Da presunção de violência e da necessidade de análise casuística nos casos de estupro do vulnerável menor de 14 anos

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Faz-se uma análise casuística nos crimes de estupro de vulnerável para questionar a presunção absoluta de violência.

1 INTRODUÇÃO

Com o advento da Lei nº 12.015, em agosto de 2009, os crimes contra a dignidade sexual ganharam nova roupagem, especialmente o delito de estupro de vulnerável, que recebeu tipo penal próprio.

Contudo, ante a mudança trazida pela referida Lei, surgiram inúmeros debates e entendimentos acerca do tema e da taxatividade imposta pelo legislador ao formular tal dispositivo legal.

Ao analisar o tema deste trabalho, não se pode perder de vista os avanços tecnológicos, o maior acesso à informação e o desenvolvimento histórico-cultural da sociedade como um todo. Ademais, é evidente que o sexo já não é algo tão censurado quanto era em tempos anteriores e que os adolescentes, na atualidade, desenvolvem sua sexualidade cada vez mais precocemente, sendo importante mencionar, a importância de que cada caso seja tratado em sua particularidade, pois uma criança de 13 anos pode não ter o mesmo entendimento e desenvolvimento psicológico e emocional que outra da mesma idade em relação à sexualidade.

Nesse sentido, o presente trabalho busca apontar a necessidade de relativizar a vulnerabilidade, considerada absoluta pela atual legislação penal, confrontando entendimentos distintos ao tipo penal imposto de forma restrita, por meio de doutrinas e jurisprudências.

A pesquisa se inicia com uma análise constitucional acerca do tema, considerando os princípios basilares aos quais devem se pautar ante o julgamento dos casos do delito em tela.

Posteriormente, foi analisada a estrutura do delito, apresentando os elementos encontrados no crime de estupro de vulnerável, disposto no artigo 217-A do Código Penal.

Foi explorada, ainda, de maneira breve, a parte histórica, referente à evolução do tipo penal entre os séculos XX e XXI e as suas significativas mudanças relativas ao tipo penal e a sua abrangência. Em seguida, encontra-se uma análise da evolução social e da importância de o legislador e de o julgador manterem-se atentos às mudanças e desenvolvimento da sociedade, de modo a aplicarem, de modo justo, a decisão, em face do conflito em questão.

Por fim, é asseverada a necessidade da análise casuística, para atos de natureza sexual, ante a possibilidade de capacidade de consentir do ofendido e a viabilidade de exclusão da tipicidade em face da maturidade da vítima, bem como em casos de erro de tipo quanto à idade da vítima, devido, inclusive e entre outras possíveis causas, ao seu desenvolvimento físico avançado.

Em todo trabalho foram, utilizados, para pesquisa, os métodos de procedimento bibliográficos e jurisprudenciais e o método hipotético-dedutivo, para a tentativa de solucionar a problemática apresentada advinda de premissas maiores, na tentativa de eliminar erros e apresentar hipóteses e teorias que possam ser válidas como um meio para a solução de conflitos sobre o tema pesquisado.

Em suma, o presente trabalho analisa o crime de estupro de vulnerável, considerando, de modo primordial, a aplicação da relativização da vulnerabilidade, em decorrência dos princípios constitucionais presentes e da necessidade de análise de cada caso em sua individualidade, valorizando essencialmente as condições apresentadas pelas vítimas e avaliando, também, precipuamente a sua palavra.

Entretanto, e por fim, o trabalho aqui apresentado não pretende esgotar as discussões acerca do tema ora exposto, considerando a importância e a necessidade de pesquisas para o auxílio dos conflitos dessa natureza.


2 ANÁLISE CONSTITUCIONAL

Inicialmente, antes de adentrar no tema proposto para esta pesquisa, é importante ressaltar que, em nosso ordenamento jurídico, todas as leis decorrem de um ponto central, a Constituição Federal (CF) de 1988, nossa Carta Magna.

É de grande relevância lembrar que, em relação às garantias e direitos fundamentais, não há como distanciar a Constituição Federal do Código Penal (CP), pois, se em um patamar mais amplo a Constituição é o que garante os direitos e bens jurídicos mais importantes, o Código Penal, de forma mais específica, tem a função de proteger e impedir que tais direitos e bens jurídicos sejam ofendidos.

Pelo exposto, é válido ressaltar que a delimitação dos bens jurídicos possui base nos valores culturais, conforme bem salienta o jurista Luiz Regis Prado:

Os bens jurídicos têm como fundamento valores culturais que se baseiam em necessidades individuais. Estas se convertem em valores culturais quando são socialmente dominantes. E os valores culturais transformam-se em bens jurídicos quando a confiança em sua existência surge necessitada de proteção jurídica.[1]                                         

Ademais, segundo o mesmo autor, “o bem jurídico vem a ser um ente material ou imaterial extraído do contexto social, de titularidade individual ou metaindividual, considerado como essencial para a coexistência e o desenvolvimento do homem”.[2]

Nesse sentido, é de se dizer que o bem jurídico é “essencial para a coexistência e o desenvolvimento do homem e, por isso, jurídico-penalmente protegido”[3], considerando que a norma penal deve pautar-se apenas em sua integral preservação e proteção, pois, além de um bem individual, é também um bem social, que está tutelado pela norma jurídica.[4]

Assim, compreende-se que a concepção jurídica moderna traz como finalidade imediata do Direito Penal a proteção de bens jurídicos, basilares aos indivíduos e comunidade como um todo. Todavia, essa tutela penal só é legítima quando for essencial para proporcionar as condições de vida, desenvolvimento e paz social, que são preceitos da dignidade e da liberdade da pessoa humana.[5] Observa-se, portanto, que se trata do princípio da exclusiva proteção de bens jurídicos.

Posto isso, verifica-se que a Constituição concede, ao Direito Penal, a missão de proteger os bens jurídicos mais importantes, de modo a prevenir danos ao convívio social. Contudo, é válido ressaltar que a moral não pode ser o bem jurídico principal a ser tutelado, a não ser que venha acompanhada de lesão ou perigo de lesão ao bem protegido.[6]

Ainda, no que tange aos direitos e garantias fundamentais inerentes às pessoas, muitos deles estão pautados em princípios, posto que o principal e supremo deles, e no qual se baseiam os demais, é o princípio da dignidade da pessoa humana com o fundamento de que a sua proteção seja sempre mantida.

2.1 Princípio da dignidade da pessoa humana

Somente após o advento da Constituição Federal de 1988, o princípio da dignidade humana foi alçado como valor constitucional principal diante do sistema de direitos fundamentais, em que o Estado Democrático de Direito deve, acima de tudo, garantir a sua proteção e criar condições para que este seja respeitado, mesmo que para isso deva repelir situações que possam impedir a sua concretização. Além disso, é sobre o princípio da dignidade da pessoa humana que se deve pautar todo o ordenamento jurídico.[7]

O jurista Ingo Wolfgang Sarlet propõe o seguinte conceito de dignidade da pessoa humana, visando a uma noção multidimensional do referido princípio:

[...] a qualidade intrínseca e distintiva reconhecida em cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e co-responsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos, mediante do devido respeito aos demais seres que integram a rede da vida.[8]

Há quem afirme que a dignidade da pessoa humana não está intrínseca e exclusivamente ligada à natureza humana e que ela deva, também, ser pautada no sentido cultural, no qual está incluído o trabalho de várias gerações e a humanidade em sua totalidade, onde o natural e o cultural se completam e se relacionam simultaneamente, o que contraria a ideia de que a dignidade tenha uma dimensão biológica, sendo, portanto, histórico-cultural.[9]

José Carlos Teixeira Giorgis, desembargador aposentado e professor da escola de magistratura do Rio Grande do Sul, tem essa mesma compreensão, considerando que a dignidade da pessoa humana não é uma definição constitucional, mas, sim, um dado emanado de toda experiência que atrai os demais direitos fundamentais, fundamentando que tal dignidade não se trata apenas de um princípio de cunho jurídico, como também de lógica política, cultural e econômica, com valoração constitucional.[10]

Dessa forma, o mesmo autor conclui:

[...] a consagração do princípio da dignidade da pessoa humana implica em considerar-se o homem como centro do universo jurídico, reconhecimento que abrange todos os seres; e que não se dirige a determinados indivíduos, mas cada um individualmente considerado, de sorte que os efeitos irradiados pela ordem jurídica não hão de manifestar-se, a princípio, de modo diverso ante duas pessoas;[11]                        

Ademais, Ingo Wolfgang Sarlet apresenta a concepção de dignidade da pessoa humana por Kant, que a concebe por meio da racionalidade do ser humano, na qual se percebe a inerência entre autonomia e dignidade, como exposto a seguir:

[...]sinala que a autonomia de vontade, entendida como a faculdade de determinar a si mesmo e agir em conformidade com a representação de certas leis, é um atributo apenas encontrado nos seres racionais, constituindo-se no fundamento da dignidade da natureza humana.[12]

Além disso, o jurista assevera que “a dignidade pode ser considerada como próprio limite do exercício do direito de autonomia, ao passo que este não pode ser exercido sem o mínimo de competência ética”.[13]

Portanto, considerando que a proteção da dignidade humana é um princípio intangível e determinante para a efetivação dos demais direitos, “a integridade física e moral da vítima são elementos da dignidade humana, que está acima daquilo que a lei tentou convencionar como os bons costumes”.[14]

A respeito dos crimes sexuais, a doutrina esteve em discussão sobre qual seria o bem jurídico a ser tutelado, em que prevalecia a moral sobre a dignidade da vítima. Contudo, atualmente, em relação ao bem jurídico tutelado, pautado nos valores constitucionais, considera-se que o princípio da proteção da dignidade humana se sobrepõe aos demais valores.[15]

Ao conceituar que a dignidade sexual se encontra tutelada dentro do princípio da dignidade humana, entendendo “ser dignidade sexual o direito de a pessoa escolher, consciente e voluntariamente, suas condutas sexuais”[16], compreende-se que toda pessoa tem o livre arbítrio de dispor de seu corpo para a prática de atos sexuais, se assim for sua vontade. O que leva ao entendimento de que, para ser considerado o crime de estupro, a vítima deve condenar o ato.

2.2 Princípio da culpabilidade

É válido ressaltar que o princípio da culpabilidade é norteador do ordenamento e conota a inviolabilidade do respeito à dignidade da pessoa humana.[17]

Destaca-se, ainda, a garantia de que “não há crime sem culpabilidade”[18], ou seja, não há como incriminar uma pessoa que não tenha agido mediante culpa ou dolo e, ainda que havendo o delito (culposo ou doloso), o resultado jurídico seja compatível à magnitude do dano causado pela ação do agente.[19]

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Nesse sentido, o Código Penal disciplina, em seus artigos 18 e 19, a respeito dos crimes culposos e dolosos:

Art. 18 - Diz-se o crime: 

Crime doloso

I - doloso, quando o agente quis o resultado ou assumiu o risco de produzi-lo;

Crime culposo

II - culposo, quando o agente deu causa ao resultado por imprudência, negligência ou imperícia. 

Parágrafo único - Salvo os casos expressos em lei, ninguém pode ser punido por fato previsto como crime, senão quando o pratica dolosamente.[20] 

Contudo, a culpabilidade refere-se à possibilidade de aplicação, ou não, de uma pena ao causador de um fato típico ou que seja proibido por lei. Além disso, é necessário que nessa conduta estejam presentes alguns requisitos que integrem os elementos positivos característicos da culpabilidade, quais sejam: consciência da ilicitude, capacidade da culpabilidade e exigibilidade da conduta, sabendo que basta a inexistência de alguns desses elementos para impossibilitar o cumprimento da sanção penal.[21]

Desse modo, há algumas garantias que o princípio da culpabilidade apresenta: “exigência de imputação subjetiva, individualização da pena, necessidade de ponderação das circunstâncias pessoais do autor e pena adequada à magnitude culpável da conduta do autor”.[22] Ademais, “no exame de culpabilidade, devem ser levados em consideração todos os elementos objetivos e subjetivos da conduta típica e ilícita realizada, também, suas circunstâncias e aspectos relativos à autoria”.[23]

Embora seja na culpabilidade que se constitui o fundamento e o limite da pena, não há que se falar que esse seja um elemento exclusivo, ainda que seja essencial. Ou seja, o princípio da culpabilidade delimita o máximo da pena, enquanto a culpabilidade está ligada aos pressupostos, que caracterizam a pena referente ao fato típico e culpável, e que necessitam de um respaldo. Isso proporciona a segurança de que a pena não tenha como objetivo apenas a prevenção e que o homem não seja utilizado como mero garantidor da ordem pública, assegurando a dignidade da pessoa humana do acusado.[24]

Diante disso, é indubitável que o poder punitivo estatal vise ao equilíbrio na análise da conduta delitiva, sendo que esta não pode sofrer sanção sem que haja culpa ou dolo.

2.3 Princípio da intervenção mínima

O referido princípio integra o Direito Penal e vem revestido pela dignidade da pessoa humana, em que somente é passível de punição a tipicidade do fato que realmente lesionar um bem jurídico significativo.

Em outras palavras, o princípio da intervenção mínima diz respeito ao fato da intervenção penal ser usada somente em último caso e “estabelece que o Direito Penal só deve atuar na defesa dos bens jurídicos imprescindíveis à coexistência pacífica dos homens e que não podem ser eficazmente protegidos de forma menos gravosa”[25]

Além disso, somente quando os demais ramos do Direito se tornam ineficazes para tutelar os bens relevantes na vida do indivíduo e da sociedade, que se pode usar do Direito Penal como a “ultima ratio”[26], ou seja, o último recurso a ser usado diante de um fato castigável e que, ante a necessidade, o mesmo se faça de maneira suficiente a ter eficácia.[27]

Cumpre ressaltar que apenas se legitima a criminalização de uma conduta somente se for garantida a proteção de um bem jurídico e é diante disso que o princípio da intervenção mínima, ou “ultima ratio”, norteia e delimita o poder incriminador do Estado[28], pois “a sanção penal reveste-se de especial gravidade, acabando por impor as mais sérias restrições aos direitos fundamentais”.[29]

Trata-se, portanto, de uma instrução político-criminal restritiva do jus-puniendi e emana do próprio Direito Penal. Contudo, a excessiva aplicação da sanção penal não traz a garantia máxima da tutela de bens, condenando, oposto a isso, o sistema penal a uma visão simplesmente negativa.[30]

Como se verifica, a “utima ratio” deve ser usada quando as outras formas de tutela não forem satisfatórias, impedindo que a sociedade trate o Direito Penal como desinteressante ou antiquado ou, ainda, que o poder punitivo estatal atue de forma a atender prioritariamente as condutas imorais e, quando desgastado, caia na impunidade.[31]

Assim sendo, se outras formas de tutela do bem jurídico, como sanções administrativas e civis, forem suficientes para a sua integral proteção, não há que se valer do Direito Penal.

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Sobre os autores
Carlos Eduardo Pires Gonçalves

Graduado em Direito pela Universidade Paranaense (2004). Especialista em Direito Público com ênfase em Direito Penal pela Unp - Universidade Potiguar. Professor das disciplinas de Processo Penal II, Direito Penal III e IV, e Prática Processual Penal I e II no curso de Graduação em Direito da Unifamma. Leciona em diversos cursos de pós-graduação na área criminal.

Anielle Sabino da Costa

Graduada em Direito pela FAMMA - Faculdade Metropolitana de Maringá

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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