Sumário: 1. Dignidade da pessoa humana, 1.1. Introdução, 1.2. Breves considerações históricas e de conteúdo acerca dos direitos fundamentais, 1.3. Dignidade da pessoa humana como norma fundamental para a ordem jurídico-constitucional, 1.4. Relação da dignidade humana com os direitos fundamentais; 2. Direito de Família e relações homoafetivas, 2.1. Introdução, 2.2. Estrutura do novo livro do Direito de Família, 2.3. Liberdade sexual e os direitos humanos, 2.4. Uniões homoafetivas – uma realidade que o Brasil insiste em negar, 2.5. Relações homossexuais, 2.6. União estável homossexual; Conclusão; Bibliografia.
1. DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA
1.1. Introdução
O presente ensaio visa, com base nas aulas ministradas pelo professor Ingo Sarlet, no curso de Mestrado da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, mais precisamente na disciplina de Direito Constitucional, elaborar reflexões acerca do princípio constitucional da dignidade da pessoa humana em face da livre opção sexual ou das relações sexuais homoafetivas; relações estas que devem ser encaradas sob um novo enfoque constitucional e social, visando, assim, uma sociedade justa, livre, fraterna e democrática, já que a palavra de ordem deste novo milênio é a cidadania e a inclusão dos excluídos. Portanto, estamos diante dos chamados direitos de terceira geração, onde a fraternidade deve prevalecer entre os povos.
Assim sendo, o princípio constitucional da dignidade da pessoa humana encontra-se presente em tudo que guarde relação com a essência do ser humano, estando, assim, vinculada de forma indissociável com os direitos fundamentais (postulado no qual se assenta o direito constitucional contemporâneo), apesar desse liame praticamente se limitar ao reconhecimento da sua existência e da sua importância.
Portanto, embora a previsão no texto constitucional seja imprescindível, por si só não tem o condão de assegurar o devido respeito e proteção à dignidade; restando, assim, uma perspectiva de efetivação dessa segurança por meio dos órgãos jurisdicionais. Entretanto, estes, hoje, sofrem ameaças no que diz com o exercício efetivo e independente da sua missão de proteger e realizar concretamente a dignidade da pessoa e os direitos fundamentais.
Em relação ao conteúdo e significado da dignidade da pessoa humana na e para a ordem jurídica, tanto em nível doutrinário quanto no jurisprudencial, há grande divergência. Percebe-se, todavia, que a dignidade vem sendo considerada, pela grande maioria, uma qualidade intrínseca e indissociável de todo e qualquer ser humano, e o respeito e a proteção da dignidade da pessoa (de cada uma e de todas as pessoas) constituem-se em meta permanente da humanidade, do Estado e do Direito.
1.2. Breves Considerações Históricas e de Conteúdo acerca dos Direitos Fundamentais.
Antes de se buscar demonstrar os diversos conteúdos e significados, apontados pelos doutrinadores, da dignidade da pessoa humana, importante ter-se conhecimento, mesmo que breve, sobre sua origem, seu histórico. Assim, a idéia de valor intrínseco da pessoa humana possui raízes já no pensamento clássico e no ideário cristão. Foi a religião cristã, (pelo fato de encontrar-se no Antigo e no Novo Testamento, referência de ser, o ser humano, criado à imagem e semelhança de Deus), que trouxe o entendimento de que o ser humano, e não apenas os cristãos, são dotados de um valor próprio, que lhe é intrínseco, não podendo ser transformado em mero objeto ou instrumento.
A dignidade da pessoa humana, no pensamento filosófico e político da antiguidade clássica guardava relação com a posição social ocupada pelo individuo e o seu grau de reconhecimento pelos demais membros da comunidade, possibilitando, assim, falar-se em uma qualificação e modulação da dignidade, admitindo-se pessoas mais dignas ou menos dignas.
Já no pensamento estóico, a dignidade, por ser inerente ao ser humano, era tida como qualidade que o distinguia das demais criaturas, no sentido de que todos os seres humanos são dotados da mesma dignidade. Esse pensamento apresenta-se, portanto, ligado à noção da liberdade pessoal de cada indivíduo, bem como à idéia de que todos os seres humanos, no que diz com a sua natureza, são iguais em dignidade.
Esta cognição de dignidade humana seguiu sendo sustentada pela concepção de inspiração cristã e estóica durante o medievo, apresentando-se a concepção do espanhol Francisco de VITÓRIA1. Defendia ele, em meio ao processo de aniquilação e escravização dos indígenas, que os mesmos, em função do direito natural e de sua natureza humana eram, em princípio, livres e iguais, devendo ser respeitados como sujeito de direitos. Nos séculos XVII e XVIII, a concepção da dignidade da pessoa humana, (época do pensamento jusnaturalista), assim como a idéia de direito natural em si, apesar de passar por um processo de racionalização e laicização, manteve a noção fundamental da igualdade de todos os homens em dignidade e liberdade.
A dignidade da pessoa humana passa, assim, a ser considerada como a liberdade do ser humano de optar de acordo com sua razão e agir conforme o seu entendimento e sua opção; e, na concepção Kantiana2, a concepção de dignidade parte da autonomia ética do ser humano, considerando a autonomia como fundamento da dignidade do homem, além de sustentar que o ser humano não pode ser tratado como objeto.
A autonomia da vontade, segundo KANT, é um atributo apenas encontrado nos seres racionais, constituindo-se no fundamento da dignidade da natureza humana; e, com base nisso, o homem existe como um fim em si mesmo, não como meio para o uso arbitrário desta ou daquela vontade, repudiando, com isso, toda e qualquer espécie de coisificação e instrumentalização do ser humano.
Portanto, na ótica de Ingo SARLET a "dignidade é o valor de uma tal disposição de espírito, e está infinitamente acima de todo o preço. Nunca ela poderia ser posta em cálculo ou confronto com qualquer coisa que tivesse um preço, sem de qualquer modo ferir a sua santidade".3
Apesar de continuar, a grande parte da doutrina jurídica, utilizando-se como bases de fundamentação e de conceituação, o pensamento kantiano, diante da evolução social, econômica e jurídica de tal utilização, para alguns doutrinadores, deve ser feita com reservas ou deve ser ajustada a essa evolução, visto que seu pensamento (no dizer de alguns estudiosos) apresenta um excessivo antropocentrismo, naquilo em que sustenta que a pessoa ocupa, em razão da sua racionalidade, lugar privilegiado em relação aos demais seres vivos.
Hoje, diante das modificações da sociedade, da economia e do direito, é notável a proteção que se dá à dignidade da própria vida de um modo geral, ainda mais numa época de reconhecimento da proteção ao meio ambiente como valor fundamental.
Da concepção jusnaturalista, tendo seu apogeu no séc. XVIII, remanesce a constatação de que a ordem constitucional parte do pressuposto de ser, do homem, em virtude de sua condição humana; homem este titular de direitos que devem ser reconhecidos e respeitados por seus semelhantes, posto que, a dignidade da pessoa humana permanece a ocupar lugar central no pensamento filosófico, político e jurídico, sendo valor fundamental da ordem jurídica, pelo menos para as ordens constitucionais que nutrem a pretensão de constituírem um Estado Democrático de Direito.
Destarte e por se tratar de conceitos de contornos vagos e imprecisos, caracterizado por sua ambigüidade, há uma grande dificuldade de conceituação da expressão "dignidade da pessoa humana", sendo mais fácil dizer o que a dignidade não é do que expressar o que ela significa.
Apesar dessa dificuldade, a doutrina e a jurisprudência tentam estabelecer alguns contornos basilares para sua conceituação e, também, para uma possível concretização de seu conteúdo, ainda que não se possa falar aqui de uma definição genérica e abstrata consensualmente aceita.
Cumpre salientar, desde já, que o conceito da dignidade da pessoa humana está em permanente processo de construção e desenvolvimento, pois se trata de categoria axiológica aberta, ainda mais devido à existência de pluralismo e diversidade de valores que se manifestam nas sociedades democráticas contemporâneas.
Portanto, consoante ZIPELLIUS, "o conteúdo da noção de dignidade da pessoa humana, na sua condição de conceito jurídico-normativo, reclama uma constante concretização e delimitação pela práxis constitucional, tarefa cometida a todos os órgãos estatais." 4
A dignidade, por ser, e nisso não há dúvida e nem divergência por parte dos estudiosos, é uma qualidade intrínseca da pessoa humana, já que a mesma é irrenunciável e inalienável; sendo esta o elemento que qualifica o ser humano como tal e dele não pode ser destacado. Advém daí a exigência de seu reconhecimento, respeito, promoção e proteção, não podendo, assim, ser criada, concedida ou retirada, já que existe em cada ser humano como algo que lhe é inerente. Portanto, a dignidade, evidentemente, não existe só onde é reconhecida, positivada, já que constitui dado prévio, sendo valor próprio da natureza do ser humano.
Ainda em relação à matriz Kantiana, pode-se observar sua influência no preceituado do art. 1º da Declaração Universal da Onu (1948), segundo o qual "todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos. Dotados de razão e consciência, devem agir uns para com os outros em espírito e fraternidade"; fica evidente, desta leitura, que o elemento nuclear da noção de dignidade da pessoa humana parece continuar centrando-se na autonomia e no direito de autodeterminação da pessoa (de cada pessoa).
O ilustre constitucionalista lusitano, CANOTILHO, compartilha da idéia acima exposta, referindo-se que "o principio material que subjaz à noção de dignidade da pessoa humana consubstancia-se no principio antrópico que acolhe a idéia pré-moderna da dignitas-hominis, ou seja, do indivíduo conformador de si próprio e da sua vida, segundo o seu próprio projeto espiritual"5, ou seja, a liberdade, aqui defendida, significa a capacidade potencial que cada ser humano tem de auto determinar sua conduta.
Diante das considerações feitas ao longo deste breve intróito, fica evidenciada a intrínseca ligação entre as noções de liberdade e dignidade, isso porque a liberdade e o reconhecimento, bem como a garantia de direitos de liberdade (e dos direitos fundamentais em geral), constituem uma das principais (senão a principal) exigências da dignidade da pessoa humana.
Assim, a idéia de dignidade da pessoa humana, é algo que deve se concretizar histórico-culturalmente, e segundo BENDA, "para que a noção de dignidade não se desvaneça como mero apelo ético, impõe-se que seu conteúdo seja determinado no contexto da situação concreta da conduta estatal e do comportamento de cada pessoa humana".6
Ainda na tentativa de se estabelecer uma noção a respeito da dignidade da pessoa humana é importante destacar que os autores se referem a ela como sendo, (e isso decorrente da expressão da autonomia da pessoa humana, ligada à idéia de autodeterminação em relação às decisões a respeito de sua existência) simultaneamente, limite e tarefa dos poderes estatais, não só deles, na verdade, apontando esta condição dúplice para uma simultânea dimensão defensiva e prestacional da dignidade.
A dimensão tarefa do principio resulta na imposição ao Estado, e também à comunidade, de preservar a dignidade existente, promovendo e criando condições que possibilitem o pleno exercício e fruição da mesma. Pois bem, é nesse sentido que o entendimento de Frank MODERNE dispondo que "além da concepção ontológica da dignidade (como qualidade inerente ao ser humano) deve-se considerar uma visão de caráter mais instrumental, traduzida pela noção de uma igual dignidade de todas as pessoas, fundada na participação ativa de todos, partindo-se da necessidade de promoção das condições de uma contribuição ativa para liberdades indispensáveis ao nosso tempo".7
Portanto, o principio da dignidade como tarefa, impõe como obrigação do Estado a função de promover as condições que viabilizem e removam toda a sorte de obstáculos que estejam impedindo pessoas de viverem com dignidade; assim, impõe a promoção e realização concreta de uma vida com dignidade para todos.
Em relação à dimensão limite da dignidade da pessoa humana, e no âmbito de uma perspectiva intersubjetiva, destaca Gonçalves LOUREIRO que "a dignidade da pessoa humana implica uma obrigação geral de respeito pela pessoa, traduzida num feixe de deveres e direitos correlativos, de natureza não meramente instrumental, mas sim, relativos a um conjunto de bens indispensáveis ao florescimento humano".8
Impõe-se, portanto, seu reconhecimento e proteção pela ordem jurídica, a fim de que haja consideração e respeito por parte do Estado e da comunidade para com todos os seres humanos.
Os limites impostos, pelo princípio ora estudado, à atuação do poder público, objetivam impedir uma possível violação da dignidade pessoal, resultando num comando ao Estado, qual seja, de ter como meta constante o dever de respeito e proteção. Disso resulta que todos os órgãos, funções e atividades estatais ficam vinculados ao principio da dignidade da pessoa humana, devendo todos um respeito e proteção, explicitados na obrigação de abstenção, por parte do Estado, de ingerências na esfera individual que sejam contrárias à dignidade pessoal, e de proteção desta contra possíveis agressões oriundas de terceiros.
Importante, também, é que haja uma maior consciência por parte das entidades privadas e dos particulares, pois se encontram diretamente vinculados a esse principio, posto que este também vincula as relações existentes entre os particulares. Assim sendo, ressalta-se que a eficácia dos direitos fundamentais nessas relações tem encontrado fundamento justamente no principio da dignidade da pessoa humana.
Ainda, cumpre salientar que relativamente ao âmbito da hierarquização de valores, tem-se aqui a dignidade como limite. Caso haja conflito entre princípios constitucionais, o princípio da dignidade justifica a imposição de restrições (utilizando-se do principio da proporcionalidade) a outros bens protegidos constitucionalmente.
A dupla função defensiva e prestacional da dignidade da pessoa humana, portanto, refere-se tanto aos direitos de defesa, quanto às prestações fáticas ou jurídicas que correspondem às exigências e constituem concretizações da dignidade da pessoa humana; assim, são estipuladas, simultaneamente, obrigações de respeito e consideração, e, também, deveres em face da sua promoção e proteção.
Por apresentar, cada sociedade civilizada, padrões e convenções próprios a respeito do que constitui a dignidade, haveria conflitos, caso houvesse a estipulação de um conceito de dignidade como universal, ainda que isso fosse possível. Assim, por mostrar-se mais coeso e completo, guardando relação com o que foi disposto nestas linhas, utilizaremos o conceito apresentado pelo professor Ingo SARLET, sobre a dignidade da pessoa humana, a saber: "é a qualidade intrínseca e distintiva da cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, alem de propiciar e promover sua participação ativa e co-responsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos."9
1.3. Dignidade da pessoa humana como norma fundamental para a ordem jurídico-constitucional.
A Constituição Federal de 1988, (art. 1º, III, bem como o art. 60, § 4º, inciso III) ao dispor sobre a dignidade da pessoa humana e os direitos e garantias individuais, como fundamento do nosso Estado Democrático de Direito, reconheceu que é o Estado que existe em função da pessoa humana, e não o contrário, uma vez que a finalidade precípua da atividade estatal é o ser humano, não constituindo este meio da mesma atividade. Entretanto, o Constituinte considerou-a de maneira concreta e individualmente, e, como salienta J. MIRANDA10, relembrando, assim, a idéia de Kant, de que a dignidade constitui atributo da pessoa individualmente considerada, e não de um ser ideal ou abstrato, chama atenção, o doutrinador, de que não se deve confundir as noções de dignidade da pessoa e de dignidade humana, quando esta for referida à humanidade como um todo.
É importante ressaltar que a positivação da dignidade da pessoa humana é recente, considerando as origens remotas a que se podem ser reconduzidas a noção de dignidade, pois foi somente a partir da Segunda Guerra Mundial, principalmente após a Declaração Universal da ONU, em 1948, ressalvadas algumas exceções (como a Lei Fundamental Alemã de 1919, a Portuguesa de 1933, da Irlanda de 1937), que a mesma passou a ser expressamente reconhecida nas Constituições dos países ocidentais.
Sendo reconhecida pelo ordenamento jurídico estatal, a dignidade da pessoa humana passou a integrar o direito positivo (sistema de normas integrado por regras e por princípios expressos e implícitos, ambas as categorias impregnadas de valores), e analisando-se seu status jurídico-normativo no âmbito de nosso ordenamento constitucional, o que se percebe é que o Constituinte de 1988 preferiu não incluir a dignidade da pessoa humana no rol de direitos e garantias fundamentais, mas sim, colocou-a na condição de principio jurídico-constitucional fundamental. Os princípios fundamentais, ou estruturantes, pois são aqueles que expressam as decisões fundamentais do constituinte no que diz a estrutura básica do Estado e as idéias e os valores fundamentais triunfantes na Assembléia Constituinte.
Por ser a dignidade da pessoa humana principio que embasa e ampara os direitos fundamentais, uma vez que, no dispositivo constitucional no qual se encontra há, além do enquadramento de uma norma como principio fundamental, uma norma como definidora de direitos e garantias fundamentais, não há como se falar em direito fundamental à dignidade, embora existam algumas referências a esse respeito. E por ser qualidade intrínseca da pessoa humana, ou seja, não é concedida e nem pode ser retirada pelo ordenamento jurídico, quando se fala em direito à dignidade o que se está realmente querendo considerar é o direito ao reconhecimento, respeito, proteção, promoção e desenvolvimento da dignidade.
A dignidade da pessoa humana como principio fundamental, e, também, norma jurídico-positiva, (carregada de eficácia, alcançando a condição de valor jurídico fundamental de nossa comunidade) é um valor que não se restringe a guiar os direitos fundamentais, mas sim, rege toda a ordem jurídica constitucional e infraconstitucional. Ressalta-se, ainda, que o referido princípio é de grande valia para a interpretação constitucional em face às normas constitucionais apresentarem caráter aberto e amplo, (principalmente aquelas atinentes aos direitos fundamentais), pois sua utilização como premissa da argumentação jurídica torna o procedimento da interpretação constitucional racional e controlável.
Importante reconhecer-se que mesmo prevalecendo o principio da dignidade humana sobre todos os demais princípios e regras, - e aqui é importante destacar a noção de princípios suprapositivos ou extra-sistêmicos, que se referem a princípios cuja origem está além do sistema de direito positivo, enquadrando-se aí o principio da dignidade humana vez que a dignidade não existe só onde é reconhecida, positivada, já que constitui dado prévio, sendo valor próprio da natureza do ser humano, idéia também defendida por Otto BACHOF, na sua tese da "norma constitucional inconstitucional", deverá existir uma convivência harmônica do princípio em homenagem à igual dignidade de todos os seres humanos.
Faz-se mister algumas reflexões acerca de quais sejam as condições necessárias e suficientes para que se possa dizer que um ser é pessoa - sujeito de direto - dotada de personalidade e passível, portanto, da atribuição da dignidade.
A reflexão parte do pressuposto de que a definição de homem como ser dotado de direitos é uma conquista histórica, e, portanto, não é uma condição atemporal e absoluta.
Segundo Tércio SAMPAIO, "a personificação do homem foi uma resposta cristã à distinção, na Antigüidade, entre cidadãos e escravos. Com a expressão pessoa, obteve-se a extensão moral do caráter do ser humano a todos os homens, considerando-os iguais perante Deus". 11
Ademais, acrescenta a autora que a construção do conceito moderno de sujeito tem grande impulso a partir da noção de indivíduo, cunhada no medievo. E para tanto é necessária a análise de três concepções acerca do tema.
Para Tomas HOBBES – em sua obra, Leviatã, a pessoa é definida pela sua função, pelo seu papel social. Aqui, podemos observar um forte resquício medieval, pois na Idade Média, a atribuição da personalidade e, portanto, da condição de sujeito de direito, dá-se em função de um status, de um papel desempenhado no seio da sociedade. È o que, modernamente, SINGLY denomina de "identidade estatutária". Todavia, alerta a autora que esse tipo de concepção atenta à dignidade da pessoa ao passo que impede o homem de se desenvolver na sua plenitude, pois sua identidade pessoal é substituída pela identidade estatutária. A dignidade é entendida como correspondência ao status social.
Já para DESCARTES – a partir da máxima "penso, logo existo", o homem passa a ser sujeito do conhecimento (res cogitans), e o mundo, o seu objeto (res extensa). O pensante passa a ser medida de todas as coisas.
Entretanto, na visão de KANT, o sujeito moderno torna-se inexoravelmente um sujeito moral. Para este autor o ser humano é dotado de dignidade enquanto tal, ou seja, enquanto ser humano, independentemente de sua identidade estatuária. Para Kant nada é bom em si mesmo, exceto a boa vontade. Em razão disso, a análise da moralidade de um ato está centrada na vontade do agente. O sujeito moral Kantiano dá a si suas próprias leis, somente a "liberdade do uso autônomo da própria razão", é que pode conduzir os homens à maioridade.
Para KANT, no reino dos fins, tudo tem ou um preço ou uma dignidade, todavia, quando uma coisa não permite equivalente ela tem dignidade. A dignidade humana repousa sobre a autonomia e deve ser atribuída a todos agentes morais, dotados, portanto, de razão prática.
Atualmente, a concepção de Kant gera inúmeras controvérsias entre os filósofos. Os defensores dos animais e do meio ambiente sustentam que a crença na dignidade humana tem origem religiosa e não raciais, e a subordinação das outras espécies à espécie humana é um tipo de racismo, denominado de especismo.
A noção kantiana de dignidade ganhou acolhida na lei fundamental alemã. O artigo 1° da Lei Fundamental tem a seguinte redação: "A dignidade do homem é inviolável".
No Brasil, a Constituição de 1988 (art. 1º, III) assevera que a dignidade da pessoa humana é fundamento da República. Ela serve de fundamento para todo o ordenamento jurídico. Na ótica de Ferreira dos SANTOS12, além da dignidade ser tomada como princípio, deve ser, também, tomada como paradigma avaliativo de cada ação do Poder Público e um dos elementos imprescindíveis de atuação do Estado brasileiro.
O critério de Kant, onde a razão prática é condição necessária para a atribuição de dignidade, modernamente, sofre um desfalque, pois a racionalidade não pode ser mais usada como critério. Todavia, ainda não se conseguiu chegar a um critério que conduza com segurança a afirmar quem pode receber o qualificativo de pessoa, e, portanto, ser titular da dignidade.
Alguns estudos mostram como critério a memória, outros mostram como critério a alteratividade - o reconhecimento do outro - como caminho para o reconhecimento da pessoa.
Todavia, conclui a autora que a dignidade do homem reside no fato de ele ser indefinível, O homem é como é, porque reconhece essa dignidade em si mesmo e nos outros homens.
Cunhando a lição de que a dignidade da pessoa humana pressupõe um conceito fundamental de direito civil, na concepção de MESSINETTI 13, a teoria das pessoas tem a sua origem histórica na luta pela garantia da liberdade individual, onde ninguém pode depender integralmente do arbítrio subjetivo de outrem. Nessa mesma seara afirma LAFER que "a passagem do Estado absolutista para o estado de Direito transita pela preocupação do individualismo em estabelecer limites aos abusos do todo em relação ao indivíduo". 14.
E KANT construirá o conceito de sujeito de direito, que "é sempre o homem".
Foi essa concepção liberal-individualista que possibilitou o surgimento dos direitos humanos individuais de garantia.
Afirma HATTENHAUER que "o homem é o sujeito da norma jurídica e, conseqüentemente, o único objeto da teoria da pessoa".15 É por isso que, para MESSINETTI, pessoa "não é um valor universal radicado na essência racional do homem, antes um valor real e objetivo, historicamente condicionado, de um determinado ordenamento positivo". 16
Indelevelmente ligados ao ser humano, os limites da pessoalidade são, portanto, o nascimento e a morte.
Já OPPETIT afirma que "sem ser estritamente sinônimo de pessoa, o corpo é, no entanto, considerado como suporte da personalidade do indivíduo". 17 Assim, os loucos são considerados pessoas, embora no uso de suas razões sejam prejudicados.
Contemporaneamente, só o homem que vive em sociedade é dotado de direitos e deveres, de acordo com a submissão do conceito de pessoas ao de sujeito de direito.
AUBRY e RAU já preconizavam a visão de patrimônio como corolário da personalidade, e não da pessoalidade, como seria correto. (patrimônio, aqui, é qualquer objeto sobre o qual o homem possa ter direito a exercer). O patrimônio sendo, em sua mais alta expressão, a personalidade mesma do homem, considerada em suas relações com os objetos exteriores sobre os quais ele pode ou poderá ter direito a exercer. É o que exprime a expressão alemã Vermogen, que significa, ao mesmo tempo, ‘poder’ e ‘patrimônio’. 18
Todavia, tal ponto de vista não pôde sobreviver à emergência social do final do século XIX.
Como proteção do indivíduo diante do nivelamento social da democracia de massas, ganha relevância, no cenário jurídico, a proteção da intimidade. Sai de cena a teoria das pessoas e começa a emergir a teoria da personalidade.
Para HATTENHAUER, o direito da personalidade é "aquele que garante ao seu sujeito o domínio sobre um setor da própria esfera da personalidade. Com esse nome designam-se os ‘direitos da própria pessoa’".19
Já os direitos da personalidade, na ótica do filósofo e jornalista Olavo de CARVALHO, possuem três aspectos: essencialidade, indissolubidade e a ilimitabilidade. 20 Então, para cada um ser considerado pessoa é necessário possuir os direitos da personalidade.
Para a esfera pública o princípio fundamental é o da igualdade, entretanto, para a seara privada é o da diferença e para a esfera da personalidade vige o princípio da exclusividade.
O ordenamento jurídico pátrio faz uma grande confusão entre os conceitos de pessoa e personalidade. Teixeira de FREITAS 21 distinguiu capacidade de direito e personalidade, e essa distinção é fundamental, ao passo que a personalidade não admite gradações e a capacidade de direito as admite. O Código de 1916, embora posterior à teoria da personalidade, acabou por não adotá-la, sendo suas características: o patrimonialismo, patriarcalismo e a responsabilização.
Com o desenvolvimento da teoria da personalidade, um novo campo de demandas de tutela foi surgindo, logo, essas demandas acabaram por alçar a dignidade humana, enquanto princípio-fonte da teia dos direitos da personalidade, à categoria de direito do Homem, ao ser incluída na Declaração Universal dos Direitos do Homem. A partir dessa inclusão, o princípio da dignidade foi positivado em vários ordenamentos jurídicos.
Os direitos fundamentais são direitos positivos do homem, enquanto liberdades individuais são faculdades que resultam dos direitos fundamentais. O campo de realização desses direitos é, por excelência, o direito civil (porque é direito comum do homem comum).
Umas séries de direitos fundamentais de primeira, segunda e terceira geração estão jungidas pela teia formativa da dignidade humana, como é o caso da autonomia privada. Reich relaciona o livre desenvolvimento da personalidade com a liberdade de iniciativa econômica e profissional.
Na França, a dignidade também é usada com a intenção de combater o totalitarismo. Para Dominique ROSSEAU 22, a dignidade humana é garantidora da precedência da pessoa humana, que deve ser respeitada desde o início da vida, e da integridade e não-patrimonialidade do corpo humano. Com arrêt du lanceur de nains, o acórdão do atirador de anões, da Câmara do Contencioso Administrativo do Conselho de Estado, o princípio da dignidade humana assenta na jurisprudência de todos tribunais superiores franceses. Todavia, paira a dúvida, na doutrina francesa, se a dignidade humana é ou não é direito fundamental.
A Constituição alçou a dignidade humana ao centro do sistema jurídico, fazendo dela o fundamento da República, dando ensejo, assim, a uma ampla esfera de "direitos civis constitucionais". (Esse termo é impróprio, pois ninguém poderia conceber a idéia de um direito civil inconstitucional, assim, o autor prefere o termo "direito civil constantes do texto constitucional").
O novo Código Civil, ao contrário do atual Diploma Civilista, dedica-se aos direitos da personalidade, dando-lhes as características de serem intransmissíveis e irrenunciáveis.
Quanto à questão da disponibilidade do corpo humano, o autor nos aponta que, por muito tempo, tentou-se tornar o corpo humano indisponível por tratar-se de bem fora do comércio, todavia o autor acha isso um absurdo.
Recentemente, tem-se buscado amparar esse princípio da indisponibilidade do corpo humano na dignidade humana, uma vez que a integridade física é um dos mais importantes desses direitos.
Todavia, existe a corrente na qual o homem e o corpo são indissociáveis, logo o corpo, enquanto suporte da pessoa, não pode ser considerado propriedade dela. Por isso, a esfera da personalidade é extrapatrimonial, não podendo ser alvo de limitação do Estado, sob pena de ser comprometido o direito fundamental ao livre desenvolvimento da personalidade. Assim, cabe a cada um escolher se vai ou não patrimonializar seu corpo, desde que isso não atinja a terceiros. Por isso, o único tipo de limitação que pode ser dado a esse direito fundamental é o voluntário, advindo daí a inconstitucionalidade do artigo 11, do novo Código Civil. Então, conclui-se que a dignidade humana jamais poderá ser considerada como princípio de indisponibilidade do corpo humano, pois ela garante a liberdade de disposição.
1.4. Relação da dignidade da pessoa humana com os direitos fundamentais
Apesar da afirmativa de que a dignidade preexiste ao direito, para que a ordem jurídica seja legítima, ou seja, para a legitimação da atuação do Estado, faz-se necessário que a dignidade seja reconhecida e protegida pelo ordenamento jurídico. Assim são que os direitos e garantias fundamentais, de alguma forma, possam ser reconduzidos à noção de dignidade da pessoa humana, pois todos remontam à idéia de proteção e desenvolvimento das pessoas em nível social, democrático, cultural, econômico e jurídico.
O princípio fundamental da dignidade da pessoa humana cumpre relevante papel na arquitetura constitucional, posto que é fonte jurídico-positiva dos direitos fundamentais, é, assim, valor que dá unidade e coerência ao conjunto dos direitos fundamentais. O principio da dignidade serve, portanto, como parâmetro para aplicação, interpretação e integração dos direitos fundamentais, mas não só deles e das normas constitucionais, como de todo o ordenamento jurídico. È, assim, um referencial inarredável para a hierarquização axiológica inerente ao processo hermenêutico – sistemático23, ou seja, é considerado como principio de maior hierarquia do ordenamento jurídico, ressaltando sua função hermenêutica.
Vale, ainda, dizer que os direitos fundamentais e a dignidade da pessoa humana à qual se referem, convivem de forma indissociável, posto que aqueles constituem explicitações e concretização desta; assim, ao menos em principio, em cada direito fundamental se faz presente um conteúdo ou, alguma projeção da dignidade da pessoa. Na condição de valor, e principio fundamental, a dignidade da pessoa humana exige e pressupõe o reconhecimento e proteção de todos os direitos fundamentais, pois, do contrário, resultará em negativa da própria dignidade o não reconhecimento à pessoa humana dos direitos fundamentais que lhes são inerentes.
É, portanto, inquestionável que a liberdade (pois a dignidade possui respaldo na autonomia pessoal, na autonomia que tem o homem de formatar sua própria existência, ser sujeito de direitos; há reconhecimento geral ao livre desenvolvimento da personalidade), a garantia da isonomia de todos os seres humanos, (e aí se vislumbra a proibição de falar-se em tratamentos discriminatórios e arbitrários, não se podendo mais tolerar a discriminação racial, ou por motivos de religião, sexo, etc) e os direitos fundamentais são pressupostos e concretização da dignidade da pessoa.
Paulo Mota PINTO sustenta que da garantia da dignidade humana decorre o reconhecimento de personalidade jurídica a todos os seres humanos, bem como a previsão de instrumentos jurídicos destinados à defesa das refrações essenciais da personalidade humana, e necessidade de proteção desses direitos por parte do Estado; sendo, ainda, para o jurista supra citado, a afirmação da liberdade de desenvolvimento da personalidade humana e o imperativo de promoção das condições possibilitadoras desse livre desenvolvimento, sendo os corolários do reconhecimento da dignidade da pessoa humana como valor no qual se baseia o Estado. 24
Além de justificar a fundamentalidade material dos direitos positivados, o principio da dignidade da pessoa humana serve como diretriz material para possibilitar a identificação de direitos implícitos, funcionando, o princípio, como uma cláusula aberta, no sentido de respaldar o surgimento de "direitos novos" não expressos na Constituição de 1988, mas nela implícitos, seja em decorrência do regime e princípios por ela adotados, (inclusive em relação da orientação sexual da pessoa humana e objeto precípuo deste nosso estudo) seja em virtude de tratados internacionais em que o Brasil seja parte; sendo assim, quando se estiver diante de uma posição jurídica diretamente embasada e relacionada à dignidade da pessoa, inequivocamente estaremos diante de uma norma de direito fundamental.
Nada impede, ainda, que do princípio se possam deduzir autonomamente posições jurídico-subjetivas fundamentais, sem que haja qualquer referência direta a outro direito fundamental.
Entretanto, ressalva-se aqui, que a expressiva maioria dos juristas referem-se a dignidade da pessoa como fundamento vinculado a determinada norma de direito fundamental, pelo fato dos direitos fundamentais serem exigências e concretizações em maior ou menor grau da dignidade da pessoa.
Diante da forte relação existente entre a dignidade e os direitos fundamentais (posto que aquela assume função de elemento e medida destes), a violação de um direito fundamental importará em ofensa à dignidade da pessoa. Defendem a maior parte dos doutrinadores que diante de um caso concreto, deve-se buscar primeiro verificar a existência de uma ofensa a determinado direito fundamental em espécie, para, assim, se reduzir a margem de arbítrio do interprete, pois mostra-se explícito o conteúdo do principio da dignidade da pessoa humana naquela dimensão especifica. Entretanto, outros doutrinadores salientam que uma violação a proteção da dignidade da pessoa humana sempre poderá servir de fundamento para o reconhecimento de um direito subjetivo aqui de cunho defensivo.
Portanto, a dignidade da pessoa humana serve de fundamento para a proteção da dignidade contra ofensas e ameaças ainda não expressas pelo âmbito de proteção dos direitos fundamentais consagrados no texto constitucional. Destarte, do principio da dignidade, de fato, podem ser extraídos direitos subjetivos e fundamentais com vistas à sua proteção. Assim sendo, seja pelo reconhecimento de direitos fundamentais específicos, seja de modo autônomo, o que se percebe do ordenamento jurídico é a sua proteção.
Sendo parte integrante dos direitos fundamentais, o principio da dignidade serve como elemento de proteção dos direitos contra medidas restritivas; todavia, por servir também de justificativa para a imposição de restrições a direitos fundamentais, acaba atuando como elemento limitador destes. Assim, sempre se poderá afirmar que a dignidade da pessoa atua tanto como limite dos direitos e como limite dos limites (como barreira contra a atividade restritiva dos direitos).
Há, na doutrina e na jurisprudência, consenso de que nenhuma restrição, em princípio, de direito fundamental poderá se mostrar desproporcional, ou resultar na afetação de seu núcleo essencial, pois do contrário, haveria o esvaziamento do referido direito. Como para alguns doutrinadores o núcleo essencial dos direitos fundamentais é o conteúdo em dignidade da pessoa humana, está, portanto, este, imune às restrições; e, qualquer caso de violação desse núcleo essencial será sempre desproporcional. Não se está sustentando a inviabilidade de impor certas restrições aos direitos fundamentais, desde que reste intacto o núcleo em dignidade destes direitos. É, portanto, desse entendimento que resulta a proteção dos direitos fundamentais, por meio da dignidade da pessoa.
Mesmo sendo a dignidade um valor supremo do ordenamento jurídico, mesmo diante de sua prevalência no confronto com outros princípios e regras constitucionais, não se pode deixar de reconhecer uma possível relativização deste princípio, v.g. de levar-se em conta que alguém, um juiz, o legislador, irá decidir qual seu conteúdo e se houve, ou não, sua violação no caso concreto. São os exemplos da pena de morte, da tortura, que mostram o quanto são díspares os resultados referentes a este ponto, inclusive quanto ao reconhecimento da dignidade como valor essencial para a ordem jurídica e constitucional.
Reconhecendo-se o princípio da isonomia como corolário direto da dignidade, permite-se que a própria dignidade individual admite certa relativização, quando justificada na necessidade de proteção da dignidade de terceiros. É necessário compatibilizá-la com outros valores sociais e políticos; e aí está a grande dificuldade, qual seja, encontrar o ponto de equilíbrio do tenso relacionamento entre indivíduo e sociedade. Existem, conforme Jacques MARITAIN25, três maneiras de resolver o problema: (1) priorizar os valores individuais em detrimento do da sociedade (representada pela concepção individualista da burguesia), onde o mesmo encontra seu próprio bem estar e sua própria riqueza; (2) a segunda maneira é o reverso da primeira, onde os valores das sociedades devem prevalecer sobre o indivíduo, pois para a concepção do transpersonalismo o indivíduo encontra-se em função dos interesses da sociedade, e (3) a terceira maneira é onde se visa buscar uma conciliação entre as duas concepções anteriores, que é representada pelo personalismo. Assim, para esta última postura frente ao conflito indivíduo e sociedade, deve-se pretender nem a absolutização do indivíduo, nem absolutização do social, mas sim a compatibilização entre ambas posições, a qual será alcançada caso a caso, mediante ponderação na qual se avaliará o que toca ao indivíduo e o que cabe ao todo.
Portanto, reconhece-se que a harmonia buscada está mediatizada pelo valor da pessoa humana, na ótica de Miguel REALE, quando "o indivíduo deve ceder ao todo, até e enquanto não seja ferido o valor da pessoa, ou seja, a plenitude do homem enquanto homem. Toda vez que se quiser ultrapassar a esfera da ‘personalidade’ haverá arbítrio"26. Importante, ainda, ressaltar que na perspectiva personalista identifica-se a concepção de Kant da pessoa como um fim em si mesma, e, portanto, a afirmativa de que o Estado, para a consecução de seus objetivos, não pode aniquilar a pessoa humana.
Assim, nem o individualismo, nem o coletivismo compreendem o homem em sua integralidade, posto que por natureza, o homem é tanto um ser social como um ser individual.
Entretanto, a relativização, anteriormente referida, se dá ao principio, e não à dignidade considerada como qualidade inerente a todas as pessoas, que as torna sujeitos de direitos e merecedores de igual respeito e consideração no que diz com sua dignidade humana. Assim, cada restrição à dignidade importa em sua violação, o que é vedado pelo ordenamento jurídico, e nem mesmo o interesse comunitário poderá justificar ofensa à dignidade individual, uma vez que esta é considerada como valor absoluto de cada ser humano.
Neste sentido, Castanheira NEVES defende que:
"a dimensão pessoal da pessoa humana exige o respeito incondicional de sua dignidade.
Dignidade da pessoa a considerar em si e por si, que o mesmo é dizer a respeitar para além e independentemente dos contextos integrantes e das situações sociais em que ela concretamente se insira. (...) O que o homem é em dignidade e valor não se reduz a esses modos de existência comunitária ou social. Será por isso inválido, e inadmissível, o sacrifício desse seu valor e dignidade pessoal a beneficio simplesmente da comunidade, do grupo, da classe. Por outras palavras, o sujeito portador do valor absoluto não é a sociedade ou classe, mas o homem pessoal, embora existencial e socialmente em comunidade e na classe".27
Winfried BRUGGER28 defende que somente será possível a proteção de modo absoluto a igual dignidade de todas as pessoas enquanto se falar na dignidade como capacidade para a autodeterminação, para o livre desenvolvimento da personalidade.
A ordem jurídica que consagra a dignidade da pessoa humana como além de sua dimensão jurídico-normativa (principio jurídico-constitucional fundamental), constituindo-a como o reduto intangível de cada (e de todos) indivíduos, ocasionando possíveis violações concretas e reiteradas à dignidade pessoal, jamais encontrará respaldo, posto que essa mesma ordem jurídica impõe ao Estado e aos particulares um dever de respeito e promoção da dignidade de todas as pessoas.
A preservação da dignidade consistirá, sobretudo, na proibição de condutas que importem em coisificação e instrumentalização do ser humano, devendo ficar imune, a qualquer restrição, a esfera nuclear da existência humana.
Importante, ainda, referir-se à distinção existente entre o principio jurídico-fundamental da dignidade da pessoa humana (na condição de norma) e o da dignidade da pessoa propriamente dita (valor intrínseco de cada pessoa).
Apesar de ser consolidado o entendimento de que cada ser humano é merecedor de igual respeito e consideração, no que diz com a sua condição de pessoa, e que sua dignidade não poderá ser violada ou sacrificada, nem mesmo para preservar a dignidade de terceiros, não há como deixar de reconhecer uma certa relativização em nível jurídico-normativo, que decorre da necessidade de se definir qual o âmbito de proteção da norma que consagra a dignidade, dependendo do órgão competente a decisão sobre esta matéria.
Assim, o princípio da dignidade da pessoa humana, na condição de direito de defesa, não aceita qualquer violação à dignidade pessoal, mesmo em função de outra dignidade, impondo aos órgãos estatais, a missão não só de respeito (no sentido de não violar) e proteção da dignidade de todas as pessoas, mas de promoção e efetivação das condições de vidas dignas para todos.
Assim sendo, somente haverá espaço para a dignidade da pessoa humana, não passando o homem, de mero objeto de arbítrio e injustiças, quando a liberdade e a autonomia, a igualdade e os direitos fundamentais forem, além de reconhecidos, assegurados, demonstrando-se verdadeiro respeito pela vida e pela integridade física e moral do ser humano, assegurando-se, sobretudo, as condições mínimas para uma existência digna.