entendemos que o ato do empregador quando despede um trabalhador sem justa causa não se enquadra no rol dos chamados direitos potestativos.
Os fundamentos para a nossa conclusão encontram-se na própria Constituição Federal, que prevê “indenização compensatória” em favor do trabalhador que sofre despedida arbitrária ou sem justa causa.
A “indenização compensatória” prevista no art. 7º, I, da Constituição Federal corresponde atualmente, e enquanto não editada a lei complementar de que cuida o indigitado cânone, ao montante equivalente a 40% dos depósitos do FGTS, consoante reza o art. 10 do ADCT:
“Art. 10. Até que seja promulgada a lei complementar a que se refere o art. 7º, I, da Constituição:
I - fica limitada a proteção nele referida ao aumento, para quatro vezes, da porcentagem prevista no art. 6º, ‘caput’ e § 1º, da Lei nº 5.107, de 13 de setembro de 1966”.
Uma vez que a Constituição Federal prevê o pagamento de “indenização compensatória” em favor do empregado dispensado, não é mais possível conceber o ato do empregador como exercício de direito potestativo.
Nessa senda, direito potestativo, segundo Gagliano e Pamplona, deve ser entendido como o poder jurídico conferido ao seu titular de interferir na esfera jurídica de terceiro, sem que este nada possa fazer[3].
Ao direito potestativo corresponde um mero estado de sujeição da outra parte. Traduzem-se os direitos potestativos em faculdade ou poder, por ato livre da vontade, e que podem ser exercidos enquanto perdurar uma situação jurídica ou de fato[4].
Por constituir faculdade ou poder, o exercício de direito potestativo não pode representar causa de dano, isso é, o exercício de direito potestativo pelo seu titular não pode gerar obrigação de reparar dano à outra parte, que sofreu interferência em sua esfera jurídica.
Se assim é, não há como concluir que o ato do empregador de despedir um empregado sem justa causa configure direito potestativo.
Afinal, não teria lógica nem sentido que alguém, ao exercer faculdade ou poder, fique obrigado a pagar “indenização compensatória”, como é imposto para o empregador em favor do seu empregado dispensado.
Isso significa que a estipulação, fixada pelo Legislador Constituinte, que atribui ao empregador a obrigação de pagar “indenização compensatória”, deixa claro que o ato do empregador não é direito potestativo, já que, cristalinamente, causa dano ao seu empregado, e, por isso, gera a obrigação de indenizar.
Chegamos a essa conclusão justamente porque a obrigação de indenizar somente surge quando há dano.
Com efeito, sem dano não há obrigação de indenizar, ou, nas palavras de Dallegrave, a indenização dissociada do dano é locupletamento[5]. O dano é conceituado como a lesão a interesses juridicamente tuteláveis; é a ofensa ao patrimônio material ou imaterial de alguém[6].
Como visto, a obrigação de indenizar pressupõe, necessariamente, a existência de dano, o qual constitui elemento essencial da responsabilidade civil. Esta, por seu turno, de acordo com Cláudio Brandão, consiste na “obrigação, genericamente considerada, atribuída a toda pessoa, física ou jurídica, de reparar o dano causado, em virtude de sua ação ou omissão, caracterizadora da violação de um dever jurídico preexistente”[7].
Da definição acima, é possível perceber que a responsabilidade civil de indenizar somente surgirá quando alguém causar dano a outrem, em decorrência de ação ou omissão violadora de um dever jurídico.
Em outras palavras, quem, por ação ou omissão, viola dever jurídico, e, com isso, causa dano a outrem, está praticando ato ilícito. Nesse sentido é a dicção do art. 186 do Código Civil, que reconhece no ato ilícito a origem da responsabilidade civil:
“Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito”.
Revolvendo à análise do art. 7º, I, da Constituição Federal, força concluir que o ato do empregador de despedir empregado sem justa causa é ato ilícito.
Nessa senda, se tem o empregador dever de indenizar, é porque, inarredavelmente, ao praticar o ato de dispensa, causou dano ao empregado, e, uma vez que o dano é elemento essencial da responsabilidade civil, a única ilação possível é que o ato do empregador violou direito do empregado, sendo, por isso, ato ilícito.
Em resumo, podemos dizer que a despedida sem justa causa configura, por si só, ato ilícito do empregador. Essa conclusão decorre da constatação de que o empregador que despede sem justa causa fica obrigado a reparar o dano causado, pagando indenização compensatória (CF, art. 7º, I c/c ADCT, art. 10), em conformidade com a teoria da responsabilidade civil emanada do disposto nos artigos 186 e 927 do Código Civil.
Por outro lado, enquanto não editada a lei complementar de que cuida o art. 7º, I, da Constituição Federal, a consequência jurídica para o ato de despedida sem justa causa praticado pelo empregador consiste no pagamento de uma indenização compensatória a cargo deste (CF, art. 7º, I c/c ADCT, art. 10)[8].
Feitas as considerações no sentido de constituir ato ilícito o ato do empregador que despede empregado sem justa causa, cumpre-nos, doravante, tratar da possibilidade da dispensa, constituir, não apenas ato ilícito típico (CC, art. 186), mas também ato abusivo (CC, art. 187).
Nessas condições, a despedida sem justa causa, além de naturalmente ilícita, pode ser, ademais, abusiva, quando contrariar o art. 187 do Código Civil. Ou seja: a despedida sem justa causa enquadra-se, sempre, como ato ilícito típico (CC, art. 186), mas pode ocorrer de tal maneira que configure, também, ato abusivo (CC, art. 187).
É cediço que o abuso de direito é consagrado no ordenamento nacional no art. 187 do Código Civil:
“Art. 187. Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes”.
Amparando-se no art. 187 do CC, Edilton Meireles define o abuso do direito como “o exercício de um direito que excede manifestamente os limites impostos na lei, pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé e pelos bons costumes, decorrente de ato comissivo ou omissivo”[9].
Ainda segundo Edilton Meireles[10], os critérios que devem ser aplicados para a verificação do ato abusivo podem ser extraídos do Código Civil: desproporcionalidade (“excede manifestamente os limites impostos...”); e violação da boa-fé, da função social, da função econômica ou dos bons costumes.
A proporcionalidade está vinculada ao princípio da comutatividade ou da justiça contratual, por força do qual impõe-se a equivalência das prestações contratadas tanto sob a ótica econômico-financeira, quanto em função da capacidade das partes e em razão das circunstâncias específicas que caracterizam a relação. Por isso, “sempre que ocorrer a ruptura do equilíbrio contratual, em tese, estar-se-á diante de uma cláusula ou prática abusiva”[11].
Vulnera a boa-fé, não apenas aquele que age de má-fé (violação da boa-fé subjetiva), mas também aquele que desrespeita a boa-fé objetiva. Esta, numa relação jurídica contratual, serve[12]:
a) como instrumento hermenêutico-integrativo do contrato – objetiva preencher lacunas, já que nem sempre previstos todos os eventos surgidos na relação contratual;
b) como norma de criação de deveres jurídicos – na verdade de deveres laterais, anexos, instrumentais ou acessórios, dentre os quais incluem-se: os deveres de cuidado, previdência, proteção e segurança com a pessoa e o patrimônio da contraparte, inclusive contra danos morais; os deveres de aviso e esclarecimento (comunicação, explicação); os deveres de informação; os deveres de prestar contas; os deveres de lealdade, colaboração e cooperação; os deveres de omissão e segredo;
c) como norma de limitação ao exercício de direitos subjetivos – visando evitar o exercício abusivo dos direitos subjetivos, como, por exemplo, ocorre nas situações conhecidas na doutrina e jurisprudência germânicas sob as seguintes locuções: venire contra factum proprium; inalegabilidade das nulidades formais; suppressio (verwirkung); tu quoque; e desequilíbrio no exercício jurídico.
Assim, fere a boa-fé, tanto o atuar com má-fé, quanto o agir em desrespeito aos deveres anexos da boa-fé ou de modo a exceder os limites de exercício dos direitos subjetivos.
Ofende a função social o ato que se desvirtua do instituto jurídico que integra. Nessa senda, como todo instituto jurídico é criado, principalmente, para servir à coletividade, o ato ou relação jurídica interessa a todos que os cercam e que são por eles afetados (coletividade), e não apenas às pessoas diretamente envolvidas. A doutrina cita como violadores da função social os atos que ofendam os direitos fundamentais (físicos, psíquicos e morais) [13].
Esclarece Edilton Meireles que, assim como o contrato, que tem três funções (econômica, pois serve à circulação de riquezas; regulatória, porque os contratantes estabelecem as regras voluntariamente assumidas; e social, uma vez que procura satisfazer os interesses sociais), “todo e qualquer ato, para que não seja considerado abusivo, há de ser fonte de equilíbrio social”[14].
Finalmente, vulnera a função ou finalidade econômica o ato que possa conduzir à ruína de uma das partes ou que tenda à espoliação[15].
De molde a aclarar o que se vem de dizer, tome-se o exemplo do empregador que, logo depois de deixar evidente para o seu empregado que o promoverá de função, aumentando-lhe o salário, pratica despedida sem justa causa, sem motivo.
No caso traçado, o empregador praticou abuso do direito, ao agir de forma contraditória, gerando justa expectativa no empregado de ser promovido, incidindo no chamado venire contra factum proprium (contradição de comportamento).
Constatada a abusividade do ato de dispensa, o empregador se sujeitará ao pagamento de outra indenização, esta agora fundada na prática de ato abusivo, e amparada nos arts. 187 e 927 do Código Civil.
Ocorrendo a situação retratada, serão duas as indenizações devidas pelo empregador: a primeira, tarifada na Constituição Federal, decorrente da prática do ato ilícito (CF, art. 7º, I, e ADCT, art. 10, I c/c os arts. 186 e 927 do CC); a segunda, a ser arbitrada de acordo com os parâmetros estabelecidos no art. 940 do CC, decorrente da prática do ato abusivo (CC, art. 187 c/c art. 927).
Em conclusão, podemos sintetizar que a despedida sem justa causa, além de naturalmente configurar ato ilícito do empregador, pode, ainda, constituir ato abusivo, cabendo ao empregado o direito ao recebimento de duas indenizações distintas, por se fundarem em atos jurídicos distintos.
Notas
[1] Esclarecemos, nesse passo, que, no presente estudo, trataremos, tão-somente, da despedida individual, deixando a latere toda a problemática envolvendo as despedidas em massa, em relação à qual recomendamos a leitura do excelente artigo do Professor Renato Rua de Almeida, intitulado “Subsiste no Brasil o direito potestativo do empregador nas despedidas em massa?”, que pode ser acessado no seguinte link: http://www.institutocesarinojunior.org.br/texto5rruademisemassa.pdf
[2] MORAES, Alexandre. Constituição d Brasil interpretada e legislação constitucional. 5ª ed. São Paulo: Atlas, 2005, p. 478-479.
[3] GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo curso de direito civil: parte geral. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2006, V. I, p. 485-7.
[4] VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito civil: parte geral. 5ª ed. São Paulo: Atlas, 2005, p. 376.
[5] DALLEGRAVE NETO, José Affonso. Responsabilidade civil no direito do trabalho. 2º ed. São Paulo: LTr, 2007, p. 150.
[6] Op. cit., p. 151
[7] BRANDÃO, Cláudio. Acidente do trabalho e responsabilidade civil do empregador. 2ª ed. São Paulo: LTr, 2007, p. 206.
[8] Para um maior aprofundamento em torno dessa conclusão, recomendamos a leitura de magistral artigo do Professor Renato Rua de Almeida, intitulado “A Estabilidade no Emprego num Sistema de Economia de Mercado” (in Revita LTr, Volume 63, n. 12, dezembro de 1999, p. 1600-4).
[9] MEIRELES, Edilton. Abuso do direito na relação de emprego. São Paulo: LTr, 2005, p. 22.
[10] op. cit., p. 48.
[11] op. cit., p. 50.
[12] Op. cit., p. 51-77.
[13] op. cit., p. 81-82.
[14] op. cit., p. 81-82.
[15] op. cit., p. 83.