Há um meme/piada que circula pela internet, assim constituído: "Alguém que leu a Constituição inteira, sabe se o Brasil morre no final?". A chacota parece bem descrever a realidade brasileira, especialmente se levarmos em conta os assaltos praticados por quem recebe auxílio-moradia e, ao mesmo tempo, deve ter zelo pelas leis e instituições. Afianço, contudo, que o Brasil não morrerá. E não morrerá por uma simples razão. Há mais de 500 anos tem sido saqueado e tem resistido bravamente. Logo, há elementos para crer que prosseguiremos mais um pouco.
E tal máxima parte de uma realidade nova, segundo a qual os verdadeiros crimes não são, necessariamente, os ilegais mas também os imorais. Em outros termos, pode haver ilicitude diante da imoralidade. Esses (crimes imorais) passam a ser vistos com olhos menos cândidos. Fala-se, nesse ponto, da corrupção legalizada, chaga essa das mais avassaladoras e que impede nações de progredirem.
Dos crimes noturnos: “crimes ilegais”
No Brasil, por séculos e séculos, nos preocupamos com os crimes ocorridos sem a presença do sol. Noite e crime eram siameses. Nada mais perigoso que o ladrão, no auge da madrugada, solapar um botijão de gás ou algo do gênero ou um arrombamento testemunhado pela lua. E o que dizer dos assaltos aos galinheiros encobertos pelo escurecer. A reprimenda era e é o degredo carcerário e social. Por muito tempo o famoso ladrão de galinha era responsável por todos os males.
Dos crimes diurnos: “crimes legalizados”
Atualmente tem-se voltado a crimes legalizados que, apesar de sempre provocarem enormes prejuízos à sociedade, eram, digamos assim, toleráveis e aceitáveis, afinal, eram realizados sem o manto da noite e praticados por pessoas, aparentemente, idôneas.
E, nesse ponto, os crimes legalizados ganham enfoque dado que começa-se a perceber que nosso problema não é aquele que furta o botijão de gás, que assalta para comprar crack, que rouba um galinheiro na madrugada, mas, sim, os crimes que ocorrem no calor do dia, com ares de legalidade, a exemplo do que ocorre com o auxílio-moradia pago, especialmente, para membros do Judiciário e do Ministério Público.
Segundo consta do relatório da Ação Ordinária 1.773, na qual se concedeu, de forma liminar, deferindo o auxílio-moradia, cuja relatoria ficou a cargo do ministro Luiz Fux:
Trata-se de ação de rito ordinário, com pedido de antecipação de tutela, ajuizada por Juízes Federais em face da União em que pretendem o reconhecimento do direito à ajuda de custo para fins de moradia prevista no inciso II do art. 65 da Lei Orgânica da Magistratura Nacional Loman (Lei Complementar nº 35/1979).
Alegam que, nada obstante o comando normativo que emerge do inciso II do art. 65 da LOMAN, nem todos os magistrados federais têm percebido o referido auxílio, arcando pessoalmente com os custos de habitação.
Afirmam que foram feitos sucessivos pedidos nesse sentido perante o Conselho da Justiça Federal e o Conselho Nacional de Justiça, sem êxito, seja porque foram indeferidos, seja, também, porque simplesmente não foram ainda examinados.
Aduzem que: No âmbito do Supremo Tribunal Federal, o direito ao auxílio-moradia aos magistrados tem logrado entendimento de ser devido em sua ampla extensão, mesmo aos magistrados que dispõem de residência própria, sendo óbice à percepção daquela verba apenas o fato de o magistrado ocupar imóvel funcional, consoante fundamentos consignados no voto proferido pelo Min. Marco Aurélio, Relator do MS 26.794/MS.
Sustentam, ainda, que todos os magistrados convocados em auxílio no Supremo Tribunal Federal, Superior Tribunal de Justiça, Conselho Nacional de Justiça e no Conselho da Justiça Federal fazem jus à percepção do auxílio-moradia durante o período daquela convocação.
Requerem sejam antecipados os efeitos da tutela para que se determine o imediato pagamento, em favor dos Autores, da verba indenizatória denominada ajuda de custo para fins de moradia, prevista no art. 65, II, da LOMAN, no valor máximo já estabelecido, ou, caso assim não se entenda, no valor correspondente ao dispêndio efetuado pelos Autores com aluguéis ou hospedagem, observado o requisito estabelecido no referido dispositivo legal.
Para defender a necessidade de antecipação da tutela, os autores alegam que a parcela indenizatória sub judice é de natureza alimentar, de extrema relevância, ainda mais se considerada a impossibilidade de o Juiz Federal exercer qualquer outro tipo de atividade remunerada, salvo o magistério.
Por outro lado, aduzem que a medida pleiteada apresenta caráter reversível, uma vez que os valores eventualmente antecipados poderão ser restituídos mediante desconto em folha caso a ação venha a ser julgada improcedente.
Por sua vez, em suas razões de decidir, o ministro Fux, após longo arrazoado, declinou que:
Ex positis, e considerando, primordialmente, que o CNJ já reconhece o direito à ajuda de custo para fins de moradia aos magistrados e Conselheiros que lá atuam, ex vi da sua Instrução Normativa nº 9, de 8 de agosto de 2012, tendo em vista que todos os magistrados desta Corte têm o direito à ajuda de custo assegurado por ato administrativo, haja vista que os Membros do Ministério Público Federal, inúmeros Juízes de Direito e Promotores de Justiça já percebem o referido direito, e em razão, também, da simetria entre as carreiras da Magistratura e do Ministério Público, que são estruturadas com um eminente caráter nacional, DEFIRO a tutela antecipada requerida, a fim de que todos os juízes federais brasileiros tenham o direito de receber a parcela de caráter indenizatório prevista no artigo 65, inciso II, da LC nº 35/79, aplicandose como regra aplicável para a concessão da referida vantagem,: i) o artigo 65 da LOMAN ora referido, que, apenas, veda o pagamento da parcela se, na localidade em que atua o magistrado, houver residência oficial à sua disposição; ii) os valores pagos pelo STF a título de auxíliomoradia a seus magistrados.
A fim de que não haja dúvidas na implementação desta liminar pelos Tribunais Regionais Federais brasileiros, a ajuda de custo assegurada por esta medida liminar deverá ser paga a todos os juízes federais na forma da Lei Orgânica da Magistratura Nacional, inclusive nos casos de acumulação, e salvo em favor do magistrado federal a quem tenha sido disponibilizada a residência oficial. Aduza-se que os efeitos da presente liminar serão contados a partir da sua publicação.
Em suma, porque determinadas pessoas já recebiam o auxílio-moradia houve uma extensão a rodo, pouco importando se o beneficiário possuía ou não casa própria. O único critério era ser juiz ou membro do MP.
Não obstante a isso, os motivos determinantes para a autoconcessão da benesse seria o custeio da moradia. Contudo, é fato corrente, assumido por quem recebe o benefício, que o intuito é a complementação salarial.
Nesse tocante ilustrativa reportagem, segundo a qual:
O juiz Sérgio Moro, responsável pela Operação Lava Jato em Curitiba, disse que recebe auxílio-moradia, mesmo tendo imóvel na capital paranaense, como complementação salarial. Segundo ele, a medida se faz necessária pela falta de reajuste para a categoria. “O auxílio-moradia é pago indistintamente a todos os magistrados e, embora discutível, compensa a falta de reajuste dos vencimentos desde 1º de janeiro de 2015 e que, pela lei, deveriam ser anualmente reajustados”, justificou o juiz ao Globo. [Disponível em http://congressoemfoco.uol.com.br/noticias/moro-diz-que-recebe-auxilio-moradia-para-compensar-falta-de-reajuste]
Bastante comprometedora tal afirmação. Afinal, se tal benefício tem a forma de auxílio-moradia, mas materialmente é um aumento por conta de falta de reajuste, podemos estar saindo do campo da moralidade e adentrando no campo penal, mais especificamente no crime de peculato. Burlam-se os trâmites legais, não obstante a ideia de quem recebe subsídio é justamente não ter direito a penduricalhos.
Aliás, se a Câmara dos Deputados, por qualquer via, receber um pedido de Impeachment com base nas ponderações supra, podemos ter um impedimento em massa, especialmente da cúpula do Judiciário.
Outrossim, ultrapassados quase 04 (quatro) anos de seu deferimento, o mérito acerca do auxílio-moradia será julgado. Há esperança que tal aberração seja corrigida.
Aos que prosseguiram na leitura, logicamente têm um questionamento inevitável: qual a relação de Jojo Todynho (Que tiro foi esse) com o presente artigo? Explica-se.
Inicialmente a música intitulada "que tiro foi esse" foi interpretada como uma apologia ao crime, quando em verdade era uma homenagem ao público LGBT1. Há casos de proibição de execução da referida letra, baseada na primeira interpretação2.
No que toca à correta interpretação acerca do auxílio-moradia, é certo que muitos crimes encontram-se legalizados e que os grandes rombos acontecem com o sol a pino.
Enfim, aguardemos a decisão de mérito. Talvez lá o ministro Luiz Fux possa explicar "que tiro foi esse".
Notas
1 https://www.dicionariopopular.com/que-tiro-foi-esse/
2 https://g1.globo.com/al/alagoas/noticia/que-tiro-foi-esse-e-proibida-pela-prefeitura-no-carnaval-de-joaquim-gomes-al.ghtml