4 LEGITIMIDADE DEMOCRÁTICA
Diferentemente do que acontece no Common Law estadunidense, no Brasil, e em muitos outros Estados democráticos de Direito, os julgadores e a maioria dos membros do Poder Judiciário não são eleitos. No entanto, embora falte o elemento da vontade popular, tais juristas exercem um poder político – poder este que os permite, inclusive, invalidar atos praticados pelas outras esferas do Poder.
Alexander Bickel define como “dificuldade contramajoritária” esta possibilidade de que a decisão de um órgão não eleito venha se sobrepor à decisão de um Parlamento, de chefe do Poder Executivo – Presidente da República, no caso republicano –, eleitos, escolhidos pela vontade popular[14]. (apud BICKEL, 1986)
Diante disso, o sistema democrático de uma sociedade pode se ver em crise, já que surge a dúvida de onde se encontraria a legitimidade para que estes (exercentes de mandato popular) também invalidem as decisões daqueles (membros do Poder Judiciário). No entanto, é patente que a maioria das legislações dos Estados democráticos pelo mundo determina que parte do poder político seja exercido por agentes que não sejam eleitos, pois a natureza de suas atuações deve ser técnica e essencialmente imparcial, de modo que os julgadores não possuem vontade política própria, cabendo-lhes apenas aplicar a Constituição e as leis a fim de concretizar a vontade do legislador.
Outrossim, como bem explica Barroso, todo Estado constitucional democrático se funda em duas ideias, que embora centrais, são distintas: constitucionalismo e democracia. O primeiro refere-se ao poder limitado e ao respeito aos direitos fundamentais, de modo que o Estado de Direito nada mais é do que “expressão da razão”. Já democracia está associado à soberania popular, governo do povo, assim o poder reside na vontade da maioria. (apud BARROSO, 2009)
Vontade e governo da maioria está para a democracia, assim como razão e direitos fundamentais para o constitucionalismo — e é natural que tensões e conflitos surjam entre eles. Assim, é necessário que todo ordenamento constitucional sirva para definir as “regras do jogo democrático”, a fim de que seja garantida a ampla participação política, a alternância no poder e o governo da maioria. No entanto, a democracia não deve (e nem pode) se limitar ao princípio majoritário.
Luís Roberto Barroso dá o exemplo de que se em uma sala encontram-se oito indivíduos católicos e dois muçulmanos, o grupo dos católicos não pode simplesmente deliberar e decidir jogar a dupla de muçulmanos pela janela só porque são maioria. Por isso é que todo ordenamento constitucional também deve se destinar à proteção de valores e direitos fundamentais, ainda que contrarie a vontade da maioria. Deste modo, cabe ao Poder Judiciário, por meio de sua Suprema Corte (ou outra com a atribuição de guardiã da Constituição), “velar pelas regras do jogo democrático e pelos direitos fundamentais, funcionando como um ‘fórum de princípios’[15] – não de política – e de ‘razão pública’[16] – não de doutrinas abrangentes, sejam ideologias políticas ou concepções religiosas[17]”. (BARROSO, 2009)
E é por esta razão que a discricionariedade judicial é importante e que o bom exercício de uma jurisdição constitucional legitima a democracia, traz mais garantias à ela do que propriamente riscos. No entanto, conforme afirma Daniel Sarmento, se referindo a ubiquidade constitucional: “embora ela irradie por todo o sistema, e deva sempre estar presente em alguma medida, ela não deve ser invocada para asfixiar a atuação do legislador”[18]. (SARMENTO, 2006)
Esta lógica nada mais é do que a própria preservação da separação dos poderes, mas deve ser acatada com certo cuidado, já que a atividade julgadora não é mecânica. Cabe também ao julgador a integração do próprio direito e, em muitas vezes, também a co-função de criar e inovar o Direito, já que o processo legislativo, na maioria das vezes, é moroso (a edição de uma nova lei pode levar muito tempo), o que torna impossível que se espere uma atitude imediata do Poder Legislativo a cada mudança social, a cada nova exigência social.
5 CONCLUSÃO
O crescimento inegável do Poder Judiciário tem origem na própria crise de legitimidade e representatividade que vive a sociedade atual. O Poder Judiciário encontra respaldo e justificativa constitucional para sua atuação inovativa, de caráter normativo, e funda-se na própria necessidade de que se supram as omissões e que sejam prolatadas decisões justas solucionando as demandas judiciais. Contudo, o ativismo deve ter como marca a eventualidade, deve ser de caráter residual e a postura ativista deve ser tomada somente em situações e momentos específicos, já que não há nenhuma democracia sem atividade política, sem um Poder Legislativo legítimo e dotado de credibilidade.
Nenhuma democracia vive apenas do princípio majoritário, é preciso que haja sempre, além de um governo exercido pela maioria, a garantia de uma eficaz alternância no poder e de uma ampla participação política da sociedade. Além disso, é fundamental que cada Constituição seja capaz de assegurar a proteção dos valores e direitos fundamentais dos indivíduos.
Na necessidade de se preservar os direitos é que a discricionariedade judicial se faz importante, de modo que o bom e regular exercício da jurisdição, com respaldo constitucional, além de legitimar a democracia, proporciona mais garantias do que riscos, é mais benéfica do que maléfica. A própria lógica da separação dos poderes exige que haja certa discricionariedade judicial na integração do Direito — com seus devidos cuidados aqui mencionados a fim de se garantir a independência dos demais poderes, sem que o Judiciário afaste a função do Poder Legislativo.
E é justamente por meio da moral, da ética, dos costumes e do conceito de justiça repensado e atualizado ao longo dos tempos que os legisladores e julgadores acompanham as mudanças sociais. Se formos esperar pela intervenção do Estado na adequação das leis às exigências da sociedade, vamos assistir a enormes injustiças sendo cometidas em nossos tribunais pelo simples fato de que o Direito é algo vivo, dinâmico, que é aplicado de acordo com cada situação ou lugar. São as mudanças e necessidades sociais que movimentam o ordenamento jurídico e o fazem caminhar lado a lado com o progresso.
REFERÊNCIAS
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RAWLS, John. O liberalismo político. 2000, p. 261.
SARMENTO, Daniel. Ubiquidade constitucional: os dois lados da moeda, Revista de Direito do Estado 2:83, 2006
Notas
[1] HART, Herbert L. A. O conceito de direito. Trad. de A. Ribeiro Mendes. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1994.
[2] DWORKIN, Ronald. Los derechos en serio. Trad. Marta Guastavino. Barcelona, Ariel, 1995.
[3] HIRSCHL, Ran. The judicialization of politics. In: Whittington, Kelemen e Caldeira (eds.), The Oxford Handbook of Law and Politics, 2008, p. 124-125.
[4] BARROSO, Luís Roberto. Judicialização, Ativismo Judicial e Legitimidade Democrática, 2009.
[5] FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986.
[6] BARROSO, Luís Roberto. Fundamentos Teóricos e Filosóficos do Novo Direito Constitucional Brasileiro. (Pós-modernidade, teoria crítica e pós-positivismo). In: ______ BARROSO, Luís Roberto (Org.). A Nova interpretação Constitucional: Ponderação, Direitos Fundamentais e Relações Privadas. Rio de Janeiro: Renovar, 2008.
[7] MONTESQUIEU, Charles de Secondat Baron de. O Espírito das Leis. São Paulo: Martins Fontes, 1993, p. 181.
[8] ALEXY, Robert. Teoría de La Argumentación Jurídica. Tradução de Manuel Atienza e Izabel Espejo. Madrid. Editora: Centro de Estudios Constitucionales, 1989.
[9] SCHMITT, Carl. Teoría de La Constitución. México. Editora: Nacional, 1996.
[10] BITTENCOURT, C. A. Lúcio. A interpretação como parte integrante do processo legislativo. Revista de Serviço Público, ano 5, v. 4, n. 3, dezembro de 1942.
[11] WENECK, Luiz; CARVALHO, Maria Resende de; MELO, Manuel Palacios Cunha de; BURGOS, Marcelo Baumann. A judicialização da Política e das Relações Sociais no Brasil. Rio de Janeiro. Editora: Revan. 1999.
[12] VILE, M. J. C. Constitutionalism and the Separation of Powers. Liberty Fund, 1998, p. 401-404.
[13] BARROSO, Luís Roberto. Judicialização, Ativismo Judicial e Legitimidade Democrática, 2009.
[14] BICKEL, Alexander. The least dangerous branch, 1986, p. 16-s.
[15] DWORKIN, Ronald. The forum of principle. In: A matter of principle, 1985.
[16] RAWLS, John. O liberalismo político. 2000, p. 261.
[17] BARROSO, Luís Roberto. Judicialização, Ativismo Judicial e Legitimidade Democrática, 2009.
[18] SARMENTO, Daniel. Ubiquidade constitucional: os dois lados da moeda, Revista de Direito do Estado 2:83, 2006.