3. MASMORRAS, CALABOUÇOS E “ENLATADOS
A realidade do sistema carcerário no Brasil e toda sua estrutura estabelecida pelo sistema punitivo se mostra muito similar a toda construção histórica em que o último foi estabelecido, se configura natural que seja relacionada ao atual colapso que se encontra as prisões e cárceres brasileiros. No entanto, o que pode se perceber é uma não mudança de realidade no que diz respeito ao sofrimento e dor presente nesse setor, nesse sentido se encontra as palavras de Foucault quando diz: “a dor era constitutivo da pena. ” As atuais circunstâncias demonstram uma equiparação a toda uma história que se tenta esquecer. No quesito dor não existe diferença, a punição vem exercendo a sua finalidade inicial de vingança e sofrimento, com uma extensão do significado da palavra, mas que hoje caracteriza-se como a continuação do sistema punitivo presente em toda a história.
Como anteriormente falado, o sistema punitivo tem sua origem desde a antiguidade e se perdura até hoje, no decorrer da história alguns fatos ou períodos marcantes explicitam a lógica de punir, a origem brasileira vem da colonização europeia que vivenciou pouco antes todo um período em que as relações de poder eram fundamentadas em nome da religião, as práticas de tortura e punições nesse período foram aprofundadas com destreza, a idade das trevas marcou a história da humanidade pela perseguição e punição.
Com o papado de Inocêncio III a base legal para perseguição aos hereges foi estabelecida, com a Igreja processando, julgando e aplicando a sanção contra os infiéis, afirmando que os mesmos deveriam ser presos e entregues às autoridades para punição, nesse momento surge a figura dos inquisidores e o aperfeiçoamento das técnicas e atos para torturar e punir. As masmorras e calabouços a partir desse momento foram cada vez mais difundidas e preenchidas com os que não se encaixavam nos padrões da época.
Essa influência é bem marcante no Brasil, copia, da Europa e desenvolve-se aqui uma sociedade escravocrata que utilizava-se de diversos meios para punir negros como objetos, as senzalas lotadas mostravam o real sentido da palavra dor. Nesse sentido, vale demonstrar um pouco da realidade daquele momento pelas palavras de MAIA, (2006, p.44):
“O dado histórico, portanto, é que os detentores do poder econômico e também os do poder político utilizavam-se da violência contra os despossuídos – índios, negros, pobres em geral – como modo de garantir controle social, como intimidação, castigo ou mero capricho. Aprisionavam pelas correntes e pelo medo. Dominavam o corpo, com isso pretendendo também subjugar o espírito. ”
Essa realidade se perpetuo por séculos no Brasil, trazendo suas consequências até nossos dias, o período das masmorras e calabouços não foi superado, mas qual seria o significado real de tais palavras? Para saber a resposta é só verificar o atual estado das prisões brasileiras que se percebe a semelhança com palavras tão estigmatizadas e que para a sociedade atual diz respeito a uma história que pretendem esquecer, como os alemães procuram esquecer o holocausto.
É fácil verificar os dados que são passados em relação à situação atual carcerária brasileira, os números são cada vez maiores, os apenados se sustentam em uma situação de vida que vai de encontro a toda a lógica de princípios e garantias do ser humano, onde todo esse desrespeito é um dado crescente como o número de presos que a cada dia lotam as instituições.
Dados relativos a população carcerária, fornecidos pelo CNJ são impressionantes, se verifica o aumento exorbitante, número que se mostra gritante e demonstra a política atual de cada vez mais neutralizar com a justificativa de uma possível contenção de ondas de violência. Os números ainda são mais preocupantes em relação a equação população-vagas, o déficit de vagas é quase que a metade dos apenados, propiciando assim a superlotação e a situação caótica atual, nada diferente das antigas senzalas ou campos de concentração em pleno século XXI.
Outra questão preocupante se baseia no número de presos provisórios, presos que nesse caso não chegaram a ser condenados ainda, essas pessoas vivem essa realidade mesmo sem ter ocorrido seus julgamentos. Deve-se levar em conta que esses presos se encontram em um estado de maior falta de respeito por parte do estado e da sociedade que incentiva essa política criminal de neutralização e encarceramento, cada vez mais de encontro aos princípios e garantias individuais da pessoa humana.
O custo que a sociedade brasileira paga por esse sistema ineficaz é bastante alto, que pelos dados apresentados pela CPI do Sistema Carcerário p.71 demonstram a disparidade em relação a outras áreas e a divergência dos valores com a realidade do sistema prisional:
“De acordo com relatório do DEPEN – Departamento Penitenciário Nacional, o gasto mensal com o sistema penitenciário totaliza R$ 3.604.335.392,00 (três bilhões, seiscentos e quatro milhões, trezentos e trinta e cinco mil, trezentos e noventa e dois reais), assim direcionados: R$ 2.642.579.873,00 (dois bilhões, seiscentos e quarenta e dois milhões, quinhentos e setenta e nove mil, oitocentos e setenta e três reais) gastos com a folha de pagamento dos servidores ativos (73,32%); R$ 27.701.964,00 (vinte e sete milhões, setecentos e um mil, novecentos e sessenta e quatro reais) gastos com a folha de pagamento dos servidores inativos (0,76%); R$ 799.481.100,00 (setecentos e noventa e nove milhões, quatrocentos e oitenta e um mil e cem reais) aplicados em despesas de custeio (22,18%) e R$ 134.572.455,00 (cento e trinta e quatro milhões, quinhentos e setenta e dois mil, quatrocentos e cinqüenta e cinco reais) destinados a despesas de investimento (3,74%).”
Com todo esse valor a situação prática, no entanto, é deplorável e através de uma análise em relação ao tipo penal enquadrado cada preso, verifica-se o número total de apenados em que a grande expressividade se configura em relação aos crimes patrimoniais, com um número em torno de 15% para o tráfico de entorpecentes. Dessa forma é notória a preocupação em tirar da sociedade indivíduos, alojando-os, ou melhor, utilizando a expressão real, “jogando-os” em prisões precárias ou estabelecimentos prisionais como uma masmorra ou calabouço, nessa situação cada vez mais cresce a população carcerária brasileira transformando esta na quarta maior do mundo, perdendo apenas para Rússia, China e Estados Unidos. Essa realidade de desrespeito crescente no Brasil cresce a cada ano, junto com o aumento vem à superlotação e o déficit de vagas que terminam por transformar um modelo velho, falho e ineficaz em uma política pública criminal.
São diversos os casos de desrespeito e de uma situação de vida crítica que ao se deparar com a realidade prisional brasileira se verifica, nessa mesma CPI foram relatados casos de proliferação de doenças das mais diversas, que pela proximidade condicionada através da superlotação termina por propiciar, falta de assistência médica básica, celas que comportariam 10% da quantidade presente, comidas da pior qualidade misturadas dentro de sacos plásticos onde os presos tinham que comer com as mãos, nesse caso, assemelhando-se animais, falta de controle e preservação da integridade física do apenado, higiene inexistente, falta de estrutura física, tratamento desumano e degradante, tortura, agressões, desrespeito à dignidade da pessoa humana entre diversos outros problemas de níveis diferentes em relação a gravidade da conduta, ou falta dela, por parte do estado, que demonstram exatamente o descaso e a manutenção com expansão do sistema punitivo.
Nesse sentido, FERRAJOLI, (2002, p.35), se refere ao cárcere e demonstra essa estrutura em que se baseia o sistema punitivo:
“ É preciso reconhecer, por outro lado, que o cárcere sempre foi, ao contrário do seu modelo teórico e normativo, muito mais do que “a privação de um tempo abstrato de liberdade”. Inevitavelmente, ele conservou múltiplos elementos de sofrimento corporal, que se manifestam na forma de vida e tratamento que só se diferenciam das antigas penas corporais por não serem concentradas no tempo, mas dilatadas por todo o período de duração da pena.
Além disso, ao sofrimento corporal a pena carcerária acrescenta o sofrimento psicológico: a solidão, a sujeição disciplinar, a perda da sociabilidade e da afetividade e, também , da identidade, além daquele sofrimento específico – o “castigo da alma” do qual falará Mannuzzu – conexo à pretensa reeducação voltada à transformação da personalidade do detento. Em suma, a reclusão tem um conteúdo aflitivo que vai bem além da privação da liberdade pessoal, resultando na privação da maior parte dos direitos vitais da pessoa”.
Mesmo com todo o avanço conquistado no decorrer da história, nessa área, o mesmo é inverso, o sistema de punir terminou por trazer condições e práticas bem piores que as antigas, além de toda a estrutura errónea questionável doutrinariamente em relação a punição, as formas da mesma se “aperfeiçoaram” no sentido de tornar bem pior a condição de vida dessas pessoas, um caso em específico é o que se chama de “latas de sardinha”, o material de diversas celas em algumas prisões é o aço, nos fundos do presídio há contêineres, ao invés de construir prédios para abrigar os presos são instalados esses módulos de aço com a explicação que estes custam mais barato. Os contêineres são uma espécie de caixote, são minúsculas celas para quatro homens feitas de aço, até mesmo as camas, e mesmo assim são superlotados onde caberiam no máximo quatro, ficam oito. Enferrujados e no momento que os agentes trancam as portas o calor é insuportável caracterizando assim uma situação crítica para aqueles presos enjaulados, apertados e sem condição alguma de permanência nesse local.
Por todo o exposto, nota-se que a situação é crítica e mesmo assim é crescente, a realidade do sistema prisional é dura para essas pessoas que a sociedade através do estado retira, afasta e pune de forma tão degradante, que os verbos anteriores não são os da prática, na verdade, elas são retiradas, excluídas, humilhadas e castigadas, mesmo com todo o avanço doutrinário, a situação cada vez mais mostra a ineficácia do sistema prisional.
4. A NEUTRALIZAÇÃO DE CLASSES
Concluindo o presente trabalho, verifica-se a finalidade principal da prática do sistema punitivo, tal seja, a neutralização de classes ou dos marginalizados, essa afirmação deriva das condutas empregadas e todo o contexto prático aplicado ao direito penal. É fato que a corrente abolicionista se faz presente para o setor favorecido econômico e socialmente, a população carcerária é predominantemente a extensão dos marginalizados, a sua esmagadora maioria são de negros, pobres, ou seja, os vulneráveis.
Nesse sentido, vale destacar o exemplo dos Estados Unidos que transformou a divisão de anos de história em relação ao apartheid social em uma extensão dos guetos para a prisão, com um controle e vigilância extrema em relação aos excluídos e diferentes. Categoricamente pode-se notar toda a lógica estruturante em relação ao sistema punitivo, tendo como sua finalidade a neutralização de indivíduos. Em relação a esse aspecto interessante o que diz FERRAJOLI, (2002, p.33):
“O cárcere – além da espetacularidade dos grandes processos, e também pela enorme quantidade de sujeitos atingidos pela justiça penal – é, em suma, e cada vez mais, um instrumento de controle e de repressão social reservado aos marginalizados. Dependentes químicos, imigrantes e jovens subproletários são, em número crescente, os destinatários principais da reclusão, por causa do aumento da desocupação, de pobreza, da simultânea crise do Estado do bem-estar e de suas prestações assistenciais e, por outro lado, da crescente onda repressiva que anima a opinião pública mobilizada contra os fracos e diferentes. Contra esses a justiça penal é extraordinariamente rápida e “eficiente”.
Toda essa busca por uma expansão do sistema penal parte do Estado com o apoio da sociedade que pressiona por ser atormentada por ondas de violência e por diversos fatores de uma possível evolução social que traz consigo desigualdade, injustiça e diversidade, sendo assim o caminho tido como o mais fácil e mais eficaz transforma a prevenção em uma conduta de punir e expandir o direito penal. Pela lógica da punição o sistema penal vem se demonstrando o meio ineficaz para a resolução de conflitos, no entanto os investimentos nessa área aumentam não proporcionalmente, aos investimentos dos outros e basilares setores como a educação. O uso dessa equação errônea termina por trazer o efeito inverso do esperado, no sistema carcerário o indivíduo ao adentrar só vai ter a chance, de sair um problema ainda maior para a sociedade.
A questão da ressocialização que figura como finalidade do sistema punitivo e como princípio do direito penal se torna impossível pelos diversos fatores apresentados em relação a vida que um habitante de uma prisão leva, pelos meios existenciais e por toda a sua estrutura, ressocializar é o verbo inexistente no sistema carcerário.
Dessa forma ANDRADE, (1995, p.25), traz uma questão envolvendo a falta de ressocialização e demonstra a finalidade da prática do sistema punitivo, tal seja, a neutralização:
“É este potencial de periculosidade social, que os positivistas identificaram com anormalidade e situaram no coração do Direito Penal que justifica a pena como meio de defesa social e seus fins socialmente úteis: a prevenção especial positiva (recuperação do criminoso mediante a execução penal) assentada na ideologia do tratamento que impõe, por sua vez, o princípio da individualização da pena como meio hábil para a elaboração dos juízos de prognose no ato de sentenciar. Logo, trata-se de defender a sociedade desses seres perigosos que se apartam ou que apresentam a potencialidade de se apartar do normal (prognóstico científico de periculosidade) havendo que ressocializá-los ou neutralizá-los”.
A estrutura da Justiça Penal se configura seletiva, a delinquência é representada pela classe dos marginalizados, pobres ou excluídos. Essa tendência crescente em neutralizar indivíduos se configura como uma fuga dos reais deveres do Estado, ensejando a validação do discurso de pensadores como Louk Husman, Claus Roxin ou as ideias de Barata que trazem um grande aporte no sentido de repensar as bases e modelos existentes, além de sua estrutura, contexto e funcionamento do sistema penal.
Nesse campo, a importância da criminologia crítica se demonstra como algo imprescindível na tentativa de buscar caminhos e alternativas para melhoria de uma área que se configura como problemática e mesmo assim crescente, que afeta mais e mais a sociedade.
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Por todo o exposto, o trabalho teve como finalidade uma demonstração e estudo de como se estabelece a realidade do sistema carcerário brasileiro, trazendo um pouco da sua estrutura, sua finalidade e se configura como um mínimo retrato de uma paisagem obscura e inóspita que cerca o sistema punitivo.
Primeiramente estabeleceu aspectos referentes à questão da tortura como um elemento organizacional e não disfuncional, para demonstrar uma conduta presente no sistema e retirar a ideia de algo excepcional e conduta de alguns, mas sim verificar toda uma lógica de uma estrutura organizacional que enseja a referida. Logo após, trouxe a crescente expansão de um sistema ineficaz e sua realidade prática, na tentativa de demonstrar a não alteração do modelo punitivo arcaico, no entanto, foi percebida uma mudança, não para melhor, mas para cada vez mais tornar a punição árdua e sem nenhum respeito aos princípios que norteiam o ordenamento jurídico, como exemplo, a dignidade da pessoa humana. Ao se verificar essa dura realidade do sistema carcerário brasileiro se chega a conclusão que a finalidade não é a prometida ressocialização, mas sim, a neutralização de determinados indivíduos pertencentes a determinadas classes.
Por fim, se averigua que o sistema punitivo se encontra em ascensão e sua expansão é uma constante, precisando assim cada vez mais críticas, estudos e aprofundamentos em um campo que interfere em toda a sociedade, esta que muitas vezes apoia essa expansão pelo fato de se sentir presa a uma violência crescente. Por essa razão, é de grande importância a figura da criminologia crítica com o intuito de se repensar esse modelo que mancha de sangue, fere e tem como razão de ser punir e neutralizar indivíduos, demonstrando assim sua ineficácia e todo o mal para a sociedade.
REFERÊNCIAS
ANDRADE, Vera Regina de. Do paradigma etiológico ao paradigma da reação social: mudança e permanência de paradigmas criminológicos na ciência e no senso comum. Revista Sequência n. 30 Florianópolis, 1995, págs. 24-36
BRASIL. Código Penal. Vade Mecum Saraiva. Ed. Saraiva, 2010.
BRASIL, Congresso Nacional. Câmara dos Deputados. Comissão Parlamentar de Inquérito do Sistema Carcerário. CPI sistema carcerário. – Brasília : Câmara dos Deputados, Edições Câmara, 2009. 620 p. – (Série ação parlamentar;n.384) Disponível em: http://bd.camara.gov.br/bd/bitstream/handle/bdcamara/2701/cpi_sistema_carcerario .pdf Acesso em: 10 jul 2013
BRASIL, Constituição (1988). Constituição da República Federativa doBrasil. Brasília: Senado, 1988.
BRASIL, Lei 9455 de 7 de abril de 1997, Define os crimes de tortura e dá outras providências Brasília/DF < disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil/LEIS/L9455.htm >Acesso em: 10 jul 2013
FERRAJOLI, Luigi. A pena em uma sociedade democrática. In INSTITUTO
CARIOCA DE CRIMINOLOGIA. Discursos sediosos: crime, direito e sociedade. Rio de Janeiro: Revan, 2002.
FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: Nascimento da Prisão. Tradução de Raquel Ramalhete. 25. ed. Petrópolis: Vozes, 2002.
MAIA, Luciano Mariz DO CONTROLE JUDICIAL DA TORTURA INSTITUCIONAL NO BRASIL À luz do direito internacional dos direitos humanos/ Luciano Mariz Maia – Recife, 2006. Disponível em: http://www.apublica.org/wp-content/uploads/2012/06/DO-CONTROLE-JUDICIAL-DA-TORTURAINSTITUCIONAL-NO-BRASIL-HOJE.pdf Acesso em:10 jul de 2013
WACQUANT, Loïc. As prisões da miséria. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001.