No mundo moderno está cada vez mais presente um trinômio tão revelador de sua necessidade quanto da dificuldade de se encaixar. Direito, Sociedade e Novas Tecnologias poderiam ser pontos anunciados (e são) de forma independente. Da mesma maneira muitos fatos, fenômenos, interações e desafios reclamam que devêssemos observar como se fossem as pernas de um triângulo complexo.
Nesse debate, os triângulos são figuras geométricas que nos serviriam de Metáfora: um tipo de transporte de significados e de sentidos. Queremos dizer alguma coisa, mas consideramos que uma imagem ou pensamento diferente possam dizer mais claramente; aí usamos Metáforas – ou parábolas, mitos. São fabricações culturais diversas, mas de certa forma todas podem nos ajudar.
A Metáfora do Triângulo – ainda que, obviamente, careça de cientificidade – revela um pouco do nosso modernismo tecnológico: imaginemos um triângulo em movimento, como se estivesse quicando, pulando ao choque de suas pontas de conexão. Imaginemos que se esse triângulo, a cada vez que saltasse com o choque, viesse a gerar um triângulo igual a si: uma réplica, um mimetismo, um clone, uma duplicação. Esse triângulo existe e na tecnologia é chamado de fractal.
Esse fractal, ou triângulo ambivalente – porque sociedade, direito e novas tecnologias não têm superioridade nos polos –, polivalente, conectado em três elos interdependentes, assume a forma de cada pessoa que se multiplica e se expande nas redes sociais, por exemplo.
Nossas mensagens atingem quantas pessoas? Quando postamos qualquer tipo de mensagem estamos criticando, comentando os significados de quem (será que sabemos a real origem)? Ou estamos replicando a postagem de qual emissor?
Neste momento, alguém poderia dizer que já não temos mais um triângulo, mas sim um quadrado (ou losango) porque inserimos o indivíduo na aritmética das relações. Pois bem, o indivíduo – que é um ser social – não existe fora da sociedade . Nem se estivesse sozinho em Marte, pois, ou manteria contatos com suas bases (ainda que fosse por WhatsApp) ou morreria louco.
E isto não é um mito ou parábola. É o real, como se o real fosse unicamente outra forma de descrever o que é o virtual. O que é o virtual senão uma das formas de expressão tecnológica criada pela cultura humana de forma realista ?
O Neolítico – a era na qual surgiu, propriamente, a inteligência humana capaz de modificar a natureza em maior profundidade – gerou a técnica. Desta técnica, manuseio específico dos recursos naturais (moldando-os, forjando-os) surgiram “novas” tecnologias. Ou seja, depois que nos “inventamos”, sempre ocorreram “novas” tecnologias. A partir do ponto zero, tudo é novo.
Uma faca de bronze é “nova”, novíssima, se comparada a um artifício de osso, de um chifre: mesmo que este possa ser mais resistente. “Nova”, aqui, é a capacidade, a engenhosidade de moldar, de criar, de fazer para si, de ressignificar : o osso já estava pronto, no máximo recebeu um polimento.
Também a Prensa de Gutemberg foi “nova”, no sentido de revolucionária: democratizando, ampliando a necessidade da leitura, transformando analfabetos em fractais da imprensa moderna.
Trata-se da mesma imprensa que se tornaria parte essencial do triângulo formador do Estado de Direito : direitos fundamentais; Império da Lei; separação dos poderes. Vejam, da imprensa, que resultou de uma prensa, criamos o Estado-Juiz (separação dos poderes) e o princípio do juiz natural: direito fundamental.
Ou seja, não há nada mais “novo” do que aquilo que veio depois do trabalho de alguém.
Pois bem, chegamos a outra inflexão: o trabalho na produção da humanidade. A relação entre técnica e trabalho é outra condicionante deste homem do Neolítico: sem dúvida uma das chaves do que somos. Ali também criamos a técnica da bricolagem: o reaproveitamento de materiais, aliando técnica e trabalho (a pós-moderna customização).
Esta articulação foi possível porque o homem uniu criatividade, trabalho e técnica – gerando-se o conhecimento apropriado à transformação do entorno e de si. Tudo isto foi criado no Neolítico: a base do que nós somos até hoje em dia. O Mito de Prometeu conta bem essa história: a luta pelo conhecimento. Depois, com o direito, veio a luta pelo reconhecimento .
Mas, diga-se de novo, isto não é mito, é realidade, história, ontologia, teleologia. Isso tudo somado, indexado, refeito, multiplicado ou esvaziado, produz política. Porém, uma Política (maiúscula) formadora da Polis e da Ética que nos circunvizinha: a civilidade como essência da condição humana .
Em outros termos, a técnica é devedora da Ética . Quando esta Política se encontra com o direito temos a Carta Política – em que o povo é seu legítimo intérprete . Uma parte da legitimidade está na aproximação entre regras sociais e normas jurídicas.
De outro modo, o Mito, na outra ponta do nosso triângulo, é a própria ideia do direito. Se há um algo que vem sendo contado há milênios e que acreditamos fielmente é o Mito da santidade do direito – na maioria das vezes sem nos darmos conta e, portanto, sem questionar, levamos o Mito do Direito à frente, como crença, ficção. (Afinal, esse é o papel do mito: levar a verdade inquestionável). O que pode haver de mais ficcional do que a Teoria da Ficção no direito?
Contudo, tal qual ocorre com o Mito do Direito, outros mitos ganharam força e também testemunharam as mudanças sociais. É o caso do Mito do Estado , para o qual nenhum de nós foi consultado se gostaríamos que fosse assim ou assado.
Às vezes, pensando historicamente, os mitos entram em choque com a realidade e as “novas” tecnologias apresentadas. Deste choque podem surgir convulsões, revoluções, a começar da Revolução Industrial.
Uma história bem contada desse burburinho de contradições está no Mito do Fausto . Quando o capitalismo nascente passou a destruir as tradições, o direito considerado arcaico, as formas de vida desnecessárias e antagonistas à chamada acumulação primitiva.
Outros, analisando este mesmo Mito do Fausto, agora como inverdade (ou ideologia ), interpretam que no fundo tudo não passa de controle, expansão do poder e do capital, de domínio (suma potestas) e não de dominação pela ratio (potestas in populo).
Assim, o direito e o Estado não passariam de embustes daqueles que manipulam a sociedade . O Processo , para estes, é sempre seletivo, indigno, prejudicial à Justiça real. Em todo caso, muitos trinômios podem surgir, especialmente relendo os clássicos .
Em terceira linha (triângulo?) alguns dirão que no meio do inevitável entrechoque (moderno e arcaico), entre defensores e críticos, há espaço para os reformadores ou, então, criadores do “novo”.
Porém, o que é novo? É a utopia, o que não está em lugar algum, mas que pode estar em todos os lugares. É uma resposta à distopia, à deformidade que se apresenta como “normal”, à acomodação diante do que parece normalizado, pacificado, pacientado, mas que esconde zonas escuras.
A Intervenção Federal , para atualizar o debate, é uma distopia, uma deformação da realidade: uma ideia deformada da coerção que deforma a democracia; uma exceção que quer se parecer com a norma.
Daí que o Estado de Exceção requer mais normas antidemocráticas para se naturalizar, como algo “normal”, necessário, habitual, corriqueiro . Um triângulo que se desfaz neste rumo é aquele designado como o Princípio do Contraditório: não se contradiz o poder. A relação não-hierárquica entre juiz, advogado e promotor não se mantém mais democraticamente, horizontalmente.
Em todo caso, deixando a crítica e retornando à utopia, diz-se que a utopia é exatamente uma crítica, mas é também uma proposta. Há inclusive uma utopia que propõe um governo de cientistas , sem os chamados políticos profissionais ou plutocratas no comando. No geral, as utopias – realizáveis ou não – têm em comum a aposta em um “novo” mundo, mais justo, equilibrado.
Aliás, é preciso retornar à pergunta inicial, que é crucial. Porque, nossa vida é repleta de arranjos triangulares: o fascismo com três pernas – controle institucional tripartite (Estado, uma representação patronal e outra dos trabalhadores); a infidelidade conjugal de um “triângulo amoroso”; o Triângulo das Bermudas; o triunvirato de Roma; a Estrela de Davi de seis pontas, ou dois triângulos sobrepostos; Deus é onipresente, onisciente, onipotente; as Três Marias; os Três Reis Magos; o Princípio da Trindade: “Pai, Filho e Espírito Santo”; a famosa triangulação e a Regra Três, no futebol; a premiação de três medalhas: ouro, prata e bronze; a Trifeta na corrida de cavalos. Como se vê, está no sagrado e no profano, no cotidiano prático e no imaginário.
Por fim, há ainda outros triângulos do direito: a Pirâmide de Kelsen; ato jurídico perfeito, coisa julgada, direito adquirido (CR, art. 5º, XXXVI). Também é o que vemos nas condições da ação: a) interesse processual ou de agir; b) legitimidade das partes; c) possibilidade jurídica do pedido. Por fim, ainda podemos citar os negócios jurídicos regulados pelo Código Civil e suas regras e postulados ideais. A validade do negócio jurídico ao requerer: “I - agente capaz; II - objeto lícito, possível, determinado ou determinável; III - forma prescrita ou não defesa em lei” (art. 104 do Código Civil).
Então, como ficou mesmo o trinômio proposto – Direito, Sociedade e Novas Tecnologias? E para amanhã, o que será: o direito presente ou do futuro?
Vinício Carrilho Martinez (Pós-Doutor em Ciência Política)
Professor Associado da Universidade Federal de São Carlos – UFSCar
Departamento de Educação- Ded/CECH
Caroline Janjácomo
Publicitária. Mestranda no Programa de Pós-graduação em Ciência, Tecnologia e Sociedade. Universidade Federal de São Carlos – UFSCAR. Email: [email protected]
Vivian Guilherme
Jornalista. Mestranda no Programa de Pós-graduação em Ciência, Tecnologia e Sociedade. Universidade Federal de São Carlos – UFSCAR. email: [email protected]
Direito – Sociedade – Tecnologia
Por que preferimos o triângulo?
Jornalista Mestranda em Ciência, Tecnologia e Sociedade Programa de Pós-Graduação da Universidade Federal de São Carlos - UFSCAR
Publicitária. Mestranda no Programa de Pós-graduação em Ciência, Tecnologia e Sociedade. Universidade Federal de São Carlos – UFSCAR. Email:
Pós-Doutor em Ciência Política e em Direito. Coordenador do Curso de Licenciatura em Pedagogia, da UFSCar. Professor Associado II da Universidade Federal de São Carlos – UFSCar. Departamento de Educação- Ded/CECH. Programa de Pós-Graduação em Ciência, Tecnologia e Sociedade/PPGCTS/UFSCar Head of BRaS Research Group – Constitucional Studies and BRaS Academic Committee Member. Advogado (OAB/108390).
Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi
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