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Responsabilidade penal pela má utilização da água

23/03/2005 às 00:00
Leia nesta página:

Sumário: 1. Considerações sobre a competência da Justiça federal e estadual; 2. Os tipos do Código Penal: art. 270 e 271; 3. O art. 15 da Lei 6938/81; 4. Os tipos penais da Lei 9.605/98; 5. A questão da responsabilidade penal da pessoa jurídica; 6. A efetividade da repressão penal aos crimes contra as águas; 7. Observações finais.


RESUMO

Tece considerações a respeito da competência das Justiças Federal e Estadual para processar e julgar os crimes de poluição das águas doces (rios). Analisa os tipos previstos nos arts. 270 e 271 do Código Penal, especialmente quanto à interpretação da expressão "água potável". Discorre sobre a aplicação dos tipos penais previstos na Lei n. 6.938/81 e na Lei n. 9.605/98. Ressalta, como aspecto inovador dessa última Lei, a responsabilização penal da pessoa jurídica. Entende, no entanto, que essa Lei ainda não configura uma situação ideal, pois os dirigentes da empresa poluidora – dos quais se origina a vontade –, pessoas físicas, podem-se esquivar de tal responsabilidade. Alerta para a precária efetividade da repressão penal aos crimes contra os recursos hídricos no Brasil.


1 CONSIDERAÇÕES SOBRE A COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA FEDERAL E ESTADUAL

De início, convém fazer uma pequena distinção em matéria de competência para processar e julgar os crimes relativos às águas. A competência da Justiça Federal, nesse caso, fica adstrita aos cometidos contra bens da União, quais sejam, conforme a Constituição Federal, os lagos, rios e quaisquer correntes de água: a) em terrenos de seu domínio (o que inclui aqueles inseridos nas terras indígenas); b) que banhem mais de um Estado; c) que sirvam de limites com outros países; d) que se estendam a território estrangeiro ou dele provenham (art. 20, III).

Desse modo, exemplificando, pertencem à União o Rio São Francisco – o "Velho Chico", que os mineiros consideram como seu, mas não é, porque deságua na costa baiana, após percorrer o seu território; o Rio Uruguai, que também banha a Argentina; e o gigante Amazonas, que nasce em terras peruanas. Os crimes cometidos contra as águas de rios ou lagos interiores, no âmbito de cada Estado, em geral, deverão ser apurados e punidos pela Justiça Estadual.


2 OS TIPOS DO CÓDIGO PENAL: ARTS. 270 E 271

Não há muito na nossa legislação a respeito da responsabilidade penal pela poluição das águas.

Os primeiros tipos penais que encontramos no nosso Código Penal: tratam-se dos arts. 270 e 271, que incriminam as condutas de envenenar, poluir e corromper água potável.

Quanto ao crime de envenenamento – (...) envenenar água potável de uso comum ou particular – , a pena é alta: reclusão de 10 a 15 anos, mas não mais que o homicídio qualificado pelo emprego de veneno, em que a pena é de reclusão de 12 a 30 anos.

Se ocorre o evento morte, fica ao duro encargo do juiz verificar, em cada caso, se o sujeito que envenena uma água potável queria ou ao menos assumiu o risco de matar alguém. Nesse caso, deve responder pelo homicídio doloso, na forma qualificada.

Isso significa que, aplicada a pena no seu mínimo, já se obriga o agente a começar a cumpri-la em regime fechado, não admitindo nem mesmo o sursis, ainda que o condenado seja primário e de bons antecedentes.

Pela torpeza da conduta, a lei que define os crimes hediondos (Lei n. 8.072, de 26/07/90) chegou a incluir o crime de envenenamento de água potável no seu rol, o que foi posteriormente excluído pela Lei n. 8.930/94. Permaneceu, no entanto, o aumento da pena previsto pela Lei n. 8.072/90.

O crime de (...) poluir e corromper água potável (art. 271) tem uma apenação menor, mas não menos significativa: reclusão de dois a cinco anos.

Ambos os crimes admitem a modalidade culposa, em que a pena é de detenção. Ambos também são classificados como crime de perigo, de modo que o crime se consuma apenas com a ocorrência da situação de perigo, independente do resultado.

Muito se discutiu na doutrina e jurisprudência acerca da expressão "água potável". Entendia-se que somente era potável a água isenta de impurezas, que pudesse ser consumida diretamente pela população. Hoje em dia, diante da rara existência desse tipo de água, evoluiu-se o conceito, por obra doutrinária e jurisprudencial, para se admitir que a água possa ter índices aceitáveis de poluição, de modo a permitir o seu consumo.

É comumente citada a definição de Magalhães Drumond, para quem (...) a expressão potável deve abranger não só a potabilidade bioquímica, mas, também, a potabilidade menos rigorosa, mas incomparavelmente mais encontradiça no Brasil, consistente em servir para beber e cozinhar, segundo a expressão popular.1

Não se trata aqui da água potencialmente potável, porque, em princípio, toda água, com os modernos métodos de purificação, por mais suja que seja, pode-se tornar potável. Em Minas Gerais, a água do Rio das Velhas, que abastece grande parte de Belo Horizonte, chega às estações purificadoras da Copasa tão suja que ninguém acredita que seja a mesma água que, depois, chegará limpa às torneiras.

Em Lisboa, tive oportunidade de comprovar o grande trabalho humano de purificação das águas do Tejo, que, após percorrerem grande parte do território espanhol, chegam absolutamente poluídas à capital portuguesa. Após tratamento, é possível à população lisboeta bebê-la diretamente das torneiras, sem processo de filtragem doméstica.

Mas o Código não trata de água potencialmente potável, de modo que prevalece o princípio de que não se pode poluir ou corromper água já poluída, imprestável para o consumo humano, sendo, portanto, na estrutura do Código, atípica a conduta de quem assim procede.

Não é de se espantar que assim seja – a parte especial do nosso Código Penal é de 1940 e, nessa época, com certeza, salvo alguns visionários, ninguém se preocupava com o meio ambiente. Todos nós temos histórias para contar de como as pessoas, nesse tempo, banhavam-se e lavavam roupas nos rios, hoje poluídos, que atravessam as nossas cidades. Portanto, a conduta criminosa só poderia ser considerada a daquela pessoa ou pessoas que atingissem a água potável – ou seja, a que era diretamente consumida pela população.

Mas, e se a água já estiver poluída, há algum tipo penal? O que dizer da poluição das águas não-potáveis, utilizáveis na agricultura, na pecuária ou na recreação?


3 O ART. 15 DA LEI N. 6.938/81

Quando se aprovou a Lei n. 6.938, de 31/08/81, que dispôs sobre a Política Nacional do Meio Ambiente, posteriormente alterada pela Lei n. 7.804/89, previu-se um tipo penal genérico para todas as atividades poluidoras. A jurisprudência, até recentemente, passou a aplicá-lo em caso de poluição de águas já poluídas, ou seja, em que houvesse um agravamento da poluição, e, portanto, não fosse a conduta subsumível no tipo previsto no art. 271 do Código Penal.

Trata-se do crime previsto no art. 15 da referida Lei, que diz: (...) o poluidor que expuser a perigo a incolumidade humana, animal ou vegetal, ou estiver tornando mais grave a situação de perigo existente, fica sujeito à pena de reclusão de 01 a 03 anos e multa de 100 a 1000 MVR.

Há vários casos no repertório dos nossos tribunais, podendo-se citar um julgado do Tribunal Regional Federal da 1ª Região, confirmando a sentença do juiz federal do Piauí, que em um caso de poluição do Rio Parnaíba por vários curtumes mudou a classificação da denúncia, antes feita no art. 271 do Código Penal, para o art. 15 da Lei n. 6.938/81, porque as águas do rio já estavam poluídas. A ementa do acórdão é a seguinte:

PENAL. PROCESSO PENAL. NOVA DEFINIÇÃO JURÍDICA. CPP, art. 383. DEFESA. MEIO AMBIENTE. POLUIÇÃO. O RIO PARNAÍBA. LEI N. 6.938, DE 1981, ART.15. LEI N. 7.804, DE 1989.

I – Não é da classificação do crime que o réu se defende e sim da imputação contida na denúncia (CPP, art. 383).

II – Comete o crime previsto no art. 15 da Lei n. 6.938, de 31 de agosto de 1981, alterado pela Lei n. 7.804, de 18 de julho de 1989, o proprietário de curtume que lança no rio matérias orgânicas putrefactas, matérias não-biodegradáveis, substâncias tóxicas, poluindo-o; criando, assim, uma situação de perigo para a vida humana, animal e vegetal2.

Poluidor, segundo o art. 3º da mesma Lei, é a (...) pessoa física ou jurídica, de Direito público ou privado, responsável, direta ou indiretamente, por atividade causadora de degradação ambiental.

Essa definição já trazia algumas questões insolúveis que revelavam até mesmo a má redação do tipo penal. Primeiro, a responsabilidade penal da pessoa jurídica de Direito privado, que era – e ainda é – controversa em 1989, quando foi incluído na Lei o art. 15 e, embora alguns considerem que essa Lei foi muito avançada, não estabeleceu como puni-la criminalmente. Segundo, pela impossibilidade de a pessoa jurídica de Direito público ser agente de crime.

Ou seja, o tipo penal criado no art. 15 punia o poluidor e, no entanto, não se podia aplicar a ele a definição que lhe dava o art. 3º da própria Lei.

A forma culposa não foi prevista, o que foi uma lamentável omissão legislativa.

Ainda que representasse um avanço, o tipo penal genérico de poluição criava uma situação considerada menos grave e, portanto, menos apenada que a poluição ou corrupção de água potável: enquanto no art. 15 da Lei n. 6.938/81, a pena era de reclusão de 1 a 3 anos, no art. 271 do Código Penal, ela era de 2 a 5 anos.

A pena poderia ser aumentada até o dobro (art.15, § 1º), mas para isso teria de ocorrer uma situação, no mínimo, drástica: alguém teria de sofrer, em razão dessa poluição, uma lesão corporal grave, ou seja, aquela que incapacita a pessoa por mais de trinta dias, ocasiona perigo de vida ou lhe debilita permanentemente membro, sentido ou função (art. 129, § 1º, do Código Penal). Ou então que houvesse um dano irreversível à fauna, flora ou meio ambiente. Mesmo assim, a pena poderia chegar, no máximo, a 6 anos.

Permanecíamos, portanto, mais de quarenta anos depois, no espírito do Código de 1940 – poluir água poluída, mas potencialmente potável, não era tão grave assim. Afinal, nós somos um País que tem água em abundância. Ademais, essa Lei jamais teve efetividade, sendo poucos os casos levados aos tribunais.


4 OS TIPOS PENAIS DA LEI N. 9.605/98

Em 1998 foi então sancionada uma nova Lei, a n. 9.605, de 12 de fevereiro, que, apesar dos muitos encômios que lhe têm sido dirigidos, também ainda não é a Lei que nós esperamos, quanto à poluição das águas.

É verdade que ela acabou por abarcar a Lei n. 6.938/81, na parte do crime de poluição, prevendo uma redação mais técnica do tipo penal: o art. 54 diz que (...) causar poluição de qualquer natureza em níveis tais que resultem ou possam resultar em danos à saúde humana, ou que provoquem a mortandade de animais ou a destruição significativa da flora.

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A pena máxima foi aumentada, em relação à Lei anterior – 1 a 4 anos, sendo que ela pode chegar a 5 anos de reclusão, quando ocorra poluição hídrica (...) que torne necessária a interrupção do abastecimento público de água de uma comunidade. Ou seja, para ocorrer a qualificadora, uma comunidade inteira tem de ficar sem água. Pelo menos a conduta é punida também como crime culposo, o que é um avanço em relação à Lei anterior.

Continua mais justo à repressão penal, mas não ainda suficiente, que sendo essa água potável, seja enquadrado o agente no art. 271 do Código Penal. Isso porque a pena mínima, ali, é de 2 anos. Na prática, significa que, sendo a pena do crime do art. 54 aplicada no seu grau mínimo, ou seja, 1 ano, poderá ser substituída pelo juiz por uma multa ou por uma pena restritiva de direitos. Se for aplicada a pena de 2 anos, o juiz poderá aumentar a sanção penal, aplicando duas penas restritivas de direitos ou uma restritiva mais a multa (art. 44 do Código Penal). Creio que a conduta é grave e, portanto, merece maior apenação.

Há outras figuras, no corpo da Lei n. 9.605/98, relacionadas à poluição das águas.

O art. 33 estabelece a pena de detenção de 1 a 3 anos para quem provocar, pela emissão de efluentes ou carreamento de materiais, o perecimento da fauna aquática. Nos crimes cometidos contra a flora, a pena é aumentada de um sexto a um terço, se do fato resulta a diminuição de águas naturais, a erosão do solo ou a modificação do regime climático (art. 53).

Curiosa, no entanto, foi a menor apenação concedida pela Lei n. 9.605/98 à atividade ilegal de garimpo, que no regime da Lei n. 7.805/89 (art. 21) era sujeita à pena de reclusão de 3 meses a 3 anos e multa. Na nova Lei, a par de também englobar a atividade de pesquisa, foi diminuída para detenção de 6 meses a 1 ano, e multa.

Na prática, também é pequeno o número de casos judiciais. Em Minas Gerais, um Estado com tradição na atividade mineradora, na 4ª Vara Federal, não chegam a 10 o número de ações penais e inquéritos policiais em curso, envolvendo garimpo clandestino no leito dos rios.

Creio que a melhor responsabilização penal dos agentes da atividade mineradora, sem autorização ou em desacordo com ela, só possa vir da imputação a eles de uma outra conduta – a poluidora. Essa é decorrência da própria atividade, em virtude da utilização, dentre outros poluentes, principalmente de um metal – o mercúrio, que em doses elevadas é um poderoso poluidor das águas nas quais é jogado para o garimpo do ouro. Para isso era necessário que houvesse a persecução criminal sobre as duas condutas, o que não ocorre. Sem contar tratarem-se de crimes cuja instrução é difícil, seja porque os réus em geral fogem, ao serem apreendidos os instrumentos do crime, seja porque não se identifica o dono da embarcação na qual se realiza a atividade extrativa, que geralmente é feita por empregados.


5 A QUESTÃO DA RESPONSABILIZAÇÃO PENAL DA PESSOA JURÍDICA

Uma outra questão que a Lei n. 9.605/98 apresenta é a completa responsabilização penal da pessoa jurídica, inclusive estabelecendo penas restritivas de direito específicas para a empresa delinqüente, como a suspensão de suas atividades, a proibição de contratar com o Poder Público ou dele receber incentivos fiscais ou quaisquer outros benefícios (arts. 8º e 9º).

A discussão acadêmica e doutrinária acerca do tema é das melhores, colocando-se dos dois lados da polêmica ilustrados juristas, que se dividem entre as teorias da ficção e da realidade3. Por esta última, que parece ter sido a adotada pela lei, a pessoa jurídica é um ente completo e dotado de vontade própria, apta a tudo, inclusive, a cometer crimes.

Confesso, no entanto, que como aplicadora do Direito, tenho uma dificuldade, e ela decorre dos dois primeiros artigos da citada Lei, já que o primeiro foi vetado.

Dizem estes artigos:

Art. 2º – Quem, de qualquer forma, concorre para a prática dos crimes previstos nesta Lei, incide nas penas a esses cominadas, na medida da sua culpabilidade, bem como o diretor, o administrador, o membro de conselho e de órgão técnico, o auditor, o gerente, o preposto ou mandatário de pessoa jurídica, que, sabendo da conduta criminosa de outrem, deixar de impedir a sua prática, quando podia agir para evitá-la.

Art. 3º – As pessoas jurídicas serão responsabilizadas administrativa, civil e penalmente conforme o disposto nesta Lei, nos casos em que a infração seja cometida por decisão de seu representante legal ou contratual, ou de seu órgão colegiado, no interesse ou benefício da sua entidade.

Parágrafo único – A responsabilidade das pessoas jurídicas não exclui a das pessoas físicas, autoras, co-autoras ou partícipes do mesmo fato.

Em um Código que não admite a responsabilidade penal objetiva, sendo elemento do crime a vontade do agente, ou seja, não prescinde da apuração do dolo ou da culpa, não vejo como punir, em co-autoria, a pessoa jurídica e o seu diretor, administrador ou gerente. Como repartir as vontades, nesse caso, e se apurar até onde começa e termina a responsabilidade de um e de outro?

Seria melhor se responsabilizássemos civil e administrativamente a pessoa jurídica, deixando a responsabilização criminal para os seus diretores, gerentes – aqueles de onde, realmente, originou-se a vontade.

Não estaria essa Lei, no final, possibilitando que as pessoas físicas que autorizaram ou consentiram com a poluição causada nos rios, com conseqüências às vezes tão drásticas, acabem por ficar na impunidade, escondendo-se sob as "asas" da pessoa jurídica? É preciso tirar o véu da pessoa jurídica e não colocá-lo, para encobrir os seus membros. Foi uma batalha de longas décadas do Direito aceitar a teoria da disregard doctrine, como forma de atingir o patrimônio dos sócios, em caso de fraudes cometidas por eles em nome da empresa. O Direito Penal parece estar trilhando o caminho inverso.

Há um filme americano, estrelado por Julia Roberts, chamado Erin Bronckovich – uma mulher de talento, que serve bem para ilustrar esse tema de repressão penal – ou, no caso, a sua falta – sobre a poluição de águas. Pela história retratada no filme, que nos é mostrada como verídica, Julia Roberts interpreta uma dona de casa – Erin Brockovich - que se transforma, por força do destino, em assistente de um advogado que passa a patrocinar a causa de várias pessoas contaminadas pelo Cromo 6. Descobre-se que a contaminação é causada pelo despejo desse produto químico na água, por uma empresa, que estava causando câncer em toda a população. O desfecho é bem norte-americano – ganha-se a causa, cada pessoa contaminada recebe uns bons milhões de dólares, para curtir mais sossegadamente a sua doença.

Desculpem-me a ironia diante de tão fatídico mal, mas a aparente resolução do problema, na história americana, leva-nos, a nós, que temos o sangue latino, a pensar: onde estariam as pessoas que autorizaram ou consentiram com aquele verdadeiro genocídio? Nesses casos, é suficiente uma indenização? Não teria ali ocorrido também um crime? Obviamente, esse não é um assunto que interessou ao sucesso do filme, pois a ele não se referiu.

Agora, abro o jornal Estado de Minas e vejo uma notícia de que na cidade mineira de Formiga está ocorrendo uma história semelhante4.


6. EFETIVIDADE DA REPRESSÃO PENAL AOS CRIMES CONTRA AS ÁGUAS

Como já teve oportunidade de advertir o Juiz Vladimir Passos de Freitas, ainda não se está dando à poluição das águas a importância que merece5.

Como titular de Vara Federal Criminal em Belo Horizonte, que estende a sua competência sobre grande parte de Minas Gerais, pois só temos varas descentralizadas em Uberaba, Uberlândia e Juiz de Fora, posso afirmar que não temos nenhum caso, nem mesmo inquérito policial, relativo à poluição de águas, e a situação é a mesma na 9ª Vara que tem competência criminal em Belo Horizonte.

Na jurisprudência, também os casos na Justiça Estadual são poucos e geralmente se referem à reparação civil ou administrativa.

Este é um dado bastante significativo: a repressão penal contra os crimes praticados em detrimento dos recursos hídricos ainda é somente matéria (e também pouca) para os estudiosos do meio ambiente.

Ainda não se vê, infelizmente, uma ação repressiva intensiva das nossas polícias para se apurar a responsabilidade criminal dos poluidores das nossas águas. Talvez pela sensação generalizada de que o Brasil é um país que as tem em abundância. É triste constatar que nós ainda não temos uma cultura e consciência do problema da poluição das águas.


7 OBSERVAÇÕES FINAIS

Certa feita, foi perguntado a Norberto Bobbio sobre as características do nosso tempo que despertavam viva preocupação, como o aumento descontrolado da população, o incremento da degradação ambiental, o aumento cada vez mais rápido, incontrolado e insensato do poder destrutivo dos armamentos, e se ele ainda via algum sinal positivo, em meio a tantas causas previsíveis de infelicidade. Disse ele que sim, e que a esperança estava na importância, também cada vez mais crescente, do trato dos direitos humanos6.

É essa perspectiva da sagração dos direitos do homem que deve pautar a reforma do sistema penal positivo, como assinalou René Ariel Dotti, (...) especialmente quanto a dois aspectos: a dignificação do ser humano e a rigorosa seleção dos bens jurídicos protegidos7.

Apenas 0,7% das águas do planeta são doces. Segundo constou do relatório do Fundo Mundial para a Natureza, a qualidade dos ecossistemas mundiais de água doce sofreu uma queda de 45% em 26 anos, o que está relacionado diretamente à extinção e ameaça de extinção de centenas de espécies de animais.

A água está se tornando um bem raro, também no Brasil, motivo pelo qual foi de grande felicidade a escolha do título deste Seminário: água, o bem mais precioso do milênio.

E com referência à sua poluição, ainda estamos carecendo de incriminalização mais rigorosa, e menos discutível.


NOTAS

1 DRUMOND, 1944. p. 111.

2 TRF, 1ª Região. Ap.Crim. n. 95.01.11586-0/PI. Relator Juiz Tourinho Neto. 3ª T. unânime. DJ 18/04/96. p. 25.206.

3 Pela teoria da ficção, que ganhou contornos definitivos com Savigny, apenas o homem, individualmente considerado, é dotado de capacidade para ser sujeito de direitos e de personalidade. Entre os penalistas, é defendida, dentre outros, por Maurach, Soler, Zaffaroni, Magalhães Noronha, Aníbal Bruno e Damásio de Jesus. A teoria da realidade é defendida por Gierke, Von Liszt e tem grande número de adeptos entre os autores anglo-saxões.

4 No município mineiro de Formiga, a 184 km de Belo Horizonte, surgiram denúncias, no início do ano de 1999, de que 400 toneladas de lixo industrial estariam poluindo, há quatro anos, as nascentes do único rio que fornece água à cidade. Há ameaça de contaminação da população pela dioxina, segundo foi publicado nos jornais, que é uma substância cancerígena. Minas vira lixeira de São Paulo. Estado de Minas, Caderno Gerais, 19/05/2000, p. 30.

5 FREITAS, 1997. p. 12-20.

6 BOBBIO, 1992. p. 49.

7 DOTTI, 2000. p. 9.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

DRUMOND, Magalhães. Comentários ao Código Penal. Rio de Janeiro: Forense, 1944. t. IX.

FREITAS, Vladimir Passos de. Poluição de águas. Revista CEJ, Brasília, v. 1, n. 3, set./dez. 1997. p. 12-20.

BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Tradução por Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Campus, 1992.

DOTTI, René Ariel. Globalização e Direito Penal. Boletim IBCCRIM, ano 7, n. 86, jan./2000. p. 9.

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Sobre a autora
Mônica Sifuentes

Desembargadora Federal do TRF 1ª Região. Mestre em Direito Econômico e Doutora em Direito Constitucional pela Universidade Federal de Minas Gerais

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SIFUENTES, Mônica. Responsabilidade penal pela má utilização da água. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 623, 23 mar. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/6506. Acesso em: 24 abr. 2024.

Mais informações

Texto baseado em conferência proferida no Seminário Internacional "Água, bem mais precioso do milênio", promovido pelo Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal, de 17 a 19 de maio de 2000, no auditório do Superior Tribunal de Justiça, em Brasília.

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