III. ASPECTOS NÃO POSITIVADOS DE EXPANSÃO DO JUDICIÁRIO
São aspectos que resultaram na expansão do Judiciário, mas que não decorrem diretamente do desenho institucional formal ou do ordenamento jurídico posto, mas sim de mudanças teóricas e da postura dos agentes estatais que ocasionaram este resultado.
III.1 O comportamento estratégico de atores políticos que veem no poder dos tribunais uma oportunidade de reverter decisões majoritárias nas quais foram derrotados
O Judiciário pode atuar não apenas após a aprovação de uma política pelo Legislativo, por meio das ações de controle de constitucionalidade, como também antes, por meio de sinalizações em pronunciamentos públicos, reuniões formais com o Executivo ou Legislativo, ou ainda por meio da análise de mandados de segurança impetrados por parlamentares que, insatisfeitos, questionem a constitucionalidade do projeto de lei ou de alteração à Constituição, alegando o direito fundamental a participar de um processo legislativo hígido.
A observação dos recursos e das ações de partidos políticos no STF desde 1988 parece corroborar o uso estratégico da Corte como ponto de veto: o PT ingressa com mais ações no STF durante o governo PSDB e vice-versa.
Fonte: Supremo em Números (http://www.fgv.br/supremoemnumeros).
Isto sinaliza que o uso estratégico do Judiciário por atores políticos de oposição diante de uma derrota no processo legislativo, transformando o Supremo Tribunal Federal e os Tribunais de Justiça em um verdadeiro terceiro turno do processo legislativo diante de uma derrota.
Ademais, em inúmeras situações, o custo político da tomada de certas decisões pelo Legislativo é encarado como muito alto por membros do seu corpo, cujo objetivo principal em algumas situações é a manutenção do mandato nas eleições seguintes. Sendo assim, decidir acerca de temas polêmicos, que polarizam a sociedade, como casamento homoafetivo, aborto, redução da maioridade penal, pode significar uma redução de votos no pleito seguinte, e, inclusive, a não reeleição.
Não aceitando correr o supracitado risco, o Parlamento se omite, canalizando o anseio social, que deve ser respondido, para o âmbito dos tribunais. Mais uma vez, o comportamento estratégico-eleitoral dos próprios agentes políticos fomenta o poder do Judiciário.
III.2 Crise de representatividade das instâncias políticas
A crise de representatividade da política atual é fenômeno mundial. A relação muitas vezes não clara entre partidos políticos e grupos empresariais ligada diretamente ao alto custo das campanhas políticas, e consequentemente de alto custo de acesso a uma cadeira no Parlamento, faz com que só possa ter acesso a uma vaga parlamentar, ou quem tem dinheiro suficiente para arcar com o alto custo da campanha, ou quem é financiado por um grupo empresarial que possua tal possibilidade, todavia, esse financiamento nunca parece ser gratuito. Percebe-se um descolamento da classe política e da sociedade civil, em uma relação marcada cada vez mais pela indiferença e ceticismo.
Fato é que a relação entre a classe política e grupos empresariais com interesse em favores estatais, sejam empreiteiras, sejam grupos interessados em financiamento a baixo custo por bancos públicos, subsídios ou benefícios fiscais, vem gerando um olhar da sociedade civil cada vez mais desconfiado em relação à classe política. O que é algo compreensível, mas que deve ser analisado com cuidado, afinal a política é gênero de primeira necessidade em uma democracia, e o discurso de sua criminalização muitas vezes está ligado a tendências autoritárias, como muitas vezes nos ensinou a história.
Por outro lado, em comparação com as demais instâncias, vem se assistindo um aumento de prestígio das categorias jurídicas, como juízes e membros do Ministério Público e advogados públicos. Neste ponto, Manoel Gonçalves Ferreira Filho compreende a expansão da atividade judicial como sintomática a este fenômeno:
Várias são as causas (ou talvez melhor se dissesse os fatores) desse fenômeno.
(…)
Outra, de ordem sócio-política, reflete o desprestígio dos "políticos", em face do prestígio dos magistrados como uma "aristocracia togada", quer dizer, o contraste entre uma "plebe" despreparada e ávida e uma elite instruída, preocupada com o justo. Justo este confundido com o interesse geral.
Uma terceira, também de ordem sociopolítica, intimamente ligada à anterior, é a auto-percepção dos magistrados como elite, com responsabilidade de trabalhar para o bem comum.[35]
O aumento desse prestígio, todavia, não pode ser enxergado de maneira positiva. Ele representa um efeito colateral, um sintoma da deficiência do nosso sistema democrático-eleitoral de produzir naturalmente lideranças políticas capazes de capitanear o Estado sem se descolar dos valores que devem conduzir a sociedade.
O fato é que o espaço simbólico da democracia vem emigrando silenciosamente da política para o Judiciário. O sucesso da justiça é inversamente proporcional ao descrédito que afeta as instituições políticas clássicas, causado pela crise de desinteresse e pela perda do espírito público. A posição de um terceiro imparcial compensa o “déficit democrático” de uma decisão política agora voltada para a gestão e fornece à sociedade à referência simbólica que a representação nacional lhe oferece cada vez menos. O contexto geral é de um Legislativo e um Executivo enfraquecidos, ocupados apenas com questões de curto prazo, reféns do receio e seduzidos pela mídia, esforçam-se em governar, no dia-a-dia, cidadãos indiferentes e exigentes, preocupados com suas vidas particulares, mas esperando do político aquilo que ele mesmo não sabe dar: uma moral, um grande projeto.
Neste sentido é a lição de Antoine Garapon:
Em face da decomposição do político, é então ao juiz que se recorre para a salvação. Os juízes são os últimos a preencher uma função de autoridade – clerical, quase que parental – abandonada pelos antigo titulares.
(…)
Quanto mais a democracia – sob sua dupla forma de organização política e social – se emancipa, mais ela procura na justiça uma espécie de salvaguarda, o que traduz a profunda unidade no fenômeno do aumento de poder da justiça.(…) O juiz passa a ser o último guardião de promessas tanto para o sujeito quanto para a comunidade política. Por não conservarem a memória viva dos valores que os formam, eles confiam à justiça a guarda de seus juramentos.
A justiça é guardiã do direito, quer dizer, dos pactos anteriores aos quais somos ligados. Ela garante a identidade da democracia, entendida como uma forma que não permanece a mesma através dos tempos, mas que “se mantém como uma promessa feita”. Quer se trate de crime contra a humanidade, do sujeito de direito ou da Constituição, o juiz exerce sua autoridade ao proteger a memória dessa promessa inicial por tudo e contra tudo, inclusive contra a vontade do titular da soberania nacional. A vontade individual expressa nos direitos subjetivos é tão frágil quanto a vontade coletiva encarnada no soberano: as duas podem se afundar na servidão voluntária. O juiz, seja constitucional ou judiciário, nada mais é do que o avalista dessa promessa de liberdade feita por cada um. A autoridade assegura a continuidade do sujeito de direito e, portanto, da democracia. Ela liga o presente ao passado.
A Justiça torna-se um espaço de exigibilidade da democracia. Ela oferece potencialmente a todos os cidadãos a capacidade de interpelar seus governantes, de tomá-los ao pé da letra e de intimá-los a respeitarem as promessas contidas na lei. Em um cenário de descrédito da Política, o Judiciário vem a ocupar o espaço de último protetor do direito, o guardião das promessas[36].
A expansão do Judiciário é fomentada por um deslocamento das expectativas sociais com o Estado e da decepção com o poder público político.
III.3 Descentralização do sistema jurídico: delegação de poder normativo através da promulgação de princípios e cláusulas gerais
Além da possibilidade de acesso cada vez maior ao próprio STF e a inafastabilidade da jurisdição enquanto mandamento constitucional, que faz com que todo tipo de controvérsia possa ser apreciada por um juiz, e do supracitado fenômeno de uma constitucionalização abrangente, a dispor uma direção constitucional para (quase) todos os ramos do ordenamento jurídico, retirando a discricionariedade da política e trazendo para o âmbito do Direito, fato é que a Constituição Federal de 1988 e textos legais que a seguiram são frutíferos em princípios e cláusulas gerais, isto é, normas de alto grau de abstração/baixo grau de especificidade, o que, em um sistema de amplo acesso jurisdicional permite que a criação de direito seja feita em larga medida pelos tribunais.
Para compreensão deste fenômeno, recorre-se ao instrumental teórico da análise econômica do direito como ferramenta metodológica para compreender a escolha legislativa entre a promulgação de princípios e cláusulas abertas, ou de regras altamente específicas.
Neste ponto, Richard Posner e Isaac Ehrlich estudaram inicialmente a relação entre o grau de especificidade e a eficiência do comando normativo. No seu trabalho, a técnica legislativa de produção das normas jurídicas é compreendida à luz da eficiência, com enfoque consequencialista, isto é, discutindo em que condições a escolha por um comando normativo mais preciso ou geral é mais eficiente em termos de custo e benefício para a sociedade. Vejamos:
Devemos considerar nesta parte os benefícios e custos associados com opções diferentes ao longo do continuum entre a regra altamente específicas e tipos abertos altamente gerais e discutir a melhor escolha, isto é, a escolha que maximiza os benefícios em relação aos custos. Nossa análise será abstrata devido ao problema de medir os custos e benefícios relevantes e à ausência de uma contrapartida empírica facilmente identificável com o conceito de precisão da obrigação legal (é óbvio que simplesmente contar o número de regras em um área de direito não irá produzir uma medida confiável do mesmo).[37] (Tradução nossa).
Para os dois teóricos, a escolha legislativa de se a promulgar uma norma aberta[38] ou um conjunto de regras precisas é implicitamente uma escolha entre a regulamentação legislativa ou judicial. O tipo aberto cria uma demanda por especificação. Esta demanda é exercida sobre os tribunais através do processo judicial, que respondem criando regras que particularizam e especificam o tipo aberto promulgado. Assim, uma decisão legislativa de promulgar uma norma aberta (standard) ou uma regra específica (rule) exige uma avaliação da eficiência entre os custos e benefícios entre a especificação legislativa ou judicial (judge-made rules) da norma[39]. Confira-se, in verbis, a definição, por Richard Posner, da dicotomia rule-standard:
1. Para facilitar a exposição nós trataremos a especificidade-generalidade, como se fosse uma dicotomia entre "regras" e "standards". O termo "standard" denota em nosso uso um critério geral de escolha social; a eficiência (e sua contrapartida na terminologia jurídica, a razoabilidade) é um exemplo. Um standard indica os tipos de circunstâncias que são relevantes para uma decisão jurídica e, portanto, possuindo uma abertura semântica. Ou seja, ele não é uma lista de todas as circunstâncias que podem ser relevantes, mas é na verdade o critério pelo qual circunstâncias específicas apresentadas em um caso são julgadas relevantes ou não.
Em um caso de colisão automóvel regido pelo standard da vedação à negligência, estas circunstâncias seriam a velocidade e o peso dos veículos, o seu design, a hora do dia, o desenho da rodovia, o clima, e quaisquer outros fatores que possam afetar a questão de como o montante de custos dos acidentes esperados e os custos de evitar o acidente poderiam ter sido minimizados.
Uma regra retira do tomador de decisão uma ou mais circunstâncias que seriam relevantes para a decisão de acordo com um standard. Suponha que se for provado que o carro de trás, em uma colisão traseira, estava dirigindo a 100 pés do carro a sua frente, o motorista do carro seguinte será responsável pelos custos do acidente.
Esta é mais uma regra do que um standard porque, fosse o caso de ser decidida no âmbito do tipo aberto da negligência, outras circunstâncias além da distância entre os dois carros teriam de ser avaliadas, tais como a capacidade do condutor do carro precedente de evitar uma parada brusca. O tipo de regra mais simples, então, toma a seguinte forma: se X, então Y, onde X é um único, simples fato, determinado (por exemplo, a velocidade do carro) e Y é uma definida e inequívoca consequência jurídica - um julgamento acerca da responsabilidade ou não responsabilidade – decorrente diretamente da prova de X (por exemplo, que o motorista violou código de trânsito). Deve ficar claro, portanto, que estamos usando o termo "regra" em um sentido um tanto especial; "regra geral" seria uma contradição em nosso uso.
A diferença entre uma regra e um standard é uma questão de grau, o grau de precisão. O próprio standard da eficiência poderia ser considerado como a escolha social de uma regra projetada para implementar um standard mais amplo (a maior felicidade do maior número de pessoas), enquanto uma regra que exigisse a ponderação de muitas circunstâncias (ao contrário de nossa regra hipotética, que exigiu a ponderação de apenas um, a distância) seria como um standard.[40]
Da leitura dos supracitados autores, bem como adequando suas ideias em razão das peculiaridades do sistema jurídico brasileiro, podemos elencar como benefícios da promulgação de regras específicas:
1) Um conjunto detalhado e compreensível de regras resulta em um aumento na expectativa de ganho por realizar atividades socialmente desejáveis ao invés das indesejáveis. A clareza incentiva de maneira mais eficiente, visto que o preceito legislativo antecede o precedente judicial.
2) Abrangência da norma: a regra elaborada pelo legislador tem um âmbito mais vasto que a elaborada pelo judiciário ao interpretar os tipos abertos. Uma vez que as partes de um processo, ao definir as questões processuais, são geralmente indivíduos ou empresas individuais que não estão interessados na obtenção de uma regra geral, dessa forma, um tribunal tende a criar uma regra de limitada a situações muito semelhantes ao do caso em questão.
3) Previsibilidade: caso ocorra um litígio, se seu julgamento for determinado pela aplicação de uma regra ao invés de uma norma aberta, tornar-se-á mais fácil para as partes para prever o resultado.
4) Celeridade: em tese, a escolha legislativa em promulgar uma regra em vez de um tipo aberto afeta a velocidade e, portanto, indiretamente, os custos e benefícios da resolução de disputa judicial. Devido ao caráter sequencial de um julgamento, um aumento no número de questões a serem ajuizadas irá prolongar o julgamento. A decisão que se baseie em um princípio ou cláusula geral, portanto, terá um lapso temporal superior entre o incidente que deu origem a uma disputa legal e resolução judicial final da disputa, visto o trabalho jurisdicional de densificá-los.
Todavia, o mais importante é que a regulamentação através de regras (regulamentação legislativa), em tese, facilita o controle social dos tomadores de decisão (legisladores), em razão de os mesmos estarem submetidos à periodicidade do voto, o que não ocorre, em nosso ordenamento com os juízes, que gozam de vitaliciedade e cuja admissão se dá através de concurso público ou outros critérios de indicação que não o voto popular.
Por outro lado, também são apontados efeitos negativos relacionados à regulamentação exclusivamente ex ante, isto é, a normatização exclusiva pela via legislativa. Hans-Bernd Schäfer[41] aponta duas principais críticas à exclusividade da técnica legislativa das regras em um ordenamento, quais sejam, (1) a falta de flexibilidade e rápida obsolescência das decisões parlamentares e (2) a suscetibilidade à corrupção e a grupos de interesse presente no Legislativo.
Em relação à primeira crítica, regras específicas promulgadas pelo Legislativo não conseguem abarcar todas as situações e não são tão flexíveis. Consequentemente, regras precisas ficam desatualizadas devido a mudanças econômicas, técnicas e sociais, devendo conduzir a uma agitada atividade parlamentar para não se tornarem ineficientes e petrificadas com o decurso do tempo. Neste último caso, a simplicidade e segurança jurídica prevalecem ao longo do tempo, mas outros efeitos adversos de regras ultrapassadas são agravados.
Alguns campos estão sujeitos a mudanças frequentes como, por exemplo, normas de saúde e segurança, normas de auditoria ou regras que regulam indústrias e profissões. É improvável que o ativismo parlamentar possa criar um conjunto de regras que sejam fáceis de administrar e que possam ser frequentemente mudadas ao longo do tempo. Para estas áreas o centralismo parlamentar não é uma alternativa viável.
No tocante ao segundo ponto, qual seja, a maior suscetibilidade à corrupção e a grupos de interesse presente no Legislativo, é inegável que as normas expedidas pelo Legislativo nem sempre coincidem com o interesse público, visto que os grupos de pressão influentes podem induzir parlamentos a promulgar leis a seu favor. O mesmo seria verdadeiro para as agências reguladoras, cujas normas são muitas vezes tendenciosas em relação aos interesses dos grupos econômicos regulados. Assim, para o supramencionado autor, a legislação pode ser influenciada pela corrupção e pelos interesses da burocracia estatal.
O Judiciário, todavia, seria menos influenciável por grupos de interesse. Mesmo que partes do Judiciário sejam corruptas, é mais difícil de se influenciar as decisões do Poder Judiciário, em razão de sua estrutura de aprendizagem descentralizada, com inúmeros juízes, tribunais e órgãos de superposição, do que as emanadas pelo Parlamento.
Em sua obra, Schäfer defende que a criação da norma através dos tribunais (judge-made-law) poderia levar a soluções superiores em comparação com a norma criada pelo Legislativo, independente de todas as considerações sobre a divisão do trabalho entre o parlamento e do judiciário e do conhecimento diferente e especialização de juízes e membros do parlamento. A presente análise se dá de forma pragmática à luz da observação do funcionamento das democracias atuais, todavia, inegavelmente, não pode desprezar o papel fundamental exercido pelo Poder Legislativo enquanto representante ideal das vontades populares, que será realizado mais a frente.
Dessa forma, um sistema jurídico pode ser baseado em normas de alto grau de especificidade – regras (centralizado), ou baseado em normas de alto grau de abstração – princípios e cláusulas gerais (descentralizado).
Um sistema jurídico baseado em normas de baixo grau de especificidade (descentralizado), como cláusulas gerais e princípios, privilegia a densificação e construção normativa por parte dos órgãos jurisdicionais, enquanto um modelo de alto grau de especificidade normativa – formado majoritariamente por regras – concentra o poder de decisão no topo do sistema político. A opção por um sistema jurídico baseado em tipos abertos revela a preferência por um modelo ex post, que prioriza o juiz e não o legislador como produtor das normas jurídicas.
Percebe-se, então, que no tocante a este ponto, a expansão de poder do Judiciário dá-se diretamente por delegação do legislador, que, ao elaborar uma Constituição e leis densamente compostas de princípios e cláusulas abertas termina por abrir mão do poder de regulamentar a situação, promulgando princípios ou cláusulas gerais, para que o juiz, diante do caso concreto, densifique-os e concretize-os. O legislador, neste ponto, incentiva e estimula a discricionariedade judicial. A consequência inequívoca, é uma fronteira fluida entre o que é a tarefa de legislar e regulamentar e o que é a de julgar, aproximando política e direito, e permitindo-se diretamente a expansão da atividade judicial.
III.4 Mudança interna na concepção teórica do próprio Judiciário – adoção das teorias “pós-positivistas”
É possível afirmar, tendo por parâmetro a efetividade do texto constitucional, que o Brasil, em que pese as muitas cartas constitucionais que aqui vigoraram, teve, em relação aos países da Europa continental, o que se pode denominar de constitucionalismo tardio. Uma história de frustração do povo em relação a direitos que lhe foram enunciados, mas nunca verdadeiramente lhe concedidos.
A falta de efetividade das Constituições brasileiras é resultado do não reconhecimento da força normativa aos seus textos - a negação em dar-lhe aplicabilidade direta e imediata. A falta de vontade política e judicial de aplicar a Constituição.
O Min. Luís Roberto Barroso bem nos apresenta tal fato:
A experiência política e constitucional do Brasil, da independência até 1988, é a melancólica história do desencontro de um país com sua gente e com seu destino. Quase dois séculos de ilegitimidade renitente do poder, de falta de efetividade das múltiplas Constituições e de uma infindável sucessão de violações da legalidade constitucional. Um acúmulo de gerações perdidas.
A ilegitimidade ancestral materializou-se na dominação de uma elite de visão estreita, patrimonialista, que jamais teve um projeto de país para toda a gente. Viciada pelos privilégios e pela apropriação privada do espaço público, produziu uma sociedade com deficit de educação, de saúde, de saneamento, de habitação, de oportunidades de vida digna. Uma legião imensa de pessoas sem acesso à alimentação adequada, ao consumo e à civilização, em um país rico, uma das maiores economias do mundo.
(...)
Prevaleceu entre nós a tradição européia da primeira metade do século, que via a Lei Fundamental como mera ordenação de programas de ação, convocações ao legislador ordinário e aos poderes públicos em geral. Daí porque as Cartas brasileiras sempre se deixaram inflacionar por promessas de atuação e pretensos direitos que jamais consumaram na prática. Uma história marcada pela insinceridade e pela frustração.[42]
A promulgação da Constituição de 1988 foi acompanhada, nas décadas seguintes, de uma substantiva alteração da concepção teórica dos membros do Poder Judiciário, que passaram a se ver em um Poder que passou a ter a capacidade de efetivamente influir nos rumos do Estado.
A Carta de 1988 vem se demonstrando diferente das demais. Promulgada sob indiscutível critério democrático, é dotada de um lastro de legitimidade sem precedentes na história brasileira. Todavia, não obstante os inegáveis avanços políticos, jurídicos e institucionais trazidos pela Constituição de 1988, a doutrina começa a apontar excessos derivados, talvez, da incipiência e do deslumbramento causado com a redescoberta dos princípios pelo Poder Judiciário.
Ao longo da história do direito, os princípios jurídicos percorreram um longo caminho até se desgarrarem da noção de Direito Natural para alcançarem uma leitura que lhes atribuísse normatividade, expressando um conteúdo deôntico (estabelecendo obrigações, permissões ou proibições de condutas). O conceito de norma jurídica passa a ser formado por duas espécies distintas: as regras jurídicas e os princípios jurídicos.
Nesse sentido, Canotilho nos apresenta uma excelente síntese de diferenciação entre princípios e regras:
Grau de abstração: os princípios são normas com um grau de abstração relativamente elevado; de modo diverso, as regras possuem uma abstração relativamente reduzida; b) Grau de determinabilidade na aplicação do caso concreto: os princípios por serem vagos e indeterminados, carecem de mediações concretizadoras (do legislador ao juiz), enquanto as regras são susceptíveis de aplicação direta; c) Caráter de fundamentalidade no sistema das fontes do direito: os princípios são normas de natureza estruturante ou com papel fundamental no ordenamento jurídico devido à sua posição hierárquica no sistema das fontes (ex: princípios constitucionais) ou à sua importância estruturante dentro do sistema jurídico (ex: princípio do Estado de Direito); d) Proximidade da ideia de direito: os princípios são “standars” juridicamente vinculantes radicados nas exigências de justiça (Dworkin) ou na “ideia de direito” (Larenz); as regras podem ser normas vinculativas com um conteúdo meramente funcional; e) Natureza normogenética: os princípios são fundamentos de regras, isto é, são normas que estão na base ou constituem a ratio de regras jurídicas, desempenhando, por isso, uma função normogenética fundamentante.[43]
Hans-Bernd Schaefer, importante teórico da Análise Econômica do Direito, em sua obra Rule Based Legal Systems as Substitute for Human Capital. Should Poor Countries Have a More Rule Based Legal System?, também elabora um critério de distinção entre tipos abertos e regras. Confira-se:
As regras são comandos legais que diferenciam o comportamento lícito do comportamento ilícito de forma simples e clara. Standards, todavia, são disposições legais gerais, imprecisas e vagas, que exigem a tomada de uma decisão judicial complexa. Um limite de velocidade cuja violação leva a uma multa de $100 é uma regra, ao passo que uma norma para motoristas de carro para "dirigir com cuidado", cuja violação leva a danos compensação é um standard. Neste último caso, a norma jurídica deixa em aberto qual é exatamente o nível de diligência e como a compensação de danos deve ser calculada.[44](Tradução nossa).
Dessa forma, considerando autores oriundos de uma tradição jurídica romano-germânica, assim como é costumeiramente apontada a brasileira, teóricos como Parisi, Schäfer e Bobbio passaram a defender que a generalidade seria um critério suficiente para uma distinção, sendo os princípios normas dotadas de um grau de abstração e generalidade mais alto do que as regras.
Robert Alexy aponta tal tese como a “tese fraca” de separação entre regras e princípios, uma vez que se apoiaria em distinção meramente quantitativa (grau de abstração de cada espécie normativa).
A “tese forte” da separação entre regras e princípios, também denominada tese qualitativa, toma o modo de aplicação de cada espécie de norma como critério distintivo suficiente da separação. Para esta tese o critério da generalidade não é suficiente para aferir a distinção posto que incapaz de proporcionar uma diferenciação essencial. Para Alexy, a questão está em assentar a distinção por meio dos modos de aplicação de cada espécie normativa, bem como na forma de proceder em caso de conflito normativo.
Regras seriam diferentes dos princípios porque são aplicáveis na maneira do tudo-ou-nada (all-or-nothing-fashion). Destarte, a aplicação das regras envolve uma operação intelectual simples denominada de subsunção, não dando margem a maiores especulações teóricas. Regras são relatos objetivos e aplicáveis a um conjunto determinado de situações. A subsunção é o enquadramento dos fatos na previsão abstrata da norma, que produzirá o resultado jurídico.
Desta feita, a aplicação das regras se opera na modalidade tudo ou nada, isto é, ou regula a matéria em sua inteireza ou é descumprida. Uma regra somente deixará de incidir sobre a hipótese de fato que contempla se for inválida, se houver outra mais específica ou se não estiver em vigor.
Os princípios, como visto, possuem maior grau de abstração, não especificando diretamente a conduta a ser seguida, posto que constituem uma decisão política relevante a indicar a direção e não o caminho. Todavia, um ordenamento jurídico democrático se caracteriza por uma ordem pluralista a adequar em seu corpo valores e fundamentos contrapostos, resultados das influências e do poder de grupos de pressão consolidados ou em luta por sua consolidação. Dessa forma, a colisão de princípios faz parte da lógica do sistema, em razão de sua dialeticidade. O intérprete deve reconhecer aos princípios uma dimensão de peso e importância e à luz do caso concreto, devendo fundamentadamente, e preservando o máximo de cada um, aferir a vontade do texto. A aplicação dos princípios dar-se-á, em geral, pela técnica da ponderação.
A ponderação será a técnica de decisão jurídica aplicável aos casos difíceis (hard cases), onde a subsunção mostra-se insuficiente pois a situação concreta dá ensejo à aplicação de normas de mesma hierarquia e especialidade que indicam soluções diferenciadas. O método se dá através do sopesamento e balanceamento de bens, interesses e valores. Método este que ganhou importância na rotina da atividade jurisdicional hodierna[45].
Por isso, Alexy[46] firma existir uma dimensão de peso entre princípios nos casos de colisão, exigindo para sua aplicação um mecanismo de “proporcionalidade”. Assim, em face de uma colisão de princípios, o valor decisório será dado a um princípio que tenha no caso concreto maior peso relativo, sem que isso signifique invalidação ou descarte do princípio compreendido como de peso menor. O que garantiria a racionalidade da decisão, evitando que a aplicação do direito se torne mera preferência subjetiva do julgado, decisionismo.
Assim, para Alexy os princípios apresentam a natureza de mandamentos de otimização, e na sua colisão deve-se observar a técnica da ponderação. Vejamos:
(...) princípios são normas que ordenam que algo se realize na maior medida possível, em relação às possibilidade jurídicas e fáticas. Os princípios são, por conseguinte, mandados de otimização que se caracterizam porque podem ser cumpridos em diferentes graus e porque a medida de seu cumprimento não só depende de possibilidades fáticas, mas também de possibilidades jurídicas. (...) Por outro lado, as regras são normas que exigem um cumprimento pleno e, nessa medida, podem sempre ser somente cumpridas ou não. Se uma regra é válida, então é obrigatório fazer precisamente o que se ordena, nem mais nem menos. As regras contêm por isso determinações no campo do possível fático e juridicamente.[47]
A estrutura da proporcionalidade divide-se em três sub-regras quem devem ser analisadas em sequência: (i) adequação, (ii) necessidade e (iii) proporcionalidade em sentido estrito. A sequência deste procedimento teórico, uma construção alçada a partir de uma teoria da argumentação jurídica, seria capaz de conduzir a decisões judiciais dotadas sempre de racionalidade. A racionalidade alexyana possui, no entanto, inúmeros problemas irresolvidos, essencialmente no que diz respeito à flexibilidade conferida pelos princípios ocasionando uma amplíssima discricionariedade judicial.
A doutrina, ainda que de forma incipiente, vem criticando a forma como houve uma crença acrítica na adoção desta teoria, e na forma errônea como foi absorvida. Observe-se trecho da lavra de Fernandes que critica a internalização da sub-regra da adequação:
No Brasil, difundiu-se o conceito de adequação como aquilo que é apto a alcançar o resultado pretendido (ou seja, se a medida ou meio adotado é apto ao fim visado). Todavia trata-se de uma compreensão (apesar de majoritária na doutrina nacional) equivocada da sub-regra (ou máxima), derivada da tradução imprecisa do termo alemão fördern como alcançar, ao invés de fomentar, o que seria mais correto. Nessa leitura, “adequado, então, não é somente o meio cuja utilização um objetivo é alcançado, mas também o meio com cuja utilização a realização de um objetivo é fomentada, promovida, ainda que o objetivo não seja completamente realizado.Há uma grade diferença entre ambos conceitos, que fica clara na definição de Martin Borowski, segundo a qual uma medida estatal é adequada quando o seu emprego faz com que o ‘objeto legítimo pretendido seja alcançado ou pelo menos fomentado’.Dessa forma, uma medida somente pode ser considerada inadequada se sua utilização não contribuir em nada para fomentar a realização do objeto pretendido.[48]
O autor supracitado aponta a incorreção acima demonstrada na compreensão da subregra da adequação nas obras de Daniel Sarmento e Gilmar Ferreira Mendes[49].
A sub-regra da necessidade é entendida como uma imposição que é posta ao Poder Público para que adote sempre a medida menos gravosa possível para atingir determinado objetivo. Dessa forma, um ato que limita um direito fundamental só considerar-se-á necessário se para realização de seu objetivo pretendido não haja outra medida que limite em menor intensidade o direito.
Por fim, passa-se à análise da proporcionalidade em sentido estrito, apenas após a verificação de que o ato é adequado e necessário. Trata-se a proporcionalidade em sentido estrito de um raciocínio de sopesamento que se dá entre a intensidade da restrição que o direito fundamental irá sofrer e a importância do outro direito fundamental que lhe é colidente.
Assim acolheu majoritariamente a doutrina nacional. Vejamos síntese desse pensamento no voto do Ministro Gilmar Mendes no HC nº 82.424/RS:
(...) São três máximas parciais do princípio da proporcionalidade: a adequação, a necessidade e a proporcionalidade em sentido estrito. (...) há de perquirir-se, na aplicação do princípio da proporcionalidade, se, em face do conflito entre dois bens constitucionais contrapostos, o ato impugnado afigura-se adequado (isto é, apto para produzir o resultado desejado), necessário (isto é, insubstituível por outro meio menos gravoso e igualmente eficaz) e proporcional em sentido estrito (ou seja, se estabelece uma relação ponderada entre o grau de restrição de um princípio e o grau de realização do princípio contraposto) (...).[50]
A racionalidade alexyana possui, no entanto, inúmeros problemas irresolvidos, essencialmente no que diz respeito à flexibilidade conferida pelos princípios ocasionando uma amplíssima discricionariedade judicial.
Fernandes[51] critica o modo como a doutrina nacional adotou a tese de Robert Alexy, desenvolvendo a “crença” de que o método da ponderação a partir do critério da proporcionalidade seria capaz de assegurar decisões dotadas de racionalidade, de modo a evitar o decisionismo, bem como a incerteza e insegurança.
Assim, a mudança para um sistema jurídico descentralizado no Brasil (isto é, formado majoritariamente por normas abertas), vista com fascínio pela doutrina nacional começa a apontar para a possibilidade de abertura a decisões resultado de puro arbítrio, e dotadas de preferências pessoais dos juízes.
Ainda que de modo embrionário, alguns pesquisadores começam a identificar uma tendência ao uso ideológico e oportunista das normas abertas no judiciário, de maneira tal que a aplicação das mesmas vem deixando de refletir a lógica interna do sistema jurídico e passando a ser guiada por valores meramente pessoais dos operadores do direito, contribuindo, destarte, para o aumento da insegurança jurídica.
O fascínio aqui analisado acerca da normatividade dos princípios, que restou acompanhado pela maior parte da doutrina pátria, resultou em uma recepção acrítica e incompleta de teorias estrangeiras como a técnica da ponderação, a proporcionalidade e a argumentação jurídica, como observa Tomaz de Oliveira[52]. E que está sendo responsável pela transformação de nosso sistema jurídico em um ordenamento formado preferencialmente por tipos abertos.
No Brasil esses problemas se afiguram em tamanhos majorados, seja em razão de sua imaturidade institucional e incipiência democrática, ou mesmo por internalização acrítica, baseada em um senso comum equivocado, realizada do pós-positivismo.
O direito brasileiro vive hoje um cenário em que princípios vagos podem justificar qualquer decisão. Um ambiente de geleia geral que promove a deterioração da qualidade do debate jurídico, afastando o Direito ao trazer a arbitrariedade. Vejamos a opinião de Carlos Ari Vieira Sundfeld a respeito:
Hoje, fala-se o tempo todo em princípios no direito público brasileiro. Essa moda tem três razões principais. Indeterminações aparecem aos montes na (ainda recente e sempre mudando) Constituição de 1988 e nas novas leis e, como a fábrica de princípios lança produtos sem parar, o trabalho de absorvê-los é permanente e ruidoso. Em segundo lugar, as pessoas estão cada vez mais dispostas a levar os princípios a sério como fonte de Direito - e as dificuldades que isso propõe são enormes. Por fim, a operação de um sistema com tal índice de incerteza normativa gera muita confusão (saber se a confusão é positiva ou negativa: eis uma questão!). Não é de estranhar que os princípios estejam cada vez mais na berlinda.[53]
O neoconstitucionalismo no Brasil trouxe uma verdadeira proliferação de princípios em textos normativos e decisões judiciais. Em interessante pesquisa, Sundfeld aponta razões sociológicas para essa proliferação, notadamente no tocante aos textos normativos. Usa como exemplo a Lei Cidade Limpa, da cidade de São Paulo. Vejamos:
Na cidade de São Paulo, ao se resolver acabar com a poluição visual publicitária, a Lei Cidade Limpa, após mencionar ideias difusas como o direito à “percepção e compreensão dos elementos referenciais da paisagem”, disse com simplicidade: “fica proibida a colocação de anúncios publicitários nos imóveis” (Lei municipal n. 14.223/2006). Compare-se isso com outro texto, em que a mesma Municipalidade costuma fundamentar a exigência de que grandes empreendimentos privados custeiem obras viárias para compensar seu impacto no trânsito: “Quando a implantação de um empreendimento particular determinar a necessidade de execução de obras ou serviços relacionados à operação do sistema viário, o interessado arcará integralmente com as despesas decorrentes” (Lei municipal n. 10.506/1988). À primeira vista, essas regras têm estruturas semelhante, pois ambas impõem a alguém um comportamento, caso configurada certa hipótese. Mas a aparência é enganosa. O fato descrito na primeira é bem mais preciso que o outro. Dizer se algo é ou não um anúncio publicitário é incomparavelmente menos polêmico do que avaliar se o novo edifício exige ou não intervenções viárias, e estabelecer sua dimensão. Em virtude do elevado número de interrogações sem resposta, o segundo preceito tem um grau de indeterminação bem maior que o primeiro.
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Os direitos que chamamos de fundamentais são em geral previstos de modo muito incompleto, por meio de cláusulas gerais com alto grau de indeterminação, em formulações como “direito à vida”, “direito à liberdade”, “proibição de censura”, “inviolabilidade da intimidade” etc. O motivo histórico dessa indeterminação talvez não seja a dificuldade prática de o Constituinte fazer redações mais precisas. Afinal, para vários assuntos espinhosos, a linguagem da Constituição é exata, enquanto o significado do direito à vida nem o legislador consegue precisar totalmente. E qual a dificuldade? A falta de consenso político para textos mais exatos com certeza tem a ver com isso.
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Quem tem influência e poder consolidados consegue obter do legislador regras precisas para realizar seus interesses. Já os poderes em formação se valem da indeterminação normativa como uma luta pela afirmação.[54]
Essa passagem é bastante elucidativa para demonstrar como o uso de preceitos dotados de maior grau de indeterminação, com os princípios e as cláusulas gerais podem ser articulados no texto normativo para dificultar ou postergar a efetividade de um preceito. Como o próprio autor se questiona: como se avalia se o novo edifício exige ou não intervenção viária? No segundo caso, dos direitos fundamentais, como significar o direito à vida? As respostas podem ser construídas, no entanto, elas não estão no próprio texto, ficaram para depois. Consistem em um adiamento pragmático de decisões difíceis.
Assim, grupos com influência e poder consolidados obtêm normas precisas para assegurar seus interesses. Todavia, outros grupos com poderes em formação, conforme citado no texto, lutam muitas vezes para conseguir ao menos algo disposto em indeterminação legislativa, para perseguir muitas vezes judicialmente a concretização dessa norma.
Dessa forma, é ingenuidade encarar as indeterminações normativas, inclusive os princípios como imperfeições do sistema. Em algumas situações, são resultado, na verdade, da interação de grupos de poder no sistema legislativo. Os mais fortes conseguirão as regras precisas para manutenção de sua situação, os mais fracos conseguirão, haja vista a falta de apoio político e consenso, imprimir medidas mais abstratas e indeterminadas cuja efetividade dependerá de futura vontade política ou judicial. Em outras, constituem delegações legislativas diretas de construção da norma em face de situações i) moralmente controversas; ii) imprevisíveis.
De fato, temos que entender o poder que os princípios conferem a quem os interpreta, visto essas cláusulas, por seu conteúdo aberto e extremamente dependente da realidade subjacente. O princípio passa a demarcar uma moldura dentro da qual há múltiplas possibilidades interpretativas.
O deslumbramento inicial com a normatividade dos princípios no que diz respeito à sua ampla e múltipla abrangência devido à textura aberta e à potencialidade de atuação que oferece ao intérprete em razão de sua abertura semântica vem agora dar lugar a percepção o conteúdo da norma estará sujeito à concepção ideológica ou filosófica do intérprete, suas circunstâncias pessoais.
Assim, a adoção das teorias pós-positivistas no Brasil, em especial a racionalidade alexyana, vista com fascínio pela majoritária e acrítica doutrina nacional começa a apontar para a possibilidade de abertura a decisões resultado de puro arbítrio, e dotadas de preferências pessoais dos juízes.
Neste sentido, Fernandes[55] elenca, então, as seguintes críticas, em síntese, ao postulado da proporcionalidade: a) desnaturação do princípio da separação dos poderes; b) limitação da supremacia constitucional pela transformação dos Tribunais Constitucionais em verdadeiras Assembleias Constituintes (poder constituinte originário permanente); c) desnaturação dos direitos fundamentais e da unidade normativa da Constituição; d) politização do Judiciário, por meio de decisões utilitárias de custo/benefício sociais; e) abertura para decisões dotadas de puro arbítrio; f) abertura para decisões dotadas de preferências pessoais dos juízes (com a diluição da positividade-juridicidade da Constituição); g) irracionalidade metodológica.
De fato, temos que entender o poder que os princípios conferem a quem os interpreta, visto constituírem cláusulas com conteúdo aberto e extremamente dependente da realidade subjacente. O princípio passa a demarcar uma moldura dentro da qual há múltiplas possibilidades interpretativas.
O direito brasileiro vive hoje um cenário em que princípios vagos podem justificar qualquer decisão. Um ambiente de geleia geral que promove a deterioração da qualidade do debate jurídico, afastando o Direito ao trazer a arbitrariedade, o que também contribui diretamente para uma expansão de poder dos juízes, que como último intérprete do Direito, consegue manipular o sentido do texto jurídico, extraindo uma norma jurídica que muitas vezes extrapola os limites semânticos do mesmo, e que resulta em uma dilatação de poder do Judiciário.
O risco mais grave dessas técnicas hermenêuticas é à ampla discricionariedade judicial que conferem, sendo um convite ao exercício indiscriminado de ativismo judicial, deturpando o Direito. A arbitrariedade judicial que subverte a própria democracia.
Assim, percebe-se que o postulado normativo da proporcionalidade, metodologia de aplicação dos princípios, utilizado em um ordenamento jurídico cada vez mais formado por normas abertas, como cláusulas gerais e princípios, permite um agigantamento da função jurisdicional, tornando fluidas as fronteiras entre a interpretação judicial de uma norma e a própria criação judicial do direito, fator decisivo para compreender a ascensão de poder dos juízes no cenário institucional brasileiro atual.