O futuro da atividade notarial e registral diante da “febre da blockchain”

11/02/2018 às 09:57
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Este artigo visa suscitar questões a respeito das implicações das inovações tecnológicas trazidas pela blockchain, especialmente os contratos inteligentes (smart contracts) da Ethereum, na atividade notarial e registral.

Diante das inovações tecnológicas trazidas pela blockchain, especialmente os contratos inteligentes (smart contracts) da Ethereum, surgem indagações a respeito de eventualmente, entre outros profissionais, os notários e registradores serem considerados obsoletos.

O direito, sem sombra de dúvidas, deve seguir as inovações tecnológicas, mas os entusiastas do universo das cryptomoedas enchem as bocas para falar das intermináveis aplicações das blockchains e proliferam afirmações a respeito da tecnologia que não podem ser tidas como verdades absolutas. Embora inegável a importância da tecnologia no cenário jurídico atual e sua usabilidade, há muitos pontos de cautela.

Antes de tudo, insta realçar, os contratos inteligentes na plataforma Ethereum são programas que, uma vez lançados, enquanto alimentados com gas (o combustível da plataforma), são executados independente da intervenção humana, são imutáveis e não podem sofrer qualquer censura não prevista na sua codificação.

Não entraremos na questão da exigência legal de forma, pois, o justo receio é, exatamente, uma mudança legislativa, tendo em vista que a constituição só determina como será exercida a atividade notarial e registral, mas não determina a forma pública aos documentos, sendo leis ordinárias que o fazem.

A abordagem do ponto de vista prático que faz dos notários e registradores agentes indispensáveis. Imaginemos o seguinte cenário: você acorda pela manhã e ao ligar a TV se depara com a seguinte – e improvável – notícia: “os tabelionatos e ofícios registrais foram extintos”. Quais são os efeitos disso?

O primeiro efeito é que não existem documentos públicos, assim, não existem documentos assegurados pela fé pública notarial. De um ponto de vista extremamente prático, sem levar em consideração as implicações jurídicas desta catástrofe, o cidadão leigo não teria maiores preocupações ao ver a notícia, alguns até comemorariam. Mas, e agora? Você lembra que vendeu sua casa e quer elaborar um contrato, qual o profissional você vai procurar? Os mais cautelosos, buscarão instruções com um advogado, o qual, mediante a cobrança de honorários, lhe auxiliará na redação do contrato. Os honorários são livremente estipulados, sem uma tabela fixa, e o aumento na procura pelo serviço certamente seria um problema para o cidadão, que, não sendo obrigado à assistência jurídica, buscaria seus contratos em qualquer site na internet, ou buscaria a ajuda de pessoas não qualificadas. Mas e os contratos inteligentes? Os contratos inteligentes requerem programadores para sua elaboração – que não são profissionais do direito – e seriam oferecidos, nesse novo nicho, certamente como pacotes prontos, com templates, cláusulas pré-elaboradas, pois as linguagens de programação são restritas; logo, esses contratos não admitem, por exemplo, a interpretação pela intenção consubstanciada no contrato; um erro de redação (programação) não seria suscetível de retificação, tendo em vista a imutabilidade dos contratos inteligentes (característica tida por seus entusiastas como positiva). Ainda, os contratos ilegais não poderiam ser censurados pelo judiciário, pois sua possibilidade de alteração é condicionada à previsão dessa possibilidade na sua elaboração. Enfim, os smart contracts não abarcam todas as funções que um instrumento escrito em vernáculo tem. Assim, a finalidade da blockchain se esgotaria no registro, pois aquela não tem duas elementares capacidades inerentes aos notários e registradores que são: a redação jurídica qualificada e a prevenção de conflitos.

Além da impossibilidade de retificação dos erros “formais” (de programação) do contrato, a estrutura blockchain carece da dedicação de profissionais à manutenção da fidelidade das informações; situação que provocaria a formação de contratos e registros com erros materiais. Quando se tem um imóvel registrado no cartório do registro de imóveis de alguma circunscrição, têm o titular e seus prepostos o cuidado de verificar a legalidade das operações imobiliárias – por exemplo, se não se trata de loteamento irregular – e se estas correspondem à realidade, bem como o cumprimento das obrigações tributárias, e, através da fé pública registral, certificar que seus registros correspondem à realidade e não estão maculados por qualquer ilegalidade. Na ausência destes profissionais estaria esta responsabilidade exclusivamente em mãos das partes (será?).

A blockchain é muito eficaz quando se quer proteger o interesse de um contratante frente ao outro, mas não assegura que as pessoas que operam na blockchain estejam agindo de forma lícita ou saibam o que estão fazendo.

Outra premente dificuldade é a seguinte: o direito é para as pessoas. As pessoas não nascem com um computador, smartphone ou outro dispositivo eletrônico nas mãos. É fácil imaginar um mundo com contratações eletrônicas onde todos tenham acesso a dispositivos informáticos, mas essa não é a realidade, ainda existem muitas pessoas que mal sabem escrever seus próprios nomes, isso quando sabem, ou que em razão de condições econômicas ou geográficas não têm acesso à internet. Como estas pessoas teriam acesso aos contratos inteligentes? Como essas pessoas poderiam adquirir um imóvel se não fazem a menor idéia do que é blockchain? O que surgiriam? Certamente muitos oportunistas para aproveitar das dificuldades dessas pessoas e lucrar às suas custas.

E a verificação da capacidade? Quem assegura que a pessoa que assinou o contrato era capaz no momento da assinatura ou tinha legitimidade para fazê-lo?  E a verificação de identidade? Quem assegura que a assinatura digital aposta foi realizada pela pessoa, se para assinar digitalmente basta ter ao alcance o certificado digital (geralmente armazenado em um token ou smartcard) e o PIN (senha)? Admitir a blockchain como substituta da atividade notarial e registral seria um cataclismo jurídico, pois o direito preventivo seria substituído por um direito terminantemente repressivo, o qual geraria sentenças muitas vezes inexequíveis em razão da irrastreabilidade das operações e da imutabilidade dos contratos. O notário não só coleta a assinatura das partes, ele acolhe a manifestação da vontade, redigindo o documento adequado, cuidando de verificar se aquele que manifesta a vontade o faz de forma espontânea e tem capacidade e legitimidade para tanto.

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Muitas vezes a parte se dirige ao “cartório” buscando realizar a escrituração de determinado negócio, mas se refere pelo nomen iuris inadequado. Esse erro é percebido facilmente pelo tabelião, que redige o ato notarial adequado, pois embora a parte interessada tenha chamado por outro nome o notário percebe que a vontade da parte é celebrar contrato diverso. Em um mundo baseado em contratos inteligentes, tudo que a parte teria em mãos seriam templates para escolher – ou poderiam contratar um programador e um advogado para desenvolver seu contrato personalizado – e esse erro na escolha, que não seria incomum, seria extremamente prejudicial.

O que se teria na prática seria uma segregação social – como na Roma Antiga havia o ius civille e o ius gentium – teríamos o direito para os integrados à blockchain, com maior ar de nobreza, e o daqueles que por limitações econômicas, sociais ou intelectuais não podem ter acesso à blockchain.

Isso prejudicando valores que a Constituição Federal conclama: “...a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias...”

Ademais, certamente a lei acabaria por colocar limitações na blockchain e acessos especiais para o Estado, a fim de assegurar a fiscalização e o cumprimento de decisões judiciais, só considerando válidos os documentos registrados na blockchain que atendesse a essas exigências legais. Essa “blockchain estatal” não teria o anonimato das outras, mas certamente teria custos de operação (fees) iguais ou maiores. As pessoas não teriam mais um profissional disposto a orientá-las e auxiliá-las gratuitamente na celebração de seus negócios e a redigir os instrumentos desses negócios por preço de tabela pré-fixado por lei.

Muitas pessoas tecem críticas descabidas à atividade notarial e registral, por efetivamente não conhecerem sua importância. A atividade notarial e registral por ser antiga não é antiquada, mas sim madura. Um preceito da própria informática é aplicável: as últimas versões de um programa são mais estáveis que as primeiras. Assim é no direito, as instituições mais antigas já passaram por um processo de amadurecimento e tiveram seus “bugs” identificados e corrigidos, uma substituição só faz surgirem novos problemas a serem resolvidos e a demanda de séculos de amadurecimento para somente no futuro se atingir a expectativa. Por fim, suscito uma última indagação: de que vale a liberdade financeira (“assegurada” pela blockchain) se para tê-la o cidadão deve limitar sua liberdade física (por estar preso a um dispositivo informático) e até que ponto a lei pode obrigá-lo a isto?

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Sobre o autor
Ericson Jarae Klik Bisiewicz

Advogado especializado em Direito dos Contratos, Família e Sucessões e Imobiliário, com ênfase na área Notarial e Registral.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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