Crime e costume na sociedade selvagem

Resumo da Obra de Bronislaw Malinowski

08/02/2018 às 12:17

Resumo:


  • A obra de Bronislaw Malinowski desmistifica a noção de que sociedades primitivas são regidas apenas por costumes exóticos e cruéis, destacando a existência de leis e ordem em usos tribais.

  • Malinowski argumenta que a jurisprudência primitiva, apesar de ter sido negligenciada pela antropologia, apresenta complexidade e sofisticação, com leis civis e criminais que regem a vida das sociedades selvagens.

  • O texto aborda a tensão entre a lei e os costumes, a coerção social, e o respeito pelos direitos, evidenciando que a obediência às regras nessas sociedades é influenciada por motivos psicológicos e sociais complexos, e não apenas por medo de punição ou conformismo.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

Trata-se de um resumo circunstanciado da Obra "Crime e Costume na Sociedade Selvagem" do autor Bronislaw Malinowski.

No presente texto o autor Bronislaw Malinowski inicia enfatizando que o  estado selvagem continua sendo sinônimo de costumes exóticos, cruéis e excêntricos, com superstições curiosas e práticas chocantes. A liberdade sexual, o infanticídio, a caça de cabeças, a couvade, o canibalismo e sabe-se lá mais o que fizeram da antropologia leitura atraente para muitos e para outros assuntos mais digno de curiosidade do que de seriedade acadêmica.

A lei e a ordem permeiam os usos tribais das raças primitivas, regem o curso monótono da existência cotidiana e também os atos mais importantes da vida pública, sejam estes estranhos e sensacionais ou importantes e veneráveis. Entretanto, de todos os ramos da antropologia, a jurisprudência primitiva tem recebido a menor e menos satisfatória atenção.

Nem sempre a antropologia foi tão indiferente à justiça selvagem e aos métodos de sua administração como no presente. Há cerca de meio século houve urna verdadeira epidemia de pesquisas sobre a lei primitiva, especialmente no continente europeu.  No continente europeu, a maioria dos esforços no estudo da jurisprudência antropológica estava direcionada - ou melhor, era desperdiçada - na tarefa de provar que as teorias de Morgan estavam certas.

A lacuna da antropologia moderna não se deve a um descuido em relação à legalidade primitiva, mas, pelo contrário, ao excesso de ênfase. Por mais paradoxal que soe, ainda é verdade que a antropologia do presente deixa de lado a lei primitiva justamente porque tem uma ideia exagerada e, acrescentarei logo, equivocada de sua perfeição.

No que tange a submissão automática ao costume e o problema real, o autor menciona que a ameaça de coerção e o medo da punição não afetam o homem comum, seja ele selvagem ou civilizado, enquanto, por outro lado, são indispensáveis em qualquer sociedade em relação a certos elementos turbulentos ou criminosos. Além disso, há certo número de leis, tabus e obrigações em toda cultura humana que muito pesa sobre todos os cidadãos, exigindo grande auto sacrifício, que é obedecido por razões morais, sentimentais ou reais, embora sem qualquer "espontaneidade".

Neste caso, a extrema dificuldade do problema reside na natureza muito complexa e difusa das forças que constituem a lei primitiva. Habituados como estamos a um mecanismo definido de ordenação, administração e cumprimento da lei, procuramos algo análogo em urna comunidade selvagem e, não encontrando nenhum arranjo similar, concluímos que toda lei é obedecida por essa misteriosa propensão do selvagem a obedecê-la.

Parece-nos que a antropologia está diante da mesma dificuldade superada por Tylor em sua "definição mínima de religião". Definindo as forças da lei em termos de urna autoridade central, códigos, tribunais e polícia, devemos chegar à conclusão de que em uma comunidade primitiva a lei não precisa ser imposta, é obedecida espontaneamente. O selvagem às vezes transgride a lei, embora rara e ocasionalmente já tenha sido registrado por observadores e levado em conta pelos fundadores da teoria antropológica, que sempre sustentaram que a lei criminal é a única lei dos selvagens.

 Entretanto, sua observância das regras da lei, em condições normais, quando seguida e não desafiada, é, na melhor das hipóteses, condicional, parcial e sujeita a evasivas; a lei não é imposta por nenhum motivo indiscriminado, como o medo da punição ou a submissão geral a todas as tradições, mas por incentivos psicológicos e sociais muito complexos - e tudo isso é uma situação que até agora a moderna antropologia deixou completamente de lado.

As condições tornam-se ainda mais complexas em virtude do fato de proprietários e membros da tripulação ter o direito de transferir seus privilégios a qualquer parente ou amigo. Isso é comum, mas sempre por uma compensação ou uma remuneração. Para um observador que não apreenda todos os detalhes e não acompanhe todas as complexidades de cada transação, essa situação é muito parecida ao comunismo: a canoa parece ser propriedade conjunta de um grupo e indiscriminadamente usada por toda a comunidade.

Na maioria dos casos, só uma pequena proporção permanece com os aldeões. Normalmente, encontraremos pessoas de alguma comunidade do interior esperando na praia. Estas recebem lotes de peixe dos pescadores e levam-nos para casa, às vezes a milhas de distância, correndo, para chegar com o peixe ainda fresco. Aqui mais uma vez encontramos um sistema de serviços e de obrigações mutuas baseado em um acordo permanente entre duas comunidades. A aldeia do interior fornece legumes e verduras aos pescadores, e a comunidade costeira paga em peixes.

As velhas teorias da dicotomia tribal, as discussões sobre as "origens" das "fratrias" ou "metades" e da dualidade nas subdivisões tribais jamais chegaram às bases internas ou diferenciais do fenómeno externo da meação. O recente tratamento da "organização dual" dado pelo falecido Dr. Rivers sua escola sofre gravemente do defeito de procurar causas obscuras em vez de analisar o fenômeno em si. O princípio dual não é resultado de nenhuma "fusão" nem de "cisão" ou de qualquer outro cataclismo sociológico. Ele resulta integralmente da simetria interna de todas as transações sociais, da reciprocidade de serviços, sem o que nenhuma comunidade primitiva poderia existir.

Assim a utilidade, da ocupação, o desejo de uma alimentação boa e fresca e, talvez, acima de tudo, a atração pelo que é para os nativos um esporte intensamente fascinante os impelem de maneira mais óbvia, mais consciente e mais fortemente do que o que descrevemos como obrigação legal. A coerção social, o respeito pelos direitos em vigor e pelas reivindicações dos outros predominam sempre, tanto na mente elos nativos como em seu comportamento, uma vez bem compreendidos.

É também indispensável assegurar o harmonioso funcionamento ele suas Instituições. A despeito de todo o entusiasmo e das atrações, em cada ocasião há alguns indivíduos indispostos, mal-humorados, obcecados por algum interesse estranho - muitas vezes por alguma intriga -, que gostariam de fugir às obrigações, se pudessem.

Compreende-se neste caso que como as regras da lei, regras de caráter inequivocamente obrigatório, sobressaem às regras simples dos costumes. Podemos também ver que a lei civil, consistindo em disposições categóricas, é muito mais desenvolvida do que o conjunto das simples proibições e que o estudo exclusivo da lei criminal entre os selvagens omite os fenômenos mais importantes de sua vida legal.

Às relações econômicas, pois a lei civil basicamente se ocupa com a propriedade e com a riqueza, tanto entre os selvagens como entre nós. Não obstante, poderíamos encontrar o aspecto legal em qualquer outro domínio da vida tribal. Tomem-se, por exemplo, os atos mais característicos da vida cerimonial - os ritos de luto e pesar pelos mortos. Naturalmente, à primeira vista percebe-se seu caráter religioso: são atos de piedade pelos falecidos, causados pelo temor, por amor ou por solicitude pelo espírito do defunto. São manifestações rituais e públicas de emoção, que também fazem parte da vida cerimonial da comunidade.

Entretanto, tomada isoladamente, fora de seu contexto, cada transação parece desprovida de sentido, intoleravelmente onerosa e sem nenhum significado sociológico, além de, sem dúvida alguma, "comunista"! O que poderia ser economicamente mais absurdo do que essa distribuição indireta dos produtos hortigranjeiros, em que cada homem trabalha para sua irmã e, por sua vez, tem de confiar no irmão de sua mulher, em que aparentemente mais tempo e mais energia são gastos na ostentação, na exibição e no deslocamento dos gêneros, do que no trabalho real?

No entanto, uma análise mais detida mostra que algumas dessas ações aparentemente desnecessárias são poderosos incentivos econômicos, que outras proporcionam a força aglutinadora da lei, enquanto outras ainda são resultado direto das ideias nativas sobre parentesco. Também está claro que podemos entender o aspecto da lei nessas relações se as examinamos na íntegra, sem realçar exageradamente qualquer elo em especial na cadeia dos deveres recíprocos.

A verdadeira razão pela qual todas essas obrigações econômicas são respeitadas, e muito escrupulosamente respeitadas, é que a falta de cumprimento deixa um homem em posição intolerável e a tibieza em seu cumprimento cobre-o de opróbrio. O homem que persistentemente desobedece às regras da lei em seus tratos econômicos, logo se encontra fora da ordem econômica e social - e ele tem perfeita consciência disso.

O cidadão honrado deve cumprir seus deveres, mas a submissão não se deve a nenhum instinto, impulso intuitivo ou misterioso "sentimento de grupo", mas ao complexo funcionamento detalhado de um sistema, em que cada ato tem seu próprio lugar e deve ser realizado sem falha. Embora nenhum nativo, por mais inteligente que seja, possa formular essa situação de um modo geral abstrato ou apresentá-la como teoria sociológica, todos têm consciência de sua existência e podem prever as consequências em cada caso concreto.

Todos os atos que normalmente seriam considerados mais religiosos do que mágicos - cerimônias de nascimento ou de casamento, ritos de morte e de luto, veneração das almas, dos espíritos ou de personagens míticos - têm um lado legal, claramente exemplificado nos casos dos rituais funerários citados. Todo ato importante de natureza religiosa é concebido como obrigação moral para com o objeto, a alma, o espírito ou o poder reverenciado; também satisfaz qualquer desejo emocional de seu executante.

O autor discorre sobre a reciprocidade como base da estrutura social, reformulando toda a nossa perspectiva e observando as questões do ponto de vista sociológico, isto é, tomando um aspecto da constituição da tribo depois do outro, em vez de examinar os diversos tipos de suas atividades tribais. Séria possível mostrar que toda a estrutura da sociedade das Ilhas Trobriands se fundamenta no princípio do status local. Entende-se por isso que os direitos do chefe sobre os homens do povo, do marido sobre a mulher, dos pais sobre os filhos e vice-versa não são exercidos arbitrária e unilateralmente, mas segundo regras definidas, arranjadas em cadeias muito bem equilibradas de serviços recíprocos.

No grupo de parentesco mais próximo, as rivalidades, as dissensões e o egoísmo mais agudo florescem e dominam toda a tendência das ações de parentesco. A esse ponto voltarei mais adiante, pois são necessários mais fatos, indiscutivelmente mais eloquentes, para demolir esse mito do comunismo de parentesco, da perfeita solidariedade no grupo de descendência direta, mito este recentemente ressuscitado pelo Dr. Rivers que assim corre certo risco de se tornar moeda corrente.

Pertinente salientar que, as regras do costume são obedecidas pelo selvagem por simples incapacidade de rompê-las, não se pode dar nenhuma definição da lei, não se pode fazer nenhuma distinção entre as regras da lei, da moral e dos outros usos. A única maneira que temos cie classificar as regras de conduta é tomando como referência as sanções e os motivos pelos quais são impostas. Assim, com o pressuposto de uma automática obediência a todos os costumes, a antropologia tem de renunciar a qualquer tentativa de ordenar e classificar os ratos, que é a primeira tarefa da ciência.

A força do hábito, a reverência, pela autoridade tradicional e um apego sentimental a isso, o desejo de satisfazer a opinião pública - tudo se combina para fazer com que o costume seja obedecido pelo próprio mérito. Nisso, os "selvagens" não diferem de nenhuma comunidade fechada com um horizonte limitado, seja um gueto da Europa Oriental, uma faculdade de Oxford ou uma comunidade fundamentalista do Meio oeste norte-americano. O amor pela tradição, o conformismo e a influência do costume só respondem muito parcialmente pela obediência às regras entre os professores, os selvagens, camponeses e os junkers.

Há também normas relativas ao que é sagrado e importante, regras do ritual mágico, da pompa funerária e afins. Basicamente, essas são respaldadas por sanções sobrenaturais e pelo forte sentimento de que não se deve brincar com as questões sagradas. Uma força moral igualmente poderosa sustenta determinadas regras de conduta pessoal em relação aos parentes próximos que integram o ambiente doméstico e outros por quem se nutrem grandes sentimentos de amizade, lealdade ou devoção, que resguardam os ditames do código social.

As regras da lei sobressaem ao resto porque são sentidas e consideradas obrigações de uma pessoa e justos direitos de outra. São sancionadas não por um simples motivo psicológico, mas por um mecanismo social definido de força compulsória, baseado, como sabemos, na dependência mútua e realizado no arranjo equivalente de serviços recíprocos e na combinação desses direitos em correntes de relacionamento múltiplo. A maneira cerimoniosa em que a maioria das transações é conduzida, acarretando critica e controle público, aumenta ainda mais sua força compulsória.

"A lei civil", lei formal que rege todas as fases da vida tribal, consiste de um conjunto de obrigações consideradas corretas por um grupo e reconhecidas corno dever pelo outro, mantida em vigor por um mecanismo determinado de reciprocidade e publicidade inerente à estrutura de sua sociedade. Essas regras da lei civil são elásticas e têm certa amplitude. Elas não apenas apresentam penalidades pelas falhas, mas prêmios pelo excesso no seu cumprimento. Seu rigor é assegurado pela avaliação racional de causa e efeito pelos nativos, aliada a uma série de sentimentos sociais e pessoais, como a ambição, a vaidade, o orgulho, o desejo de aperfeiçoamento pessoal pela exibição, além de apego, amizade, dedicação e lealdade aos parentes.

É quase desnecessário acrescentar que a "lei" e os "fenômenos da lei", como os descobrimos, descrevemos e os definimos em uma parte da Melanésia, não são instituições independentes. A lei antes representa um aspecto da vicia tribal, um lado de sua estrutura, mais do que um arranjo social independente, fechado. A lei não reside em um sistema especial de decretos, que prevê e define possíveis formas de contravenção e provê barreiras e reparos apropriados. A lei é o resultado da configuração de obrigações que impossibilitam o nativo de esquivar-se à sua responsabilidade sem sofrer por isso no futuro.

Na jurisprudência antropológica moderna, pressupõe-se universalmente que todo o costume é lei para o selvagem e que ele não tem outra lei senão a de seus costumes. Repito que todos os costumes são obedecidos automática e rigidamente por pura inércia. Não existe nenhuma lei civil ou equivalente nas sociedades selvagens. Os únicos fatos relevantes são as ocasionais transgressões em desafio aos costumes: os crimes. Não há nenhum mecanismo de imposição das regras primitivas de conduta, exceto a punição do crime flagrante.

Portanto, a moderna antropologia esquece e às vezes até nega explicitamente a existência de qualquer arranjo social ou de quaisquer motivos psicológicos que façam o homem primitivo obedecer a uma determinada categoria de costumes por motivos puramente sociais. Segundo Hartland e todas as outras autoridades, as sanções religiosas, os castigos sobrenaturais, a responsabilidade, a solidariedade do grupo, o tabu e a mágica são os elementos da jurisprudência entre os selvagens.

O autor enfatiza que todas essas controvérsias são completamente errados ou verdadeiros apenas em parte ou, no mínimo, pode-se dizer que situam a realidade da vida nativa em uma perspectiva falsa. Talvez não haja nenhuma necessidade maior de afirmar que nenhum homem por mais "selvagem" ou "primitivo" que seja, instintivamente agirá contra seus instintos, ou involuntariamente obedecera a uma regra a que se sinta inclinado a burlar astuciosamente ou a desafiar propositadamente; ou a ele não agirá espontaneamente de modo contrário a todos os seus desejos e  inclinações.

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A simples sanção da tradição - conformismo e conservadorismo do "selvagem" - muitas vezes funciona, e funciona sozinha para fazer respeitar as boas maneiras, o uso costumeiro, o comportamento privado e o público em todos os casos em que são necessárias algumas regras para estabelecer o mecanismo da vida comum e cia cooperação, como também para permitir a conduta obediente - mas onde não há nenhuma necessidade de abusar do interesse próprio e da inércia, de incitar ações desagradáveis ou de frustrar propensões inatas.

Há outras regras, ditames e imperativos que requerem e possuem seu tipo especial de sanção, além do simples encanto da tradição. Os nativos da parte descrita da Melanésia têm de se sujeitar, por exemplo, a um tipo muito rigoroso de ritual religioso, especialmente nos enterros e no luto. Além disso, há imperativos de comportamento entre os parentes. Por fim, existe a sanção do castigo tribal, em razão de uma reação raivosa e indignada de toda a comunidade.

Cada categoria das regras que acaba de ser enumerada distingue-se das demais sanções e por sua relação com a organização social da tribo e com sua cultura. Elas não constituem essa massa amorfa de usos tribais ou "bolo de costumes", de que tanto já ouvimos falar. A última categoria, a das regras fundamentais que protegem a vida, a propriedade e a personalidade, constitui o que poderia ser descrito como a "lei criminal” - muitas vezes enfatizada com exagero pelos antropólogos, falsamente associada ao problema do "governo" e da "autoridade central", e invariavelmente arrancada de seu devido contexto de outras regras legais.

Não há nenhuma sanção religiosa para essas regras, nenhum temor, supersticioso ou racional, que as reforcem; nenhum castigo tribal para sua quebra, nem mesmo o estigma da opinião pública ou a censura moral.  As forças que tornam essas regras compulsórias serão por nós revelados descobriremos que não são simples, mas claramente definíveis, não podem ser descritas com uma palavra ou um conceito, mas são muito reais.

A mente filosófica é mantida em seu curso pelo desejo de novos mundos e novas experiências, e a metafísica nos seduz com a promessa de uma visão além da linha do mais remoto horizonte. Porém, a natureza da curiosidade, a apreciação dogue realmente é maravilhosa, transformou-se nesse meio tempo pela disciplina da ciência. A contemplação das linhas grandiosas do mundo, o mistério dos dados imediatos e dos fins últimos, o ímpeto sem significado da "evolução criadora" fazem a realidade suficientemente trágica, misteriosa e questionável para o naturalista ou para o estudante da cultura, se sua proposta é refletir sobre o somatório de seus conhecimentos e contemplar seus limites.

Na antropologia moderna, a lei ainda é quase exclusivamente estudada em suas manipulações singulares e sensacionais, em casos de crimes sangrentos seguidos de vendetta tribal, nos relatos de feitiçaria criminosa com retaliação ou de incesto, adultério, quebra de tabu ou assassinato. Em tudo isso, além do dramático sabor picante dos acontecimentos, o antropólogo pode, ou pensa que pode descobrir certos aspectos inesperados, exóticos e assombrosos da lei primitiva: uma vaga solidariedade do grupo de parentesco, que exclui todo sentimento egoísta; um comunismo de lei e da economia; uma submissão a uma lei tribal rígida e indiferenciada.

Quando se trata da aplicação da moral e dos ideais à vida real, no entanto, as coisas assumem uma feição diferente. No caso descrito, os fatos evidentemente não correspondiam ao ideal de conduta. A opinião pública não foi afrontada pelo conhecimento do crime em nenhum grau, nem reagiu diretamente - teve de ser mobilizada por urna declaração pública do crime e pelos insultos dirigidos pela parte interessada ao culpado.

Mesmo assim, este teve de assumir o castigo. Portanto, a "reação do grupo" e a "sanção sobrenatural" não foram os princípios que atuaram. Depois de sondar a questão com maior profundidade e reunir informações concretas, verifiquei que a quebra da exogamia - no que diz respeito a relações sexuais e não a casamentos – não é de modo algum ocorrência rara e que a opinião pública e condescendente, decididamente hipócrita.

Em relação à sanção sobrenatural, esse caso me levou a urna importante descoberta interessante. Eu soube que há um remédio perfeitamente estabelecido contra quaisquer consequências patológicas desse delito, um remédio considerado praticamente infalível, se bem executado. Os nativos têm um sistema de magia que consiste em encantamentos e rituais realizados sobre a água, ervas e pedras que, se corretamente levado a cabo, é sumamente eficiente, desfazendo os maus resultados do incesto no clã.

A lei da exogamia - proibição do casamento e das relações sexuais dentro do clã - é frequentemente citada como um dos mandamentos mais rígidos e indiscriminados da lei primitiva, porque proíbe as relações sexuais dentro do clã com a mesma severidade, não importando o grau de parentesco entre as duas partes. Para os nativos, o incesto com uma irmã é um crime inqualificável, quase inconcebível - o que não quer dizer que nunca seja cometido. A violação do tabu, no caso de primos-irmãos matrilíneos, é uma ofensa muito séria e, como já vimos, pode ter consequências trágicas. À medida que o parentesco se afasta, diminui a gravidade e, quando cometida com alguém que apenas pertença ao mesmo clã, a violação da exogamia é um pecado venial, facilmente perdoado. Assim, no que diz respeito a essa proibição, para um homem as mulheres do clã, não são um grupo compacto, não são um "clã" homogêneo, mas um grupo muito bem diferenciado de pessoas, cada uma com uma relação especial, segundo seu lugar na genealogia.

Outro ponto interessante tratado no texto é sobre o desfecho que serve para ilustrar o aspecto legal da feitiçaria, é o costume de procurar os motivos pelos quais um homem foi morto por bruxaria. A investigação é feita com a interpretação correta de certas marcas ou sintomas visíveis no cadáver exumado. Entre doze e vinte e quatro horas depois elo enterro preliminar, ao primeiro pôr-do-sol seguinte, o túmulo é aberto, o corpo é lavado, ungido e examinado.

O procedimento é muito impressionante. A multidão se comprime em volta do túmulo, algumas pessoas rapidamente retiram a terra entre pranto ruidoso, outras entoam encantamentos mágicos contra as muluwas (bruxas voadoras que devoram os cadáveres e matam os homens) e cospem sobre os presentes com gengibre mastigado. Todos apertam o cerco para ver; são distribuídos pratos de madeira com creme de coco aos mais próximos para esfregar o corpo, os enfeites são retirados do cadáver, que é rapidamente lavado, novamente enrolado e enterrado.

Desnecessário dizer que um homem doente sempre suspeita, de fato acredita saber qual é o feiticeiro culpado pelos seus males, por conta de quem age e por quais motivos. Assim, a "descoberta" de uma marca tem todas as características de urna constatação a posteriori de algo já sabido. Isso posto, a lista acima, que inclui as "causas da morte" abertamente discutidas e prontamente encontradas, adquire um significado especial: ela nos mostra que delitos não são considerados indignos ou desprezíveis por completo, corno também mostram os que não são muito pesados para os sobreviventes.

Entretanto, o ponto de real importância em nosso argumento é que todos esses sintomas típicos nos mostram quanto é ofensiva qualquer proeminência, qualquer excesso de qualidades ou posses não avalizadas pela posição social ou qualquer empreendimento destacado ou virtude dissociada de posição e poder. Tudo isso é passível de castigo; quem zela pela mediocridade dos outros é o chefe, cujo privilégio essencial e dever para coma tradição é aplicar a lei aos outros. O chefe não pode usar a violência física direta nessas questões, quando sobre o delinquente pesa apenas uma suspeita, urna sombra de dúvida ou um mexerico tendencioso.

Observa-se assim que em muitos casos, para dizer a verdade, na maioria dos casos, a magia negra é considerada o principal instrumento do chefe para fazer respeitar seus exclusivos privilégios e prerrogativas. Esses casos quase imperceptivelmente se transformam em verdadeira opressão e injustiça crassa, das quais eu poderia mencionar uma série de casos concretos. Mesmo então, como invariavelmente se coloca ao lado dos poderosos, ricos e influentes, a feitiçaria continua sendo um apoio do interesse em jogo; por isso, em longo prazo, da lei e da ordem.

Essas considerações mostram claramente como é difícil traçar urna linha entre as aplicações semilegais e as sem criminosas da feitiçaria. O aspecto "criminal" da lei nas comunidades selvagens talvez seja ainda mais vago que o "civil"; a ideia de justiça, como a entendemos, é dificilmente aplicável, e os meios de restaurar um equilíbrio tribal perturbado são lentos e incômodos.

O suicídio certamente não é um meio de administrar a justiça, mas proporciona ao acusado e oprimido - seja ele culpado ou inocente - um meio de fuga e de reabilitação. Na psicologia dos nativos, o suicídio está sempre iminente como abafador de qualquer violência de linguagem ou comportamento, qualquer desvio do costume ou da tradição que possa ferir ou ofender a terceiros. O suicídio, corno a feitiçaria, é um meio de Manter os nativos na estrita observância da lei, um meio de tolher as formas extremas e incomuns de comportamento. Ambos são importantes influências conservadoras e, destarte, são fortes apoios da lei e da ordem.

Ressalte-se que, a lei primitiva não é um conjunto homogêneo e perfeitamente unificado de regras, baseado em um princípio transformado em um sistema consistente. Já sabemos muito pelo nosso exame anterior dos fatos legais nas ilhas Trobriands. A lei dos nativos consiste, no contrário, de uma série de sistemas mais ou menos independentes, ajustados uns aos outros apenas parcialmente. Cada um desses o matriarcado, o direito paterno, a lei do casamento, as prerrogativas e os deveres de um chefe e assim por diante - tem certo campo completamente seu, mas pode transbordar além de seus limites legais. Isso resulta em um estado de equilíbrio tenso, com uma explosão ocasional.

O estudo do mecanismo desse tipo de conflito entre princípios legais, abertos ou disfarçados é muitíssimo instrutivo e nos revela a verdadeira natureza da trama social cai uma tribo primitiva. Descreverei agora uma ou duas ocorrências e depois passarei a sua análise.

Os dois princípios do direito da mãe e o do amor cio pai concentram-se mais acentuadamente na relação de um homem com o filho de sua irmã e com o próprio filho, respectivamente. O sobrinho matririneo é seu parente mais próximo e o herdeiro legal de todas as suas dignidades e funções. Por outro lado, o próprio filho não é considerado um parente; legalmente, ele não está relacionado ao pai, o único elo é o status sociológico do casamento com a mãe.

Em Kavataria, a aldeia adjacente à Missão e ao Posto do Governo, o filho do último chefe, certo Dayboya, destitui completamente os verdadeiros senhores, nisso apoiado pela influência dos europeus que, naturalmente, favoreciam Os direitos patrilineares. No entanto, esse conflito, hoje mais exacerbado e levado a cabo com força maior pelo princípio paterno, inevitavelmente apoiado pelo homem branco, é tão antigo quanto à tradição mitológica. Ele é expresso nas histórias contadas como entretenimento, as kukwanebu, em que o iatulaguya'u, o filho do chefe, é um tipo com um, arrogante, mimado, pretensioso, em geral alvo de brincadeiras.

Nos mitos religiosos: às vezes ele é o vilão e às vezes o herói que luta - mas a oposição entre esses dois princípios é claramente acentuada. Mais convincente em relação à idade e à profundidade cultural do conflito é o fato que agora apresentarei, incorporado em muitas instituições. Entre a gente de categoria inferior, a oposição entre o direito da mãe e o amor do pai também existe e se manifesta na tendência do pai a fazer tudo o que pode pelo filho, à custa do sobrinho. Repetidamente, o filho tem de devolver aos herdeiros praticamente todos os benefícios e bens recebidos do pai, depois da morte deste. Naturalmente, é algo que traz Muito descontentamento, atritos e métodos indiretos de chegar a um acordo satisfatório.

Observa-se que, estamos, pois, muitas vezes diante de uma discrepância entre o ideal da lei e sua realização, entre a versão ortodoxa e a prática na vida real. Já deparamos com isso na exogamia, no sistema de contra magia, na relação entre a feitiçaria e a lei e, afinal, na elasticidade de todas as regras da lei civil. No entanto, aqui, vemos as próprias bases da constituição tribais questionadas - falta falar a verdade, sistematicamente escarnecidas por uma tendência incompatível caiu ela. Como sabemos, o direito da mãe é o mais importante e o mais abrangente principio da lei, subjacente a todos os costumes e a todas as instituições. Esse direito diz que o parentesco deve ser levado apenas em conta com as mulheres e que todos os privilégios sociais seguem a linhagem materna. Assim, ele exclui a validade legal de um laço físico direto entre o pai e o filho e de qualquer descendência baseada nesses laços.

A lei ortodoxa declara que o filho é um cidadão da aldeia da mãe, que na de seu pai é apenas um estranho (tomakava) – o uso é que permite que ele permaneça na aldeia da mãe, gozando ali da maioria dos direitos de cidadania. Para fins cerimoniais, em um funeral, numa cerimônia de luto, numa festa e, de modo geral, em uma luta, ele estará ao lado de seu tio materno. Na realização de nove entre dez de suas atividades e interesses da vida cotidiana, está ligado a seu pai.

O hábito de manter o filho em casa depois da puberdade, muitas vezes até depois do casamento, é urna instituição normal - com arranjos bem definidos, tudo feito segundo regras e procedimentos precisos, o que relega o costume à clandestinidade ou irregularidade. Em primeiro lugar, o sancionado pretexto de que o filho permanece para poder ajudar a encher a casa de inhames do pai, o que faz em nome do irmão de sua mãe e como seu sucessor. No caso de um chefe, muitas vezes, há um certo número de atividades que poderiam ser mais apropriadamente executadas pelo próprio filho do chefe. Quando se casa, constrói uma casa no terreno de seu pai, próximo a casa deste.

Naturalmente, o filho tem de viver e comer - portanto, deve plantar e tomar outras providências. O pai lhe dá alguns baleko (lotes de terreno) de suas terras, um lugar em sua canoa, assegura-lhe os direitos de pescaria (a caça não é importante nas ilhas Trobriands) e dá ainda ao filho as ferramentas, as redes e os apetrechos de pesca. Em geral, o pai vai mais longe. Permite a seu filho certos privilégios e dá-lhes presentes que por direito deveria aguardar até o momento de entregá-los aos herdeiros.

De acordo com o autor é verdade que também dá a seus herdeiros esses privilégios e presentes ainda em vida, quando pedem, em troca de um pagamento denominado pokala. Esse pagamento ele nem sequer pode recusar. Seu irmão mais novo ou seu sobrinho - um dos dois terá de pagar um preço bastante alto pela terra, pela magia, pelos direitos do kula, pela herança ou pela maestria nas danças e nas cerimônias; ainda que tudo isso pertença a ele por direito e que de qualquer maneira herdaria. Assim, o, uso estabelecido, mas não legal, toma grandes liberdades com a lei, mas acrescenta insulto à injúria, garantindo ao usurpador consideráveis vantagens sobre o verdadeiro proprietário.

O arranjo mais importante pelo qual uma linha patrilinear temporária é contrabandeada para o direito da mãe é a instituição do casamento cruzado entre primos. Nas Ilhas Trobriands, um homem que tem um filho e cuja irmã dá à luz uma filha tem direito de pedir que essa criança seja comprometida como noiva de seu filho. Assim, seus netos serão parentes dele e o filho passará a ser cunhado do herdeiro da chefia.

Por conseguinte, este último estará obrigado a abastecer a casa do filho com o alimento e, de modo geral, a ajudar o cunhado e ser o protetor da família de sua irmã. Justamente o homem, cujos interesses o filho usurpará, é impedido de ressentir-se por isso e, no fundo, considera isso um privilégio. O casamento entre primos nas Ilhas Trobriands é cima instituição pela qual um homem pode indiretamente assegurar ao filho direito de permanecer na comunidade do pai para sempre, por um excepcional casamento matrilocal - e gozar de quase todos os privilégios da plena cidadania.

Assim, em corno do sentimento do amor cio pai cristaliza-se uma série de costumes estabelecidos, sancionados pela tradição e praticamente considerados pela comunidade o rumo natural. No entanto, esses costumes são contrários ao rigor da lei e implicam questões excepcionais e anômalas, como o casamento matrilocal. Se há oposição e protestos em nome da lei, eles devem ceder. Há registros de casos em que o filho, embora casado com a sobrinha do pai, teve de deixar a comunidade.

Sobre os fatores  de coesão social em uma tribo primitiva a partir da  análise do choque entre o direito da mãe e o amor do pai, nossa atenção se concentrou nas relações pessoais entre o homem, seu filho e seu sobrinho, respectivamente. Contudo, também existe o problema da unidade do clã. O grupo de dois formado pelo homem no poder (chefe, notável, líder de aldeia ou feiticeiro) e seu herdeiro é o cerne do clã matrilinear.

A unidade, a homogeneidade e a solidariedade do clã não podem ser maiores do que as de seu cerne e, a partir do momento em que esse cerne está fissurado, quando normalmente há tensões e antagonismos dure esses dois homens, não podemos aceitar o axioma de que o clã é urna  unidade perfeitamente consolidada. O "dogma do clã" ou "dogma da parentela", para usar a expressão do Dr. Lowie, não deixa de ter lá seus fundamentos, e, embora se tenha mostrado que no próprio núcleo o clã está dividido e também que não é homogéneo em relação à exogamia, será bom mostrar com exatidão o quanto há de verdade na polémica sobre a unidade do clã.

A posição da lei nativa nessa questão é muito coerente e clara. Quando aceita o direito da mãe como exclusivo princípio de parentesco em questões legais, aplicando-o até às últimas consequências, o nativo divide todos os seres humanos entre os que estão ligados a si por laço matrilinear, a quem chama de parentes (veyola), e Os que não estão assim relacionados, a quem chama de estranhos (tomakava).

Essa doutrina é então combinada ao "principio classificatório do parentesco", que rege plenamente apenas o vocabulário, mas que até certo ponto também influencia as relações legais. O direito da mãe e o princípio classificatório são ainda associados ao sistema totémico, pelo qual os seres humanos se dividem em quatro clãs, que por sua vez se subdividem em um número irregular de subclãs.

A unidade do clã e, mais ainda, a do subclã são muito palpavelmente expressas nas grandes distribuições festivas (sagali), em que os grupos totêmicos fazem um jogo cerimonial cie concessões econômicas recíprocas Há uma unidade múltipla e real de interesses, de atividades e, necessariamente de alguns sentimentos, unindo os elementos de um subclã e os subcIàs componentes em um clã, algo que é bastante enfatizado em muitas instituições, na mitologia, no vocabulário, nos ditos populares e nas máximas tradicionais.

Existe ainda o outro lado cio quadro, de que já uivemos clara indicação, que devemos formular concisamente. Em primeiro lugar, embora todas as ideias sobre parentesco, divisão totêmica, unidade de substância, deveres sociais, etc., muitas vezes deem ênfase ao "dogma do clã", nem todos os sentimentos seguem essa m

Enquanto em qualquer disputa de natureza social, política ou cerimonial um homem - por ambição, orgulho ou patriotismo - invariavelmente esteja ao lado da parentela matrilinear, os sentimentos mais delicados, as amizades amorosas, as afeições o fazem muitas vezes descuidar-se do clã pela esposa, pelos filhos e pelos amigos nas situações mais comuns da vida. Na língua, o termo veyogu "meu parente" - tem um frio colorido emocional de orgulho e dever, ao passo que a expressão Iubaygu - "meu amigo" e "minha querida" - possui uma tonalidade distintamente mais calorosa e intima. Em suas crenças referentes à morre, também, os laços de amor, o apego conjugal e a amizade são feitos (de modo menos ortodoxo, mas mais pessoal) para permanecer no mundo do espírito enquanto dura a identidade totêmica.

Com relação aos deveres definidos do clã, vimos em detalhe no exemplo da exogamia o quanto existe de elasticidade, subterfúgios e transgressões. Nas questões econômicas, como já sabemos, a exclusividade de cooperação cio clã sofre um sério desfalque com a tendência do pai em beneficiar seu filho e de levá-lo nos empreendimentos do clã.

A vingança (lugwa) só é realizada raramente: o pagamento de preço para a paz (o lula) é mais uma forma tradicional de compensação, ou melhor, de fuga a deveres mais duros. Em questão de sentimento, o pai ou o viúvo em geral estão bem mais ansiosos do que a parentela em vingar a morte do assassinado. Em todas as oportunidades em que atua como unidade econômica nas distribuições cerimoniais, o clã só permanece homogêneo em relação a outros clãs. Internamente, é mantida uma rigorosa contabilidade entre os subclãs componentes e, em cada subclã, entre os indivíduos.

Assim, aqui também existe a unidade, por um lado, mas, pelo outro, combinada à outra com diferenciação, com estrita vigilância dos particulares interesses próprios e, por fim, mas não menos importante, com um espírito inteiramente comercial não isento de suspeitas, inveja e práticas mesquinhas.

Se fosse realizada urna pesquisa concreta das relações pessoais dentro do sua bela, as relações tensas e visivelmente inamistosas entre o tio materno e o sobrinho, como vimos em Omarakana, certamente seriam encontradas com alguma frequência. Entre os irmãos existe urna verdadeira amizade, como no caso de Mitakata e seus irmãos e Namwana Guya'u e os seus. Por outro lado, ódios intensos e atos de violência e de hostilidade estão registrados tanto na lenda como na vida real. Darei um exemplo concreto de um caso de discórdia fatal no que seria o núcleo de um clã, um grupo de irmãos.

Em uma aldeia muito próxima de onde estava acampando na ocasião, moravam três irmãos; o mais velho, chefe cio clã, era cego. O irmão mais novo costumava tirar vantagem dessa enfermidade, colhendo as nozes das arecas antes de estarem bem maduras. Assim, o cego era privado de sua parte. Um dia, ao descobrir que havia sido ludibriado mais uma vez, teve um ataque de fúria, apanhou um machado e, entrando na casa de seu irmão no escuro, conseguiu feri-lo. O ferido fugiu e refugiou-se na casa do terceiro irmão. Este, indignado coma afronta feita ao irmão mais moço, tornou uma lança e matou o cego. A tragédia teve um final prosaico o magistrado prendeu o assassino por um ano. Antigamente – e nisso todos os meus informantes concordavam unanimemente - ele teria se suicidado.

Um assassinato é uma ocorrência raríssima. De fato, além do caso que justamente acabo de contar, somente um caso ocorreu durante minha estada, o de um famigerado feiticeiro morto por um gol pede lança, à noite: quando sub-repticiamente se aproximava da aldeia. Essa morte se deu em defesa de um homem doente, vitima do feiticeiro, por um dos protetores armados, que mantêm vigilância à noite nessas ocasiões.

Quando se pergunta a um nativo o que faria nesse ou naquele caso, ele diz o que deveria lazer, apresenta o modelo da melhor conduta possível. Quando atua como informante de um antropólogo em campo, nada lhe custa descrever minuciosamente o ideal da lei. Ele reserva para o comportamento na vida real os seus sentimentos, suas propensões, seus conceitos, seu comodismo e também sua tolerância com as falhas dos outros.

O moderno pesquisador de campo faz deduções sem maiores esforços a partir do que lhe é contado pelo informante nativo, mas permanece ignorante com as imprecisões que a natureza humana deixa nesse esboço teórico. Por isso, ele reinventou o selvagem, transformando-o em um modelo de legalidade. A verdade é urna combinação das duas versões; nosso conhecimento de ambas revela que tanto a velha como a nova ficção são simplificações despropositadas de uma situação bastante complicada.

Esse, como tudo o mais na realidade cultural do homem, não é um sistema lógico coerente, mas antes uma mistura fervilhante de princípios em conflito - dentre os quais, o choque entre o interesse matrilinear e o paterno talvez seja o mais importante. Em seguida vêm, por um lado, a discrepância entre a solidariedade totêmica do clã e, por outro, os laços de família ou os preceitos do interesse.

A luta do princípio hereditário da posição social com as influências pessoais da bravura, do sucesso econômico e das artes da feitiçaria também tem importância. A feitiçaria como instrumento pessoal de poder merece atenção especial, pois frequentemente o feiticeiro é um temível rival do chefe ou do líder. Se o espaço permitisse, eu poderia dar exemplos de outros conflitos de uma natureza fortuita, mais concreta - a historicamente comprovável gradual disseminação do poder político do subclã Tabalu (do clã Malasi), em que podemos ver o princípio da posição social ultrapassar campo legítimo, a lei da cidadania estritamente local, baseada em direitos mitológicos e na sucessão matrilinear. Poderia descrever a secular controvérsia entre os mesmos Tabalu e o subclã Toliwaga (do clã Lukwasisiga), em que os primeiros têm a seu lado a posição social, o prestígio e o poder estabelecido, e os últimos uma organização militar mais forte, o caráter guerreiro e maior êxito nas lutas.

De nosso ponto de vista, o (ato mais importante nessa luta de princípios sociais é nos forçar a refundir completamente o conceito tradicional de lei e ordem nas comunidades selvagens. Sem a menor dúvida, hoje temos de abandonara ideia de uma "casca" ou "aglutinado" sólido e te de costumes, pressionando rigidamente de fora toda a superfície da vida tribal.

A lei e a ordem surgem dos mesmos processos que a regem - mas não são rígidas e não se devem a nenhuma inércia ou molde permanente. Ao contrário, elas vigoram como resultado de uma luta constante não apenas de paixões humanas contra a lei, mas de princípios legais, uns contra os outros. Entretanto, não é uma luta livre, está sujeita a lições precisas, só pode ocorrer dentro de certos limites e somente na condição de permanecer abaixo da superfície da publicidade. Uma vez apresentado um desafio aberto, a precedência da lei rigorosa sobre o uso legalizado ou sobre um princípio que usurpa a lei é estabelecida, e a hierarquia ortodoxa dos sistemas ela lei controla a questão.

Como verificou-se que, o conflito ocorre entre a lei rigorosa e o uso legalizado; é possível porque a primeira tem por trás a força de urna tradição mais precisa, enquanto a segunda tem sua força nas inclinações pessoais e nos poderes verdadeiros. Assim, em seu conjunto, não apenas existem certos tipos de leis semicivis e semicriminais ou a lei das transações econômicas, das relações políticas e assim por diante, mas também pode haver graus distintos de ortodoxia, rigor e validade, colocando essas regras em uma hierarquia, desde a lei principal do direito da mãe, o totemismo, até aos subterfúgios furtivos e meios tradicionais de afrontar a lei e favorecer o crime.

Percebe-se que o exame da lei e das instituições legais nas Ilhas Trobriands - durante o qual chegamos a uma série de conclusões sobre a existência de obrigações dogmáticas e flexíveis, mas fortes, que correspondem à lei civil em culturas mais desenvolvidas sobre a influência da reciprocidade; da sanção pública da lei e da ciência desses tipos de obrigação, que proporcionam sua principal força unificadora.

No entanto, vale a pena perceber que pela nossa discussão encontramos o problema real não na trivial enumeração de regras, mas da maneira e com os meios pelos quais elas são postas em prática. Muito instrutivos foram o estudo de situações reais que pedem uma dada regra, a maneira como esta é tratada pelos envolvidos, a reação da comunidade em geral: as consequências de seu cumprimento ou de sua desconsideração. Tudo isso, que se poderia chamar de contexto cultural de um sistema primitivo de regras, é igualmente importante - senão mais importante que a simples enumeração de um fictício curpus juris nativo codificado no caderno do cenógrafo como resultado de perguntas e respostas, no método de "ouvir dizer" cio trabalho de campo.

Pode-se apenas implorar que desapareçam rápida e completamente dos registros de trabalho de campo os itens fragmentados de informação, de costumes, de crenças e de regras de conduta que pairam no ar, ou melhor, que têm insípida existência apenas no papel, com a completa ausência de uma terceira dimensão, a da vida. Com isso, os argumentos teóricos da antropologia poderão largar as intermináveis litanias de declarações alinhavadas que fazem que nós, os antropólogos, nos sintamos idiotas, e os selvagens parecerem ridículos.

O autor se refere às longas enumerações de relatos broncos, como, por exemplo: "Entre os brobdignacianos, quando um homem encontra sua sogra, os dois se insultam e cada um vai embora com um olho roxo" - "Quando um brodiag encontra um urso polar ele corre e às vezes o urso vai atrás" – “Na velha Caledônia, quando encontra por acaso uma garrafa de uísque á beira da estrada, o nativo a esvazia com um só trago e depois imediatamente começa a procurar outra" - e assim por diante. (Estou citando de memória, de modo que as afirmações são apenas aproximadas, embora soem plausíveis...).

É fácil caçoar do método das litanias, mas o antropólogo que vai ao campo é realmente o culpado. Não há quase nenhum relatório cm que as descrições em geral correspondem ao que de fato acontece e não corno deveriam ser ou como se diz que acontece. Muitos dos antigos relatos eram escritos para surpreender, para divertir ou para fazer piadas à custa do pobre selvagem, até que o feitiço virou contra o feiticeiro e hoje é mais fácil gracejar à custa do antropólogo. Para os que anotavam nos velhos tempos, o que realmente interessava era a esquisitice do costume, mas não sua verdade.

O antropólogo moderno, que trabalha por meio cie uni intérprete pelo método de perguntas e respostas, pode reunir apenas opiniões, generalizações e relatos rudimentares. Ele não nos dá nenhuma realidade, pois nunca viu nenhuma realidade. O toque de ridículo que está sempre à espreita na maioria dos textos da antropologia deve-se ao sabor artificial de relatos despidos de seu contexto de vida. O verdadeiro problema não é estudar como a vida humana se submete às regras - ela simplesmente não se submete -, o verdadeiro problema é saber como as regras se adaptaram à vida.

A relação entre o direito da mãe e o princípio da paternidade e o conflito parcial entre ambos, como vimos, explica uma série de acordos como o casamento cruzado de primos, tipos de herança e de transações econômicas, a típica constelação pai, filho e tio materno e certos aspectos do sistema de clãs. Muitas características de sua vida social, as cadeias de deveres recíprocos, sanção cerimonial das obrigações, a união de uma série de transações díspares em um relacionamento, foram explicadas pela função que desempenham no suprimento das forças coercitivas da lei.

A relação entre o prestígio hereditário, o poder da feitiçaria e a influência da realização pessoal, como os encontramos nas Ilhas Trobriands pode explicar os papéis culturais de cada princípio, respectivamente. Permanecendo em terreno estritamente empírico, foi-nos possível justificar todos esses fatos e aspectos, mostrar suas condições e finalidades, para assim explica-os de modo científico.


REFERÊNCIA

MALINOWSKI, Bronislaw. Crime e Costume na Sociedade Selvagem; tradução de Maria Clara Corrêa; revisão técnica de Beatriz Sidou.- Brasília: Editora Universidade de Brasília/São Paulo:  Imprensa Oficial do Estado, 2003. 100p. (Antropologia)

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Sobre o autor
André De Jesus

Advogado, assessor parlamentar, professor universitário. Sou especialista em direito público e eleitoral, mestrando em Ciências da Educação e doutorando em Direito Constitucional pela Universidade de Buenos Aires.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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