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Subsídios para a proteção da biodiversidade e do conhecimento tradicional

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12/03/2005 às 00:00
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VIII– Subsídios para Tutela do Conhecimento Tradicional e da Biodiversidade

            Primeiramente, é necessário legislar normas que tenham validez internacional (30), de forma a assegurar a soberania dos paises megadiversos sobre o seu patrimônio genético (e o conhecimento tradicional a ele associado). Encontra-se uma lacuna no aparato legal institucional no que diz respeito a entraves de conciliação entre os dois grandes documentos jurídicos concernentes a propriedade intelectual no mundo, quais sejam, a CDB (Convenção sobre Diversidade Biológica) e o TRIPs (Acordo Sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio). Vemos impossível a hermenêutica conciliadora de pontos cruciais entre eles, como insistem os exegetas.

            Imprescindível é a alteração do artigo 27 do TRIPs. Este impõe somente os requisitos de novidade, atividade inventiva e aplicação industrial, para a proteção patentária de qualquer invenção, de produto ou processo em qualquer setor tecnológico. Deve-se incluir dentre os requisitos das patentes biotecnológicas, químicas e farmacológicas (ademais de qualquer outra atividade cientifica que envolva biodiversidade e conhecimento tradicional) a comprovação, através de documento de órgão Federal (CGEn, por exemplo): I - do consentimento prévio da comunidade tradicional; II - da repartição justa e eqüitativa dos benefícios oriundos da exploração comercial do produto ou processo obtido (garantindo, por exemplo, determinada parcela de royalties àquela comunidade) ; III - além da identificação do material genético e do conhecimento tradicional associado. Assim, os princípios preconizados pela CDB fariam parte das regras da Organização Mundial de Comércio, dessa forma cumprindo o desejado "comercio legítimo" (expresso no preâmbulo do TRIPS). Países tecnológicos não mais se beneficiariam pelo sistema internacional de propriedade intelectual, que muitas vezes tem efeitos perniciosos ao impedir que práticas milenares, das comunidades locais, fossem impedidas de serem aplicadas, por elas próprias, sob o manto de legalidade (31).

            Países resistentes a este tipo de mudança (como o Japão e o Canadá), que envolve calorosos debates na Organização Mundial do Comércio e na Organização Mundial da Propriedade Intelectual, encabeçados pelos EUA, resistem fortemente porque não lhes interessa em nada. Muito ao contrario esta mudança pode impedir o livre e ilegal acesso aos paises ricos de natureza (mas insipientes institucionalmente). Inclusive, a potência tecnológica mundial, usando-se de seu poder político-econômico (como já foi supra explanado), incluiu, no texto do acordo, sanções àquelas nações que enumerassem outros requisitos normativos além dos ali dispostos, ciente de que isso clamado pelas nações em desenvolvimento.

            Ao envolver comunidades tradicionais em relações econômico-jurídicas enfrentamos a dificuldade de respeitar integralmente a sua cultura (entenda-se da maneira mais ampla, das vestimentas a religião) (32). De fato, todos ali são seres humanos e merecem tratamento digno (33), respeitoso e, acima de tudo condizente com a sua condição de hipossuficiência; razão pela qual se faz necessário uma instituição governamental (sempre acompanhada do Ministério Publico nas lides processuais), lhes auxiliando e representando, dedicada à função constitucional (art. 215 e 216) de garantir o patrimônio cultural brasileiro contra a usurpação estrangeira (biopirataria) Assim, o principio da isonomia (igualar os desiguais) seria efetivado (34).

            A dificuldade aumenta ao observar que muitas comunidades no Brasil vivem no sistema de produção que a escola marxista denominou comunal primitivo. É o sistema econômico que determina as relações sócio-juridicas, assim como, na maioria das vezes, a cosmovisão (35) (poder ideológico de organização) desta sociedade. Não há, para eles, propriedade privada, por isso é impossível proteger o conhecimento milenar através do sistema atual de propriedade intelectual (grifo meu) (36). Este saber, indispensável para a sobrevivência da comunidade, não tem dono, portanto inapropriável individualmente pelo sistema exposto no TRIPS, que traz em preâmbulo: "os direitos de propriedade intelectual são direitos individuais" (37) Os saberes ancestrais não são propriedade, muito menos individuais: são direitos coletivos, de interesse nacional.

            Deve ser criado, a exemplo da experiência de alguns paises andinos (como a Venezuela e Peru) (38), um sistema de catalogação (espécie de banco de dados) que permita a ciência dos saberes relacionados a biodiversidade e os elementos do patrimônio natural com potencial econômico. Dessa maneira, reduzir-se-ia enormemente a biopirataria, no momento em fosse identificada a utilização indevida daquele determinado saber e/ou elemento natural. Essa deveria ser uma ação conjunta dos paises amazônicos, para haver a completude que exige a estruturação deste sistema de proteção. No âmbito nacional, consideramos como uma missão constitucional para a proteção do patrimônio cultural e da integridade do patrimônio genético (arts. 216, 1° e 225, 1° inc. II, 4°). Essa proteção não teria prazo de vigência, como a das patentes (39).

            Como punição aos infratores, extinguiria-se a possibilidade de obter informações do banco informacional, mesmo mediante pagamento e garantia de retornos em prol do social, ou de se proteger qualquer invenção oriunda desse conhecimento, por falta de requisito de patenteabilidade, qual seja, a permissão da comunidade tradicional.

            O conhecimento tradicional, pelo fato de ter sido sempre utilizado para o bem comum de toda a coletividade, deve, dentro desta hiper-complexa relação inter-cultural, encaixar-se como exemplo de intervenção racional moderada do homem na natureza, extraindo sem exterminar os recursos não-renováveis (objetivo que urge conscientização global imediata (40)), assim como auxilio as pesquisas biotecnológicas, principalmente as relacionadas às atividades curativas; desde que parte da sua utilização seja direcionado a melhoria da qualidade de vida da própria comunidade e da população em geral (41). (grifo meu) Aplica-se, assim, concretamente o princípio da função social da propriedade; que impõe o bem coletivo sobre o individual (42).

            A fim de abrandar a enorme distancia tecnológica que existe entre o nosso País e os desenvolvidos, deve haver a presença de instituição publica em toda pesquisa que envolvesse biotecnologia. Assim, conheceríamos nosso patrimônio. Da mesma forma, a cooperação internacional justa, com a devida repartição de benefícios (que não são só pecuniários) capacitaria recursos humanos. Além disso é cogente acometer capital no desenvolvimento de infra-estrutura que possibilite a pesquisa local. Exatamente para adquirir a "autonomia tecnológica" que nos traz a Constituição (art. 219).

            Para tanto, urge a gestão estratégica da propriedade intelectual. O sistema de propriedade intelectual tem muitos benefícios que devem ser abraçados. As patentes, como fonte de informação cientifica, contribuem enormemente para o avanço cientifico, ao divulgar o que há de mais novo no estado de técnica atual, demonstrando e descrevendo o invento para que possa ser superado.


IX - Conclusão: Irresignação Colonial

            Cinco séculos atrás Cristóvão Colombo chegava nas Américas com a autorização expressa do Estado e da Igreja de apropriar-se de todas as terras não ocupadas ou controladas por qualquer rei ou príncipe cristão. As terras do novo mundo, muito embora não pertencessem a Igreja Católica, foram "doadas" aos descobridores, que tinham a insigne missão de "ocupação efetiva" das "terras vacantes", assim como a incorporação dos "selvagens" ao cristianismo, "onde quer que se encontrem e qualquer que seja o credo que adotem".

            As jurisprudências canônicas (como a "Bula de Doação" de 1493) iniciaram a colonização das Américas, colocando todos os povos não-cristãos numa situação colonial de servidão e obediência.

            Hodiernamente, impérios continuam a dominar aqueles que não adotam o sistema ocidental de produção (civilizado, moderno, industrial e eficiente), submetendo-os a posição inferiorizada no mercado global (43).

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            O primeiro biopirata do Brasil foi certamente Pedro Álvares Cabral. Os corsários modernos adquirem sutilmente a biodiversidade, utilizando-se da fraqueza institucional que permite a condição de colônia (44).

            O problema das crises institucionais de nosso país pode ser considerado um legado histórico de nossa época colonial, que permanece tatuado em nosso sistema político (45). Como amazonida acredito que devo mobilizar minha atenção para os fatos que impedem o progresso do meu país, convidando todos a aceitarem esse desafio intelectual.

            O direito, longe de ser um fim em si mesmo, deve incessantemente almejar a justiça, para ser socioemancipatório.

            Estou consciente da dificuldade da implementação das medidas aqui aludidas, no entanto o objetivo aqui foi apontar os subsídios. Todo processo de cambio de mecanismos jurídicos, por envolver diversas conjecturas sociais (econômicas e políticas), demanda esforço hercúleo, o que não nos desanima.

            Vejo a utopia como o horizonte. Quanto mais dele se aproxima mais se distancia. A razão de ser utópico é o constante movimento em busca de novos horizontes.


X – Referencias Bibliográficas

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Sobre o autor
Victor Sales Pinheiro

Acadêmico do curso de Direito do Centro Universitário do Pará – CESUPA, bolsista do Núcleo de Propriedade Intelectual – NUPI e pesquisador sobre Patentes Biotecnológicas

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PINHEIRO, Victor Sales. Subsídios para a proteção da biodiversidade e do conhecimento tradicional. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 612, 12 mar. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/6399. Acesso em: 2 mai. 2024.

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