4. A prisão preventiva como fator de superlotação prisional
A superlotação do sistema prisional brasileiro é resultado de um Estado cruel, arbitrário, que exige dos seus cidadãos o cumprimento da lei, mas ele mesmo não a cumpre. Se a liberdade do cidadão, por força constitucional, é regra, entende-se que o ramo mais agressivo do Direito é o Direito Penal, pois interfere na liberdade das pessoas, logo, ele deveria ser mínimo, deste raciocínio é possível extrair como princípio constitucional penal implícito, a intervenção mínima. Neste sentido aduz Cezar Roberto Bitencourt (p. 13 e 14, 2008):
O princípio da intervenção mínima, também conhecido como ultima ratio, orienta e limita o poder incriminador do Estado, preconizando que a criminalização de uma conduta só se legitima se constituir meio necessário para a proteção de determinado bem jurídico. Se outras formas de sanção ou outros meios de controle social revelarem-se suficientes para a tutela deste bem, a sua criminalização é inadequada e não recomendável. (...) Apesar de o princípio da intervenção mínima ter sido consagrado pelo Iluminismo, a partir da Revolução Francesa, “a verdade é que, a partir da segunda década do século XIX, as normas penais incriminadores cresceram desmedidamente, a ponto de alarmar os penalistas dos mais diferentes parâmetros culturais”. Os legisladores contemporâneos – tanto de primeiro como de terceiro mundo – têm abusado da criminalização e da penalização, em franca contradição com o princípio em exame, levando ao descrédito não apenas o Direito Penal, mas a sanção criminal, que acaba perdendo sua força intimidativa diante da “inflação legislativa” reinante nos ordenamentos positivos.
No entanto, numa total afronta à filosofia traga pela nossa Constituição da República, o que se vê é a adoção, por parte do Estado Brasileiro, de um Direito Penal máximo, inconstitucional, ilegal, seja por meio da criação de inúmeros tipos penais (inflação legislativa) que não precisam da tutela penal - vale dizer, condutas de pequeno e médio potencial ofensivo não devem ser criminalizadas (outros ramos do direito que as devem tutelar), deve-se criminalizar, somente, condutas de grave potencial ofensivo - seja mediante a criação de penas desproporcionais ou desarrazoadas.
A falha, neste sentido, não é só do legislador, mas, outrossim, dos outros poderes. Do poder executivo, que não desenvolve políticas públicas para reduzir as desigualdades sociais, como distribuição de renda (por meio da geração de empregos e da criação de programas sociais), de investimento em educação, saúde, enfim, o Estado não confere aos seus cidadãos sequer o mínimo de direitos fundamentais para que vivam com dignidade.
A consequência disso é que temos a maioria da sociedade brasileira marginalizada, vivendo em situações de pobreza ou de extrema pobreza, vale dizer, enquanto poucos têm muito, muitos não têm quase nada, o que acaba gerando um ambiente de extrema violência, onde o crime organizado acaba preenchendo o espaço que deveria ser ocupado pelo Estado.
Talvez a responsabilidade maior deste caos no sistema penitenciário, a sua superlotação, se deve mais ao Poder Judiciário, que deve se posicionar como garantidor dos direitos fundamentais previstos na Lei Maior. Vale dizer, ao Poder Judiciário incumbe, isso não ofende a separação dos poderes, pois este princípio não está acima do Estado de Direito, da Carta Magna, exercer o controle dos outros poderes, ou seja, ele não pode se encurvar diante de pressões políticas e aceitar a pratica de ilegalidades dos outros poderes. Neste sentido, é possível dizer que o Poder Judiciário é um órgão de tutela do Estado de Direito por excelência.
Contudo, o que vemos na prática é um Poder Judiciário que tem tomado decisões para atender o clamor social, o clamor da mídia. Esta percebeu que notícias relacionadas a crimes traz ibope, pois prende a atenção dos telespectadores. Apresentadores de programas, que fazem um sensacionalismo exacerbado de informações sobre delitos, emitem opiniões sobre assuntos jurídicos de que não tem o mínimo de conhecimento. Mas, o mais grave não é isso, o problema maior é que os órgãos de justiça penal têm lavado as mãos e decidido com base no apelo da mídia, da opinião pública.
A forma como se deu o julgamento de Cristo por Pilatos se repete em nossos dias, ou seja, se o povo quer a condenação, prisão, penas altas, cruéis, degradantes, os órgãos de justiça criminal e em especial o Poder Judiciário, pois cabe a ele dizer o direito com definitividade, logo, tem mais responsabilidade do que os demais, têm virado as costas para a ordem jurídica e, assim, tomam decisões políticas, razão pelo qual temos um caos instalado no sistema prisional e um ambiente de violência cada vez mais crescente na sociedade brasileira.
Um Estado de Direito não irá prevalecer se tivermos um Judiciário que não obedece às leis e sim, se encurva diante da mídia, que na maioria das vezes prega o desrespeito às nossas leis, pois incentiva a violação de direitos fundamentais previstos na Carta Magna.
O esforço do legislador, ao criar a Lei nº 12.403/2011, para democratizar o processo penal brasileiro, de cunho autoritário, de pouco valeu, isso porque a letra da lei não consegue tirar o autoritarismo de quem a aplica.
Muito embora, com a Lei nº 12.403/2011, o parlamento tenha criado outras medidas cautelares diversas da prisão e expressado a excepcionalidade da prisão preventiva, o que se percebe na prática é o uso inadequado e indevido deste instrumento altamente lesivo aos princípios consagrados na Carta Política de 1.988.
Não se pode fazer política e buscar a promoção pessoal com o uso abusivo do Direito Penal, não se pode fazer política com a liberdade de alguém. Escreve Renato Brasileiro de Lima (2012, p. 89):
Infelizmente, não é isso o que se vê no dia a dia forense, em que há uma massificação das prisões cautelares, a despeito do elevado custo que representam. Como bem ressaltam Aury Lopes Jr. e Gustavo Henrique Badaró, ‘infelizmente as prisões cautelares acabaram sendo inseridas na dinâmica da urgência, desempenhando um relevantíssimo efeito sedante da opinião pública pela ilusão de justiça instantânea. O simbólico da prisão imediata acaba sendo utilizado para construir uma (falsa) noção de eficiência do aparelho repressor estatal e da própria justiça. Com isso, o que foi concebido para ser excepcional torna-se instrumento de uso comum e ordinário, desnaturando-o completamente. Nessa teratológica alquimia, sepulta-se a legitimidade das prisões cautelares, quadro esse agravado pela duração excessiva’.
Ainda sobre o tema, pontua Renato Brasileiro de Lima (2012, p. 392):
A decretação de uma prisão cautelar é a interferência mais agressiva do Estado na vida e na dignidade do indivíduo, pois, além da segregação em si, o cárcere produz intensa estigmatização social e psicológica. Não se pode, pois, banalizar a prisão preventiva, já que seus efeitos criminógenos, mais que ressocializar o agente, causam profunda desagregação dos valores da pessoa, inserindo-a em um contexto capaz de afetar de maneira definitiva qualquer processo de socialização.
Para fundamentar o entendimento acima, o G1[1], em matéria publicada em 23/06/2015, apontou que o número de presos dobra em 10 (dez) anos e passa de 600 mil no país e que desse número, 39% dos presos são provisórios e que há déficit de 244 mil vagas.
Vale, também, citar a matéria publicada pela revista Consultor Jurídico[2], na data 27 de novembro de 2014, que revela que 37% dos imputados submetidos à prisão provisória não são condenados à prisão, deste total 17% foram absolvidos e o restante receberam penas restritivas de direitos e medidas alternativas.
Matéria recente da mesma revista (Consultor jurídico)[3], publicada em 8 de dezembro de 2017, traz números ainda mais alarmantes da população carcerária brasileira. O Brasil ultrapassa a Rússia, com 726.712 mil presos, e passa a ocupar o 3º (terceiro) lugar no ranking das maiores populações carcerárias do mundo. A porcentagem de presos provisórios é de cerca de 40% (que ainda não têm condenação judicial) e ainda revela que metade desse contingente carcerário é de jovens de 18 a 29 anos e 64% desses presos são negros.
Esses números são assustadores, pois revela que estas prisões provisórias são inconstitucionais e ilegais. O que o Poder Judiciário deveria tratar como exceção (prisão provisória) virou regra.
Veja que estes dados são posteriores às alterações trazidas pela Lei nº 12.403 de 2011, que inseriu, no artigo 319 do Código de Processo Penal, várias medidas cautelares diversas da prisão, assim como trouxe a previsão, no artigo 310, inciso II do Código de Processo Penal, de que a prisão preventiva só se justifica, dentre outros requisitos, se não forem suficientes outras medidas cautelares.
Como dito acima, o que tem influenciado o Poder Judiciário, principalmente, a tomar decisões destoadas da técnica é a cultura do encarceramento, do endurecimento de pena, do punitivismo, do desrespeito aos direitos do preso pregada pela mídia que é a principal responsável por formar a opinião pública. Nas palavras de Rogério Greco (p. 72, 2016):
A mídia pode hoje, ser considerada um quarto Poder, posicionando-se ao lado do Executivo, do Legislativo e do Judiciário. Presidentes são eleitos ou mesmo afastados por conta da mídia. Criminosos são condenados ou mesmo absolvidos, dependendo do que venha a ser divulgado e defendido pelos meios de comunicação de massa. Enfim, não se pode negar esse poder.
Diante do número excessivo de presos provisórios no Brasil, do quantitativo de penas privativas de liberdade que são convertidas em penas restritivas de direitos e da expressiva quantidade daqueles que são absolvidos ao final do processo, há de se concluir que, numa escala menor, o Título IX do Código de Processo Penal, que regulamenta o cabimento da prisão preventiva, e, numa escala maior, a CR/88, que revela por meio dos seus dispositivos que a prisão é a exceção, não têm sido respeitados.
Foi diante desse quadro gerado por meio dessas prisões provisórias que a superlotação do sistema prisional passa a inviabilizar qualquer chance de ressocialização, uma das finalidades da pena. Nesse sentido, o Supremo Tribunal Federal reconheceu um estado de coisas inconstitucional, quando apreciou a ADPF 347.
Contudo, não basta que se declare; é preciso que haja responsabilidade dos agentes públicos que trabalham na persecução penal, no exercício de suas funções, para que esse estado de coisas passe a ser constitucional.
5. Considerações finais
De tudo posto neste artigo científico, depreende-se que a superlotação do sistema prisional, com quase metade de seu contingente composto por presos provisórios (muitos dos quais são absolvidos ou apenados com penas privativas de liberdade que são substituídas por penas restritivas de direitos, ao final do processo) permite dizer que a prisão preventiva no Brasil está banalizada e, portanto, se mostra como motivo concorrente para o aumento do contingente prisional.
Vale sempre registrar que o Estado, usando do seu monopólio de punir, não pode transpor os limites impostos pela lei. É preciso desmistificar a cultura do cárcere, de acreditar que o uso desmedido do Direito Penal, colocando-o na linha de frente, é a solução para se combater a criminalidade. Pelo contrário: este discurso do Direito Penal máximo tem servido para gerar mais violência.
O Estado brasileiro é cruel e arbitrário duas vezes: primeiro, ele descumpre o ordenamento jurídico pátrio ao não desenvolver políticas públicas que garantam ao cidadão ter acesso aos direitos sociais básicos previstos na CR/88, de forma a reduzir as desigualdades sociais, tais como, educação, trabalho, moradia, saúde, alimentação, segurança, dentre outros; vale dizer, é imprescindível reduzir a distância entre os que têm muito e os que não têm quase nada; e, segundo, porque ele, ao errar neste sentido, usa do ramo repressor do direito para agravar ainda mais este quadro de desorganização social.
Ou seja, o próprio Estado marginaliza a maioria da sociedade brasileira por não cumprir o seu papel social (de promoção da igualdade), que acaba gerando um ambiente vivenciado de extrema violência e, depois, quer se legitimar usando de violência, por meio de prisões inconstitucionais, ilegais. Em outros termos, usa dos instrumentos repressores à sua disposição para, ao promover a miserabilidade da sua nação, sujeitar a população à aceitação desta condição (de miséria).
Num Estado Social Democrático de Direito, todos devem se sujeitar à lei, no seu sentido amplo. Significar dizer que o Estado, para punir o infrator, não pode se tornar um infrator. É preciso que todos os atores obedeçam às regras do jogo, como condição de sobrevivência da nossa democracia. Os fins não podem justificar os meios, é dizer, não se pode violar a lei com o fundamento de que é para se combater o crime. Pelo contrário. Aquele que assim age se iguala ao delinquente.
REFERÊNCIAS:
Brasil. Código de Processo Penal, Lei n. 3.689, de 3 de outubro de 1941. Disponível em: <www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del3689Compilado.htm>. Acesso em 06 de dezembro de 2017.
BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal. Volume 1: parte geral. 13. Ed. São Paulo: Saraiva, 2008.
GRECO, Rogério. Sistema prisional: colapso atual e soluções alternativas. 3. Ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2016.
LIMA, Renato Brasileiro de. Nova prisão cautelar. 2. Ed. Niterói, RJ: Impetus, 2012.
MARCÃO, Renato. Prisões cautelares, liberdade provisória e medidas cautelares restritivas. 2. Ed. São Paulo: Saraiva, 2012.
Notas
[1] http://g1.globo.com/politica/noticia/2015/06/numero-de-presos-dobra-em-10-anos-e-passa-dos-600-mil-no-pais.html
[2] http://www.conjur.com.br/2014-nov-27/37-submetidos-prisao-provisoria-nao-sao-condenados-prisao
[3] https://www.conjur.com.br/2017-dez-08/brasil-maior-populacao-carceraria-mundo-726-mil-presos