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A convenção internacional sobre a eliminação de todas as formas de discriminação racial e o ordenamento jurídico brasileiro

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Resumo:


  • A globalização dos direitos humanos é uma questão central do século, envolvendo o equilíbrio entre poder e direitos individuais.

  • A universalidade dos direitos humanos, promovida pela ONU, enfrenta desafios de aceitação e implementação, especialmente em países com diferenças culturais ou políticas que resistem a esses conceitos.

  • A efetivação dos direitos humanos demanda ações concretas e pode envolver medidas como ações afirmativas, incluindo cotas, para promover igualdade e combater discriminações históricas.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

4 AÇÕES AFIRMATIVAS E O RACISMO

            4.1 IDÉIA GERAL

            Pode-se dizer que, nos países com longo passado de escravidão, a idéia de neutralidade estatal tem-se revelado um verdadeiro fracasso. Portanto, nas palavras de Joaquim B. Barbosa Gomes (45) "é indispensável o reconhecimento de que a reversão de um tal quadro só será viável com a renúncia do Estado à sua histórica neutralidade em questões sociais, devendo assumir, ao contrário, uma posição ativa, até mesmo radical se vista à luz dos princípios norteadores da sociedade liberal clássica".

            Dessa imposição de atuação ativa do Estado nasceram as Ações Afirmativas, concebidas originariamente nos Estados Unidos, mas hoje já adotadas em diversos países europeus, asiáticos e africanos, com as adaptações necessárias a situação de cada país.

            Inicialmente, as Ações Afirmativas eram definidas como um encorajamento por parte do Estado, para que tanto as escolas como as empresas refletissem em sua composição a representação de cada grupo na sociedade ou no respectivo mercado de trabalho.

            Porém, nos anos 70, deu-se início a um processo de alteração conceitual do instituto, o qual passou a ser associado à idéia de realização da igualdade de oportunidades através da imposição de cotas rígidas de acesso de representantes das minorias a determinados setores do mercado de trabalho e a instituições educacionais.

            Atualmente, nos dizeres de Joaquim B. Barbosa Gomes, podemos definir ações afirmativas:

            Como um conjunto de políticas públicas e privadas de caráter compulsório, facultativo ou voluntário, concebidas com vistas ao combate à discriminação racial, de gênero e de origem nacional, bem como para corrigir os efeitos presentes da discriminação praticada no passado, tendo por objetivo a concretização do acesso de bens a bens fundamentais como a educação e o emprego. (46)

            Portanto, elas têm como objetivo não apenas coibir a discriminação do presente, mas sobretudo eliminar os efeitos da discriminação do passado, os quais tendem a se perpetuar. Esses efeitos podem ser vislumbrados nas profundas desigualdades sociais entre grupos dominantes e grupos marginalizados.

            Em suma, trata-se de políticas e de mecanismos de inclusão concebidas por entidades públicas, privadas e por órgãos dotados de competência jurisdicional, voltados para a concretização de um objetivo universalmente reconhecido, qual seja o da efetiva igualdade de oportunidades a que todos os seres humanos têm direito.

            Flávia Piovesan entende que as ações afirmativas:

            ...constituem medidas especiais de proteção ou incentivo a grupos ou indivíduos, com vistas a promover sua ascensão na sociedade até um nível de equiparação com os demais. As ações afirmativas constituem medidas especiais e temporárias que, buscando remediar um passado discriminatório, objetivam acelerar o processo de igualdade, com o alcance da igualdade substantiva por parte de grupos socialmente vulneráveis, como as minorias étnicas e raciais, dentre outros grupos. (47)

            Portanto, são medidas adotadas para remediar um passado discriminatório, objetivando transformar a igualdade formal em igualdade material ou substantiva.

            Porém, este projeto de ‘medidas compensatórias’ sobre as desvantagens sofridas no passado pelas populações excluídas e correção dessa disparidade é inovador na ordem jurídica brasileira e a expressão ‘ação afirmativa’ é recente e pouco assimilada na doutrina nacional.

            4.2 AÇÕES AFIRMATIVAS E A CONVENÇÃO SOBRE TODAS AS FORMAS DE ELIMINAÇÃO DA DISCRIMINAÇÃO RACIAL

            Respaldada pelas idéias de que "a doutrina da superioridade baseada em diferenças raciais é cientificamente falsa, moralmente condenável, socialmente injusta e perigosa" e de que "a discriminação entre as pessoas por motivo de raça, cor ou origem étnica é um obstáculo às relações amistosas e pacíficas entre as nações e é capaz de perturbar a paz e a segurança entre os povos e a harmonia de pessoas vivendo lado a lado", constantes de seu preâmbulo, a CIEFDR, tem o grande mérito de convalidar as políticas de ação afirmativa enquanto remédios temporários de inclusão social de grupos étnicos e raciais. O art. 1o, ítem 4, é claro nesse sentido, de modo semelhante ao estabelecido pela Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher:

            Não serão consideradas discriminação racial as medidas especiais tomadas com o único objetivo de assegurar o progresso adequado de certos grupos raciais ou étnicos ou de indivíduos que necessitem da proteção que possa ser necessária para proporcionar a tais grupos ou indivíduos igual gozo ou exercício de direitos humanos e liberdades fundamentais, contanto que tais medidas não conduzam, em conseqüência, à manutenção de direitos separados para diferentes grupos raciais e não prossigam após terem sido alcançados os seus objetivos.

            A norma em favor da aplicação de políticas de ação afirmativa é reforçada pelo artigo 2o, item 2, da Convenção, que dispõe:

            Os Estados-partes tomarão, se as circunstâncias o exigirem, nos campos social, econômico, cultural e outros, medidas especiais e concretas para assegurar, como convier, o desenvolvimento ou a proteção de certos grupos raciais ou de indivíduos pertencentes a esses grupos, com o objetivo de garantir-lhes, em condições de igualdade, o pleno exercício dos direitos humanos e das liberdades fundamentais. Essas medidas não deverão, em caso algum, ter a finalidade de manter direitos desiguais ou distintos para os diversos grupos raciais, depois de alcançados os objetivos, em razão dos quais foram tomadas.

            Portanto, o próprio texto da CIEFDR, prevê a possibilidade de "discriminação positiva". O artigo 1o, sugere medidas especiais que podem ser elaboradas e implementadas pelos Estados, a fim de proteger os direitos e as liberdades fundamentais de grupos que sofrem discriminação e que, portanto, se encontram numa situação de desigualdade. São medidas especiais que não podem ser vistas e consideradas como medidas discriminatórias, desde que, em primeiro lugar, têm o objetivo e o efeito de promover, efetivamente, os direitos daqueles grupos que sofrem discriminação. Em segundo lugar, são medidas temporárias que vão existir, durante um certo tempo, enquanto a igualdade não for atingida. A partir do momento em que essa igualdade for atingida, as medidas especiais devem ser abolidas, até porque a sua continuidade acabaria resultando na produção de uma nova desigualdade, agora em favor daquele grupo beneficiário.

            Vale ressaltar, a Convenção 111 da OIT e a Convenção Relativa à Luta Contra a Discriminação no Campo do Ensino, ambas ratificadas pelo Brasil em 1968: "Nos termos desses tratados, o País assume o compromisso de formular e aplicar uma política nacional que tenha por fim promover, por métodos adequados às circunstâncias e aos usos locais, a igualdade de oportunidades de tratamento, respectivamente, em matéria de emprego e de ensino".

            4.3 FUNDAMENTOS CONSTITUCIONAIS DA AÇÃO AFIRMATIVA

            Antes de abordar o tema da constitucionalidade das ações afirmativas, é necessário fazer menção que na história do ‘Estado de Direito‘, duas noções de princípio da igualdade têm sido recorrentes nos textos constitucionais. De um lado, na acepção de igualdade formal, fala-se na necessidade de vedar ao Estado toda sorte de tratamento discriminatório negativo, ou seja, de proibir todos os atos administrativos, judiciais ou expedientes normativos do Poder Público que visem à privação do gozo das liberdades públicas fundamentais do indivíduo com base em critérios suspeitos tais como a raça, a religião ou a classe social. De outro, sustenta-se que, além de não discriminar arbitrariamente, deve o Estado promover a igualdade material de oportunidades por meio de políticas públicas e leis que atentem para as especificidades dos grupos menos favorecidos, compensando, desse modo, as eventuais desigualdades de fato decorrentes do processo histórico e da sedimentação cultural. (48)

            A igualdade formal se reduz à frase de que "todos são iguais perante a lei", o que significou um decisivo avanço histórico decorrente das modernas Declarações de Direitos do final do século XVIII, as quais consagravam a ótica contratualista liberal, pela qual os direitos humanos se restringiam à liberdade, segurança e propriedade, complementados pela resistência e opressão. Portanto, eram nestas circunstâncias que se introduzia a concepção formal de igualdade, como um dos elementos a demarcar o Estado de Direito Liberal.

            Porém, esta concepção de igualdade puramente formal, começou a ser questionada, quando se verificou que a igualdade de direitos não era, por si só, suficiente para tornar acessíveis a quem era socialmente desfavorecido as oportunidades de que gozavam os indivíduos socialmente privilegiados, ou seja, não se pensava no valor da igualdade sob a perspectiva material e substantiva (49).

            Torna-se assim necessário repensar o valor da igualdade, a fim de que as especificidades e as diferenças sejam observadas e respeitadas. Somente mediante essa nova perspectiva é possível transitar-se da igualdade formal para a igualdade material ou substantiva. Vale dizer, ao lado do direito à igualdade, nasce o direito à diferença, o que propicia o chamado processo de especificação do sujeito de direito (50).

            Dessa nova visão resultou o surgimento em diversos ordenamentos jurídicos nacionais e na esfera do Direito Internacional dos Direitos Humanos de políticas sociais de apoio e de promoção de determinados grupos socialmente fragilizados. A essas políticas sociais, que nada mais são do que tentativas de concretização da igualdade material ou substancial, dá-se o nome de ação afirmativa.

            As ações afirmativas se definem como políticas públicas e privadas voltadas à concretização do princípio constitucional da igualdade material e à neutralização dos efeitos da discriminação racial, de gênero, de idade e de origem nacional.

            Sendo assim, não se pode perder de vista o fato de que na história universal não há nenhum exemplo de nação que tenha se erguido de uma condição periférica à de potência econômica e política, digna de respeito no cenário político internacional, mantendo no plano doméstico uma política de exclusão em relação a parcela expressiva de seu povo.

            É preciso uma ampla conscientização sobre o fato de que a marginalização sócio-econômica a que são relegadas as minorias, principalmente as raciais, resulta de um único fenômeno: a discriminação.

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            Cabe ao Estado, a opção entre duas posturas distintas: manter-se na posição de neutralidade e permitir a total sujeição dos grupos inferiorizados e desprovidos de força política ou, ao contrário, atuar ativamente no sentido de acabar com as desigualdades sociais, as quais têm como público alvo precisamente as minorias raciais, étnicas, sexuais e nacionais.

            Portanto, essa nova concepção, ainda tão recente, apresenta duas metas básicas, que visam à implementação do direito à igualdade. São elas: o combate à discriminação e a promoção da igualdade, as quais não podem ser dissociadas (51).

            A Constituição brasileira é pródiga em dispositivos que não só possibilitam a adoção de ações afirmativas por parte do Estado e de particulares, mas de fato criam verdadeiro mandamento de sua implementação sob pena de inconstitucionalidade por omissão. A adoção do princípio da igualdade material, a par do prestígio da igualdade formal consolidada na fórmula do artigo 5 o, inciso I, não poderia ser mais explícita.

            Ao proclamar a Carta da República em vigor, os constituintes declaram ter sido reunidos para instituir um Estado Democrático de Direito, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, e a promover a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos. A mensagem é clara no sentido do próprio reconhecimento da existência das desigualdades e do dever de combatê-las.

            Vale ressaltar também, que, o artigo 3 o, que define os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, é enfático ao consignar tanto a redução das desigualdades sociais (inciso III) e regionais como a erradicação da pobreza e marginalização, de um lado, e a promoção do bem de todos, sem preconceito de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação, de outro (inciso IV).

            Também o artigo 170 o da Constituição reforça, uma vez mais, o objetivo de erradicação da desigualdade já manifestado nos objetivos da República no seu inciso VII.

            Com base nesses fundamentos, a professora Carmem Lúcia Antunes Rocha mostra que, não obstante tenha o princípio da igualdade sido uma constante e todos os textos constitucionais brasileiros, é notável que, na Constituição de 1988, atingiu a sua máxima dimensão, criando-se, na sua feliz expressão, uma nova isonomia, mais rigorosa e diretamente relacionada à igualdade no sentido material que descreve. Em suas palavras:

            Verifica-se que todos os verbos utilizados na expressão normativa – construir, erradicar, reduzir, promover – são de ação, vale dizer, designam um comportamento ativo. O que se tem, pois, é que os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil são definidos em termos de obrigações transformadoras do quadro social e político retratado pelo constituinte quando da elaboração do texto constitucional. (52)

            E mais, deve-se ressaltar a familiaridade da ordem constitucional vigente com o instituto da ação afirmativa voltada a beneficiar os segmentos populacionais historicamente discriminados. Prova exemplar disso é a proteção do mercado de trabalho da mulher, mediante incentivos específicos, conforme o disposto no inciso XX, do artigo 7o.

            Na verdade, nem mesmo a fixação de cotas - faceta mais ousada da ação afirmativa - é estranha ao ordenamento jurídico-constitucional brasileiro. Basta lembrar, que o inciso VII, do artigo 37 o, da Carta Política de 1988 determina a reserva legal de percentual de cargos e empregos públicos para as pessoas portadoras de deficiência, o que se concretizou com a publicação, em 1990, da Lei №.º 8.112.

            Portanto, não há o que se dizer que a referida política seria insconstitucional, ao contrário, realizaria com extrema profundidade a intenção constitucional, visto que a Cata Magna, em seu Preâmbulo, impõe ao Estado Brasileiro que assegure a concretização do bem-estar, da igualdade e da justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos e fundamentada na cidadania e na dignidade humana. " Se o Preâmbulo é o espírito da Constituição-cidadã, claro está que ela determina ao Estado que não meça esforços na busca dos instrumentos necessários, reais e possíveis para alcançarem-se aqueles resultados de forma verdadeira e pragmática e não somente formal" (53)

            Pode-se concluir que o Direito Constitucional brasileiro abriga não somente o princípio e as modalidades implícitas e explícitas de ação afirmativa, mas também as que emanam dos tratados internacionais de direitos humanos assinados pelo nosso país.

            4.4 AÇÕES AFIRMATIVAS E A DOUTRINA NACIONAL

            Como já foi mencionado, a expressão "Ação Afirmativa" é recente e ainda pouco assimilada pela doutrina nacional. Porém, em 1997, o Grupo de Trabalho Interministerial para a Valorização da População Negra ( GTI ) elaborou um conceito brasileiro próprio para o termo ‘ação afirmativa’, servindo para a implementação de políticas públicas para negros no país:

            As ações afirmativas são medidas especiais e temporárias, tomadas ou determinadas pelo Estado, espontânea ou compulsoriamente, com o objetivo de eliminar desigualdades historicamente acumuladas, garantindo a igualdade de oportunidades e tratamento, bem como de compensar perdas provocadas pela discriminação e marginalização, decorrentes de motivos raciais, étnicos, religiosos, de gênero e outros. Portanto, as ações afirmativas visam combater os efeitos acumulados em virtude das discriminações ocorridas no passado (GTI, 1997).

            Deste conceito, é notório que a correção das desigualdades raciais provocadas por discriminações históricas depende de uma intervenção estatal, e mais, a cor dos indivíduos, é um dos critérios fundamentais para que esses grupos possam ou não ser beneficiados por algum tipo de ação afirmativa.

            Quando houve a elaboração do conceito de ações afirmativas pelo GTI, em 1997, provavelmente não se pensava no emprego ou educação como uma provável área de implantação das ações compensatórias ou projetos de mobilidade social como áreas prioritárias.

            Por mais que haja empenho do governo nessa política, principalmente no que diz respeito a questão racial, pode-se falar em um problema cultural, tendo em vista que a sociedade brasileira não aceita existir uma obrigação moral em relação aos grupos sociais inferiores que sofreram com a discriminação histórica ocorrida no passado e a vivenciada no presente. A idéia de que o Brasil é "um caldeirão de raças e culturas em harmonia impediu que negros e índios denunciassem o racismo e requisitassem melhores condições" (54). O resultado da crença de que não há racismo foi, um dos piores tipos de racismo que se conhece, pois a forma mais eficiente de reforçar o preconceito é achar que ele não existe.

            Vale ressaltar, que o mito da democracia racial no país é muito forte a ponto do indivíduo mostrar-se intolerante com a questão da cor. Prova disso, é que somente 10% dos brasileiros admitem ser, eles mesmos, racistas.

            Em relação a essa questão, Wagner Camilo lembra que:

            Enquanto na nossa sociedade, ainda se esconde a existência do racismo sutil arraigado no dia-a-dia e se difunde uma falsa idéia de democracia racial; por outro lado, muito mais corajosa e honrada fora a sociedade norte-americana, que na metade do século XX admitira ao mundo que era racista, mas que desejava mudar e lutar bravamente contra tamanha infâmia à dignidade humana. Hoje, apesar de o racismo naquele país ainda encontrar-se arraigado e muito difundido, percebem-se enormes avanços e modificações para o alcance da verdadeira isonomia de raças em uma sociedade, e os negros norte-americanos possuem muito mais condições hoje, de ascenderem socialmente e de viverem dignamente do que há cinqüenta anos atrás, alcançando postos(e inúmeros, não um ou outro, como mera figuração ou simbologia de uma falsa democracia) na política, no serviço público, nas artes, nos esportes, enfim, em todos os ramos da sociedade ianque (55).

            As principais propostas para vencer o preconceito estão agrupadas na categoria das chamadas ‘ações afirmativas’, as quais reconhecem que existem grupos com menos oportunidades e, para que tenham as mesmas chances, oferecem a eles alguns privilégios até que o problema se resolva.

            Porém, é importante esclarecer que as ações afirmativas não se reduzem à concessão de cotas, são apenas uma das estratégias de aplicação dessas ações.

            4.5 COTAS PARA NEGROS

            As cotas, como são denominadas certas políticas públicas mais radicais objetivando a concretização da igualdade material, nasceram no bojo ações afirmativas, mas com essas não se confundem.

            Já existem no Brasil algumas leis afirmativas em relação a mulheres e deficientes, mas as políticas em relação a negros só agora dão os primeiros passos.

            Contudo, um dos grandes avanços na adoção de políticas públicas em busca da igualdade, é o Projeto de Lei №. 650, relativo às cotas para negros nas universidades, uma espécie de reserva de mercado, um sistema pelo qual o governo pretende estabelecer percentual obrigatório de negros em todas as instituições de ensino superior.

            O autor do projeto de lei justifica a sua proposição recordando que o desfavorecimento da população negra constitui um dos componentes mais claros do quadro de injustiça social do País. Em reforço à tese, cita o Relatório do Desenvolvimento Humano no Brasil, de 1996, elaborado pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento ( PNDU ) em parceria com o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada ( IPEA ). O documento informa que os negros recebem salários muito menores que os brancos e apresentam índices mais altos de analfabetismo, atraso escolar e reprovação. Logo, embora o Brasil tenha a segunda maior população negra do mundo, esta detém uma parcela mínima de poder.

            Sob o ponto de vista jurídico-constitucional, inexiste vício na adoção de qualquer tipo de ação afirmativa ( inclusive cota ) que se destine a promover a igualdade efetiva entre as raças. Ressalte-se que a medida prevista no artigo 1 do Projeto de Lei №. 650, de 1999, está isenta de punição legal, nos termos do artigo 5 da Constituição Federal, pois não constitui discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais. Em vez de ferir o princípio isonômico que impede favoritismos ou perseguições, ela empresta concretude à Lei Maior, no sentido em que visa promover a redução das desigualdades sociais e, consequentemente, o bem de todos.

            Os defensores afirmam que elas funcionam: nos Estados Unidos, por exemplo, a classe média negra, que era quase inexistente, aumentou consideravelmente por meio dessas políticas. Os críticos, por sua vez, falam que a solução é melhorar o ensino médio e fundamental gratuito e, de quebra, auxiliar a população de baixa renda. Porém essa estratégia pode ser muito demorada, "estudos demonstram que se por um milagre as escolas públicas básicas se tornassem hoje tão boas quanto as particulares, seriam precisos mais de 30 anos para resolver as desigualdades entre pretos e brancos". (56)

            "Além disso, o ensino básico já foi bem melhor e não ajudou a população negra". (57)

            No entanto, há mitos sobre a questão das cotas:

            O primeiro mito é supor-se que um programa de cotas elimina o processo competitivo. É falsa essa visão. O processo continua a ser competitivo entre os indivíduos que compõem o grupo discriminado. Ë como se tivéssemos duas portas de entrada para a universidade, um do grupo discriminado e a que sempre existiu. O vestibular é o mesmo, o processo é competitivo. Cada indivíduo vai estar competindo com os indivíduos do grupo que faz parte. (58)

            A partir dessa análise há um problema jurídico a ser superado, no que se refere à constitucionalidade dessas políticas adotadas pelo governo, como empenho no desenvolvimento de projetos institucionais e sérios, para que elas não se resumam somente em palavras ou slogans e que a própria discriminação não possa ser encarada apenas como um problema individual, mas institucional, que reclama medidas enérgicas, sob pena de não vingar e nesse sentido, há muito que se conquistar em termos de equalização de direitos.

            No tocante a esse tema, o professor Joaquim B. Barbosa, é categórico:

            Como se vê, em lugar da concepção estática da igualdade extraída das revoluções francesa e americana, cuida-se nos dias atuais de se consolidar a noção de igualdade material ou substancial, que longe de se apegar ao formalismo e à abstração da concepção igualitária do pensamento liberal oitocentista, recomenda, inversamente, uma noção dinâmica de igualdade, na qual necessariamente são devidamente pesadas e avaliadas as desigualdades concretas existentes na sociedade, de sorte que as situações desiguais sejam tratadas de maneira dessemelhante, evitando-se, assim, o aprofundamento e a perpetuação de desigualdades engendradas pela própria sociedade. (59)

            Neste contexto da busca da igualdade para os grupos mais desfavorecidos, especialmente sob o ponto de vista do sujeito de direito individualizado, a lição da professora Flávia Piovesan é no sentido de:

            ...buscar a implementação da igualdade do ente abstrato, genérico, destituído de cor, sexo, idade, classe social, dentre de outros critérios, emerge o sujeito de direito concreto, historicamente situado, com especificidades e particularidades. Daí apontar-se não mais ao indivíduo genérica e abstratamente considerado, mas ao indivíduo especificado, considerando-se categorizações relativas ao gênero, idade, etnia raça, etc. (60)

            Neste aspecto, a legislação parece ser o objetivo mínimo (mas não o único) e o principal instrumento de combate ao racismo, mas ainda há necessidade de mobilização social. O Brasil ao ratificar a CIEFDR, foi incentivado, e em alguns casos, obrigado a fazer com que se diminuam os níveis exacerbados de desigualdades e a tomar medidas e políticas compensatórias para atingir esse resultado e por isso, a legislação talvez seja o meio mais eficaz de sustar os efeitos dessa discriminação.

            Relativamente às políticas de ações afirmativas implantadas nos EUA, foram resultados diretos e longos de lutas dos movimentos norte-americanos, sendo considerada exemplar pelos defensores das cotas de afro-descendentes nas universidades, visto que depois da adoção dessa política, na década de 60, os negros americanos dobraram a escolaridade e ascenderam socialmente. O avanço chegou a tal ponto que, algumas associações negras já defendem o fim das cotas porque já se sentem preparadas para enfrentar a concorrência com os brancos em igualdade de condições.

            Porém, aqui no Brasil, não se pode afirmar com precisão se a adoção da mesma política terá condições de produzir o mesmo efeito, até porque uma parte da população negra é contra essa política por entender que ela beneficia apenas um grupo de negros: a classe média e não a população negra como um todo (61).

            No entanto, nota-se que os principais beneficiários dos direitos oriundos de eventual política de mobilização social seriam os negros, deixando de fora outros grupos sociais e minorias, excluídos dessa política libertária, como índios, imigrantes, homossexuais, etc. Talvez porque os negros, no Brasil, sempre estiveram em situação de desvantagem em relação aos brancos e sempre foram a maioria entre os pobres, sendo o racismo determinante para essa condição, havendo, como conseqüência, uma relação íntima entre a pobreza e a questão da cor, assim como em muitos outros países onde existem populações pobres e negras.

            Em relação aos resultados concretos das ações afirmativas nos EUA, afirma a ativista norte-americana no combate à discriminação racial, Gay Macdougall:

            É importante olhar para o contexto histórico: 350 anos de escravidão e depois mais 50 de política de estado e discriminação e segregação racial. Mas nesta curta experiência que temos tido com a ação afirmativa - apenas desde 1968, basicamente – os americanos têm testemunhado que essas ações levam a resultados positivos, como a que ocorreu dentro das Forças Armadas americanas após a II Guerra Mundial, inteiramente segregada racialmente, ou seja, apartados os contingentes de soldados brancos e negros e que numa decisão do então Presidente dos Estados Unidos de cumprir um programa de ação afirmativa nessa área para acabar coma segregação. Isso comprova que, se aplicada com convicção e seriedade, a ação afirmativa tem sucesso. (62)

            Cabe dizer que a defesa das minorias discriminadas, remetem aos grandes paradigmas enfrentados pelas sociedades humanas contemporânea, sendo que a compreensão e aceitação das diferenças implica numa revolução individual e coletiva, na busca da construção de novos valores sociais e de equidade efetiva entre as populações humanas.

            Neste sentido, é essa a opinião de Emerson Gazda:

            É preciso portanto, ter sempre em conta na apreciação das questões inerentes à busca da efetiva igualdade entre as pessoas, que as medidas adotadas para tal fim têm sempre o sentido de corrigir distorção anterior causada pela própria forma de organização da sociedade. Não há, no caso, alguém que seja superior a outrem, mas uma pessoa que recebeu melhor tratamento que outra em momento anterior, o que justifica a adoção de medidas corretivas, inclusive com imposições de agir à iniciativa privada, em nome do princípio da função social da propriedade ( e aqui falo tanto da função social da propriedade material, quanto da imaterial...) (63)

            Portanto, quando se busca uma verdadeira equalização de direitos, surge a necessidade de análise de um primeiro elemento, que é a adoção de atitudes firmes na implementação de políticas realmente efetivas no combate à discriminação, no sentido de buscar não só na legislação a garantia da universalidade do direito à diferença, como também, na mobilização institucional de grupos e organizações no combate à discriminação.

            O segundo elemento é a necessidade de um estudo de maior enfoque sobre os efeitos gerados por essas políticas públicas que podem vir a causar sobre esses grupos politicamente inferiorizados.

            Deve-se tomar muito cuidado para não conduzir a criação desses programas sociais em defesa da apartação das minorias a um instrumento de discriminação contrária. Portanto, a finalidade desse sistema de proteção que privilegia um determinado grupo não pode voltar-se contra o seu enfoque principal, que é o de eliminar as injustiças praticadas contra esses grupos sociais.

            Uma vez adotadas as políticas públicas necessárias à eliminação desse tratamento diferenciado, será preciso precaução para não surgir outro instrumento de discriminação ‘às avessas’, que sendo criado para determinado fim e passados os efeitos desejados, acabe por construir um objetivo oposto ao afastamento das diferenças existentes entre os seres humanos.

            Deve-se ressaltar ainda, que falta ao Direito Brasileiro um maior esclarecimento das modalidades e das técnicas que podem ser utilizadas na implementação das ações afirmativas. Fala-se exclusivamente dos sistema de cotas, mas uma outra variante de ação afirmativa, semelhante a proposta de cotas, é o modelo utilizado no Canadá e em muitos lugares dos Estados Unidos: a proposta de metas. Ao contrário das cotas, que estabelece previamente o percentual dos indivíduos que vai se beneficiar com aquela política, estabelece-se a meta para determinado prazo. "Se hoje, por exemplo, há 2% de negros na universidade brasileira, poderíamos estabelecer uma meta de num prazo ’x’, cinco ou dez anos, chegar a 40%. Para fazer esse processo de mudança são criados programas". (64)

            Existem também, outras técnicas de implementação das ações afirmativas que podem ser utilizadas, tais como: o método do estabelecimento de preferências, o sistema de bônus e os incentivos fiscais ( como instrumento de motivação do setor privado ).

            É, portanto, amplo e diversificado o respaldo jurídico às medidas afirmativas que o Estado Brasileiro resolva empreender no sentido de resolver esse que talvez seja o mais grave de todos os problemas sociais - a marginalização do negro na sociedade brasileira. No plano jurídico, não há dúvidas quanto à sua viabilidade, como se tentou demonstrar. Resta, tão somente, escolher os critérios, as modalidades e as técnicas adaptáveis à nossa realidade, cercando-as das devidas cautelas.

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Sobre a autora
Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SOUZA NETTO, Flávia Emanuelle. A convenção internacional sobre a eliminação de todas as formas de discriminação racial e o ordenamento jurídico brasileiro. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 634, 3 abr. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/6488. Acesso em: 26 dez. 2024.

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