1. INTRODUÇÃO
No Recurso Extraordinário (RE) Nº 636.331 e no Agravo em Recurso Extraordinário (ARE) Nº 766.618, o STF decidiu sobre a colisão entre o Código de Defesa do Consumidor (CDC) e as Convenções de Varsóvia e Montreal em relações de consumo de transporte aéreo internacional. Especificamente, em caso de extravio de bagagem em viagem aérea internacional, o Pretório Excelso discutiu se deve ser aplicado o CDC ou se devem ser aplicados os tratados internacionais para estabelecer o valor e as condições da indenização devida.
O CDC estabelece, em seu art. 14, a completa reparação dos danos causados ao consumidor; e o prazo prescricional adotado é de 5 anos. Enquanto a Convenção de Varsóvia, alterada pela Convenção de Montreal, estabelece um sistema de indenização tarifada aos passageiros de companhias aéreas em viagens internacionais e um prazo prescricional de 2 anos. No sistema dos tratados internacionais, estabelece-se um valor máximo para as indenizações a passageiros, de modo que se torna evidente que o CDC é mais benéfico ao consumidor.
2. FUNDAMENTOS JURÍDICOS
2.1. DA CELEBRAÇÃO DE TRATADOS E SUA EXIGIBILIDADE NO PLANO JURÍDICO INTERNO
De modo geral, o processo de celebração de tratados internacionais se subdivide nas seguintes etapas: negociação; assinatura; ratificação; vigência. Conforme amplamente difundido na doutrina, a assinatura do tratado não o torna imediatamente aplicável entre os seus celebrantes. A assinatura tão somente:
- Encerra a fase de negociação do tratado, formalizando os pontos nos quais as partes celebrantes entraram em acordo;
- Autentica o documento, de modo que eventuais alterações futuras somente sejam possíveis mediante reabertura de negociações (caso o tratado ainda não esteja em vigor) ou emendas (caso o tratado já esteja em vigor);
- Cria o compromisso de que os Estados celebrantes não empreenderão medidas que possam frustrar os objetivos do tratado.
É pacífico na doutrina que a internalização de tratados em uma dada ordem jurídica depende de processo de ratificação, o qual possui, geralmente, a participação dos Poderes Legislativo e Executivo. A ratificação consubstancia-se em uma medida de controle exercida pelos Estados para evitar que seus representantes, no processo de elaboração e assinatura dos tratados, os insiram em compromissos que lhes sejam desvantajosos ou que sejam flagrantemente contrários ao interesse público. Decorre desta finalidade a participação dos parlamentos (constituídos por representantes do povo) no processo de ratificação. Somente após a assinatura e depósito do respectivo instrumento de ratificação (documento que formaliza a aceitação definitiva dos termos do tratado) no país ou órgão depositário, pode-se falar que o Estado celebrante se encontra comprometido com os termos do tratado.
Ademais, além da ratificação, é necessário que o tratado esteja vigente para produzir efeitos jurídicos. Os pressupostos para a vigência de tratados multilaterais (aqueles que possuem várias partes celebrantes) são geralmente estabelecidos como uma cláusula dentro do próprio tratado. É usual que tal cláusula estabeleça que a entrada em vigor de determinado tratado internacional dependerá de que um número mínimo de Estados celebrantes o tenham ratificado. Portanto, a exigibilidade dos tratados internacionais em determinado país depende fundamentalmente de sua ratificação no plano interno e de sua entrada em vigor no plano externo. Para a análise do caso em epígrafe, torna-se vital elucidar como se dá a internalização de tratados internacionais no ordenamento jurídico brasileiro, isto é, como se dá especificamente o processo de ratificação dos tratados internacionais conforme as previsões constitucionais brasileiras.
No ordenamento jurídico brasileiro, a ratificação é um ato discricionário do Presidente da República que apresenta como atribuição constitucional “celebrar tratados, convenções e atos internacionais, sujeitos a referendo do Congresso Nacional” (art. 84, VIII, CF/88). Ao Congresso Nacional, por sua vez, compete “resolver definitivamente sobre tratados, acordos ou atos internacionais que acarretem encargos ou compromissos gravosos ao patrimônio nacional” (art. 49, I, CF/88).
Com base na descrição anterior, resumimos assim o processo de ratificação:
- O Congresso Nacional recebe mensagem do Presidente da República contendo a Exposição de Motivos (EM) do Ministro das Relações Exteriores e o inteiro teor do tratado sujeito à aprovação.
- O Congresso Nacional poderá aprovar o texto ou rejeitá-lo. Em caso de rejeição, o tratado não poderá ser ratificado. Caso o texto seja aprovado, o Presidente do Congresso promulgará o respectivo decreto legislativo, e o Presidente da República estará autorizado a ratificar o tratado.
- O instrumento de ratificação é formalizado pelo Presidente e depositado no país correspondente.
- Por fim, é realizada a promulgação de um decreto presidencial, publicado no Diário Oficial da União, atribuindo executoriedade ao tratado internacional.
- A jurisprudência brasileira tem sido firme no entendimento de que os tratados internacionais somente podem ser exigíveis no plano interno a partir da promulgação e publicação do decreto presidencial no DOU. Ainda que o tratado tenha sido ratificado, o tratado não pode ser exigido internamente por particulares. Neste sentido, é útil o trecho da lavra do Prof. Valério Mazzuoli:
O STF tem entendido ser a promulgação do tratado necessária à sua aplicabilidade interna. Nesse sentido foi o que o STF recusou o cumprimento de carta rogatória expedida pela República da Argentina, na qual se pretendia que o Brasil concedesse o exequatur à sentença proferida em medida cautelar, sob a alegação de que a Convenção sobre Cumprimento de Medidas Cautelares, celebrada pelo Brasil com os demais países do Mercosul, embora tenha sido ratificada, não estava ainda em vigor no Brasil por faltar-lhe a promulgação executiva. (MAZZUOLI, Valério. Curso de Direito Internacional Público. 10 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016. p. 398).
Nesse mesmo sentido, é elucidativo o voto do Min. Celso de Mello reproduzido a seguir. O referido voto resume o processo de aprovação dos tratados internacionais no Brasil e exterioriza o entendimento de que a produção de efeitos jurídicos de tratados internacionais somente se inicia no Brasil, em seu plano jurídico interno, a partir da publicação do decreto presidencial no DOU. Antes disso não há a possibilidade de se pleitear judicialmente o cumprimento do tratado na ordem jurídica interna.
O exame da vigente CF permite constatar que a execução dos tratados internacionais e a sua incorporação à ordem jurídica interna decorrem, no sistema adotado pelo Brasil, de um ato subjetivamente complexo, resultante da conjugação de duas vontades homogêneas: a do Congresso Nacional, que resolve, definitivamente, mediante decreto legislativo, sobre tratados, acordos ou atos internacionais (CF, art. 49, I) e a do Presidente da República, que, além de poder celebrar esses atos de direito internacional (CF, art. 84, VIII), também dispõe – enquanto chefe de Estado que é – da competência para promulgá-los mediante decreto. O iter procedimental de incorporação dos tratados internacionais – superadas as fases prévias da celebração da convenção internacional, de sua aprovação congressional e da ratificação pelo chefe de Estado – conclui-se com a expedição, pelo Presidente da República, de decreto, de cuja edição derivam três efeitos básicos que lhe são inerentes: (a) a promulgação do tratado internacional; (b) a publicação oficial de seu texto; e (c) a executoriedade do ato internacional, que passa, então, e somente então, a vincular e a obrigar no plano do direito positivo interno. Precedentes. (ADI 1.480 MC, rel. min. Celso de Mello, j. 4-9-1997, P, DJ de 18-5-2001).
A partir desta pormenorizada análise, cumpre agora verificar se os instrumentos internacionais citados (as Convenções de Varsóvia e Montreal) foram internalizados no Brasil e, em caso afirmativo, a partir de quando se tornaram vinculantes.
A Convenção de Varsóvia foi assinada pelo Brasil em 1929 e promulgada através do Decreto nº 20.704/1931. Em 1975, celebrou-se o Protocolo Adicional n° 4 na cidade canadense de Montreal que alterou o texto da Convenção de Varsóvia. O instrumento celebrado em 1975, somente foi ratificado e promulgado no Brasil em 1998 por meio do Decreto n° 2.861/1998.
Portanto, conclui-se que a Convenções de Varsóvia e Montreal, com o seu texto atual, somente passaram a vigorar no Brasil a partir de 1998, sendo exigíveis somente após esta data. Ademais, cumpre ressaltar que, em termos cronológicos, as Convenções de Varsóvia e Montreal constituem normas posteriores ao CDC (1991), pois o texto atualizado com o qual o Brasil se obrigou somente se tornou norma em 1998.
2.2. CONFLITOS NORMATIVOS ENTRE TRATADOS INTERNACIONAIS E NORMAS INTERNAS NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO
Após a análise sobre a exigibilidade e vigência dos tratados internacionais em nosso ordenamento pátrio, cumpre agora buscar a fundamentação jurídica sobre o conflito normativo entre o Código de Defesa do Consumidor e as Convenções de Varsóvia e Montreal.
Neste contexto, deve-se identificar como os tratados analisados foram internalizados no ordenamento brasileiro para, então, confrontá-los com o CDC, que é lei ordinária.
Atualmente, os tratados podem ingressar no sistema jurídico pátrio em três níveis hierárquicos distintos, a saber: (I) norma com status constitucional; (II) norma com status supralegal; (III) norma com status legal (lei ordinária).
I - Status constitucional: Os tratados sobre direitos humanos aprovados pelo Congresso Nacional pelo processo legislativo oneroso semelhante ao das emendas à constituição possuirão o status de norma constitucional conforme previsão do art. 5º, § 3º da CF/88:
§ 3º Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais.
II- Status supralegal: Os tratados sobre direitos humanos aprovados pelo Congresso Nacional por maioria simples, presente a maioria absoluta, possuirão status supralegal, isto é, abaixo da Constituição, mas acima das demais leis. Trata-se de construção jurisprudencial brasileira a partir de precedente firmado pelo STF sobre o Pacto de San Jose da Costa Rica, que versa sobre direitos humanos e que, dentre suas cláusulas, proíbe a prisão civil por dívidas. Para fins ilustrativos, segue trecho de autoria do Min. Gilmar Mendes sobre o assunto:
Portanto, diante do inequívoco caráter especial dos tratados internacionais que cuidam da proteção dos direitos humanos, não é difícil entender que a sua internalização no ordenamento jurídico, por meio do procedimento de ratificação previsto na Constituição, tem o condão de paralisar a eficácia jurídica de toda e qualquer disciplina normativa infraconstitucional com ela conflitante. Nesse sentido, é possível concluir que, diante da supremacia da Constituição sobre os atos normativos internacionais, a previsão constitucional da prisão civil do depositário infiel (...) deixou de ter aplicabilidade diante do efeito paralisante desses tratados em relação à legislação infraconstitucional que disciplina a matéria (...). Tendo em vista o caráter supralegal desses diplomas normativos internacionais, a legislação infraconstitucional posterior que com eles seja conflitante também tem sua eficácia paralisada. (...) Enfim, desde a adesão do Brasil, no ano de 1992, ao Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (art. 11) e à Convenção Americana sobre Direitos Humanos 'Pacto de San José da Costa Rica (art. 7º, 7), não há base legal par aplicação da parte final do art.5º, inciso LXVII, da Constituição, ou seja, para a prisão civil do depositário infiel." (RE 466343, Voto do Ministro Gilmar Mendes, Tribunal Pleno, julgamento em 3.12.2008, DJe de 5.6.2009)
III – Status de lei ordinária: tratados que não versem sobre direito humanos, quando aprovados no Brasil, adquirem o status de lei ordinária. Este é o entendimento sedimentado na jurisprudência pátria desde 1977 por ocasião do julgamento do RE 80.004/SE pelo STF, como observa Mazzuoli:
Ou seja, havendo conflito entre tratado e lei interna, a solução é encontrada aplicando-se o critério da lex posterior derogat priori. Desde 1977, vigora na jurisprudência do STF esse último sistema, em que o tratado, uma vez formalizado, passa a ter força de lei ordinária, podendo, por isso, revogar as disposições em contrário, ou ser revogado (perder eficácia) diante de lei posterior. (MAZZUOLI, Valério. Curso de Direito Internacional Público. 10 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016. p. 398).
No Brasil, adota-se o sistema do treaty override, tratando-se de construção da jurisprudência nacional ocasionada pelo silêncio do legislador.
(...) a jurisprudência do STF tem adotado a possibilidade do treaty override no Direito brasileiro, entendendo ser possível a superação de um trtado em virtude da edição de lei posterior. O chamado treaty override – revogação do tratado (expressa ou tacitamente) pela lei posterior incompatível – ainda hoje encontra amparo na jurisprudência da nossa Suprema Corte. (MAZZUOLI, Valério. Curso de Direito Internacional Público. 10 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016. p. 398).
Como resultado, aplicam-se as regras que normalmente são aplicadas entre leis em colisão:
- A norma posterior derroga norma anterior descrita na máxima “lex posterior derogat priori”.
- A norma especial derroga norma geral descrita na máxima “lex specialis derogat generalis”.
- A norma geral posterior não derroga norma especial anterior descrita na máxima “lex generalis non derogat lege speciali priori”.
No caso concreto que se está a debater sobre o conflito entre as Convenções de Varsóvia e Montreal e o CDC deve-se observar que as referidas convenções não tratam sobre direitos humanos, tendo sido internalizadas pelo processo tradicional. Desse fato resulta que as Convenções de Varsóvia e Montreal possuem força de lei ordinária de forma similar ao CDC. Portanto, deve-se atentar para os critérios tradicionais de resolução de antinomias entre normas de mesmo patamar. Verifica-se que o CDC trata sobre relações de consumo em geral, tendo sido promulgado em 1991. Enquanto que as Convenções de Varsóvia e Montreal tratam especificamente de relações de consumo no contexto aeronáutico de viagens internacionais, e que o texto atual passou a vigorar no Brasil a partir de 1998. Portanto os tratados internacionais constituem normas especiais (além de posteriores). Desse modo, os tratados devem prevalecer no referido caso concreto.
2.3. DO MANDAMENTO CONSTITUCIONAL
A Constituição brasileira estabeleceu de forma explícita em seu art. 178 que o assunto discutido no âmbito destes processos seria regulamentado por meio de convenções internacionais. Segue reprodução do dispositivo constitucional:
Art. 178. A lei disporá sobre a ordenação dos transportes aéreo, aquático e terrestre, devendo, quanto à ordenação do transporte internacional, observar os acordos firmados pela União, atendido o princípio da reciprocidade. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 7, de 1995)
Depreende-se do dispositivo que a própria CF/88 determinou que, em se tratando de transporte internacional, a República Federativa do Brasil deve seguir as convenções internacionais regularmente internalizadas no ordenamento jurídico pátrio. Trata-se de norma constitucional de eficácia limitada na qual se estipula que a regulamentação deverá se dar por meio de acordos internacionais.
Assim, como o Brasil é signatário das Convenções de Varsóvia e Montreal e os referidos tratados foram internalizados de forma regular em nosso ordenamento jurídico, verifica-se que estes devem ser aplicados em casos concretos relativos a transporte aéreo internacional. Este entendimento está conforme o texto constitucional. Por outro lado, em se tratando de viagens domésticas, deverá ser aplicado o CDC.
3. CONCLUSÃO.
Da análise empreendida, são retiradas as conclusões que se seguem.
A Convenção de Varsóvia foi modificada pela Convenção de Montreal em 1975 e a ratificação e decreto presidencial, que formalizam a aceitação do texto no sistema jurídico brasileiro, somente ocorreu em 1998. Além disso, as referidas convenções não tratam sobre direitos humanos. Disso, conclui-se que o texto convencional, com sua redação atual, entrou em vigor no Brasil em 1998, possuindo força de lei ordinária. Ressalte-se também que as convenções possuem caráter de lei especial porque regulam especificamente o transporte aéreo internacional. Por sua vez, o CDC foi promulgado em 1991 e regulamenta, de forma geral, as relações de consumo. Assim, no contexto fático aqui discutido, o CDC possui o caráter de lei ordinária geral.
Seguindo os critérios de resolução de antinomias, os tratados internacionais devem prevalecer sobre o CDC quando o caso concreto se referir a transporte aéreo internacional, pois a lei posterior deve prevalecer sobre a lei anterior, e a lei especial deve prevalecer sobre a lei geral.
Ademais, o art. 178 da CF/88 estabelece uma previsão explícita de que o transporte internacional deve ser regulado no Brasil por meio de convenções internacionais. O que reforça a tese de prevalência dos tratados internacionais neste caso concreto
4. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.
MAZZUOLI, Valério. Curso de Direito Internacional Público. 10 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016.
REZEK, José Francisco. Direito Internacional Público: curso elementar. 13. ed. São Paulo: Saraiva, 2011.
SEITENFUS, Ricardo e VENTURA, Deisy. Direito Introdução ao Direito Internacional Público. 1ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1999.