Da presunção de violência e da necessidade de análise casuística nos casos de estupro do vulnerável menor de 14 anos

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4 BREVE HISTÓRICO SOBRE A PROTEÇÃO SEXUAL DE VULNERÁVEIS NO DIREITO PENAL BRASILEIRO

O atual sistema de proteção de crianças e adolescentes no Brasil é fruto de muitos avanços decorrentes de discussões, mobilizações e alterações de sistemas de tutela remotos. Em tempos não muitos distantes, as crianças e adolescentes eram pessoas sem quaisquer valores ou direitos reconhecidos. Com o decorrer do tempo, a realidade social e a concepção dos direitos humanos foram se adequando, e passou-se a reconhecer a criança como pessoa em fase de desenvolvimento, que merece proteção especial.[79]

Inicialmente, e em um longo espaço de tempo, a proteção às crianças era focada naquelas que se encontravam em estado de risco e fragilidade social. Assim, em 05 de janeiro de 1921, foi criada a lei 4.242 que autorizava a organização de um Serviço de Assistência e Proteção à Infância Abandonada e Delinquente.[80] Logo após, em 1927, foi criado o Código de Menores que tinha caráter controlador e “aboliu o critério do discernimento e exigia que o menor ficasse sob o cuidado dos pais até 14 anos, e, na impossibilidade de tais cuidados, a internação seria então aplicada”.[81] Em 1979, foi aprovado o novo Código de Menores (Lei 6.697/1979) que tinha como finalidade a tutela de pessoas menores de 18 anos, em especial aquelas em situação irregular, e que tratava da vigilância e proteção de crianças abandonadas ou carentes.[82]

Contudo, somente com a promulgação da Constituição Federal de 1988, crianças e adolescentes começaram a ser tratados como pessoas de direitos[83] e passaram a ter tutela integral do Estado, como pode se verificar no disposto no artigo 227, caput, conforme segue:

Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.[84]

Além disso, após dois anos, o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069, de 13 de julho 1990) promulgou a Lei 6.697/1979, “cuja função é regulamentar e dar efetividade aos dispositivos constitucionais”[85], incluindo, de forma significativa, a proteção sexual, atuando em conjunto com o código penal e dispondo, em seu artigo 5º, que: “Art. 5º Nenhuma criança ou adolescente será objeto de qualquer forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, punido na forma da lei qualquer atentado, por ação ou omissão, aos seus direitos fundamentais.”[86]

Todavia, cumpre ressaltar que o Estatuto da Criança e do Adolescente considera criança pessoa com até 12 anos de idade, porém o Código Penal, para efeitos de proteção penal integral, inclusive a sexual, considera também os adolescentes com idade inferior a 14 anos.[87] Entretanto, é relevante mencionar, conforme a compreensão do doutrinador Guilherme de Souza Nucci, a necessidade de igualar esse entendimento à idade de 12 anos, no que diz respeito ao consentimento dos atos sexuais, a fim de que seja evitado o conflito de normas,[88] como veremos adiante.

Diante disso, é possível observar que, no Brasil, houve significativas alterações, no decorrer do século XX e início do século XXI, referentes à proteção de crianças e adolescentes, especialmente a partir da década de 90. Tais alterações ainda permeiam nossa sociedade e encontram-se em evolução até os dias atuais.

4.1 Código Penal de 1940

Com o advento da lei nº 12.015, de 7 de agosto de 2009, foi modificado o título, presente no Código Penal de 1940,  que tratava como “Crimes contra os Costumes”, no que tangia à moral pública sexual, passando a denominar-se “Crimes contra a dignidade sexual”. Tal mudança no nome do título foi realizada para harmonizar com o princípio constitucional da dignidade da pessoa humana, fundamento da Constituição Federal de 1988.[89]

Sobre a legislação da época, pairavam noções típicas de um exercício de poder autoritário, trazendo a falha na repressão contra os crimes sexuais, devido às diferenças sociais e ao preconceito acerca do objeto e finalidade da proteção pretendida. Além disso, não eram atendidas as reais situações de violência quanto à liberdade sexual, especialmente quando referentes às crianças e adolescentes.[90]

Parte da doutrina entendia que o propósito do Código, em estipular como regra a ação penal privada nos crimes contra os costumes, era poupar o escândalo causado pela propositura da ação penal, evitando, assim, novos danos à vítima causados pela repercussão negativa diante do conhecimento geral do episódio criminoso. Sendo considerado crime de ação pública incondicionada somente em caso de ser cometido com abuso do pátrio poder, ou da qualidade de padrasto, tutor ou curador, ou, se do ato, resultasse lesão corporal grave ou morte.[91]

Diante disso, como forma de tentar reparar essa distorção e por motivo meramente político criminal, o Supremo Tribunal Federal editou a súmula 608[92], aprovada em 17 de outubro de 1985, a qual apresenta em seu texto: “No crime de estupro, praticado mediante violência real, a ação penal é pública incondicionada”.[93]

Assinala-se, ainda, que o Código Penal de 1940 foi regulado de acordo com o enfoque cultural que vivia a sociedade da época, na qual apenas mulheres de bons costumes, de família e virgens até a data do matrimônio eram dignas de tal proteção da lei. Tem-se ainda, como exemplo, a possibilidade de anulação do casamento, caso fosse constatado que a mulher não era virgem à data do casamento.[94] Dessa forma, observa-se que a legislação buscava a proteção dos “hábitos, moralismos e eventuais avaliações da sociedade”.[95]

Todavia, em caráter geral, vários doutrinadores já vinham se manifestando sobre a regra geral referente à ação penal supracitada, quanto ao bem jurídico tutelado pelo antigo Código Penal nos crimes sexuais, que à época se tratava dos bons costumes, prevalecendo a valoração moral em face da dignidade da vítima. Tal manifestação era advinda da ideia de que a moral não poderia ser o bem jurídico principal a ser tutelado e que a violência sexual atentava diretamente contra a dignidade da pessoa humana, a qual não poderia exercer livremente a sua autodeterminação sexual do modo como desejava.[96] Do mesmo modo, “a integridade física e moral da vítima são elementos da dignidade humana que está acima daquilo que a lei tentou convencionar como os bons costumes”[97]

Partindo da premissa de descumprimento do preceito constitucional, abrangido no artigo 227, § 4º, da Constituição Federal de 1988, em uma reunião da Comissão Intersetorial de Combate à Violência Sexual contra Crianças e Adolescentes, em setembro de 2003, foi criado o Grupo de Estudos de Análise Legislativa, que resultou no projeto de lei 253/2004, com a finalidade de alterar o título VI da parte especial do Código Penal de 1940.[98]

Diante disso, o capítulo II do Código Penal teve seu conteúdo alterado e passou a não mais tratar da sedução e da corrupção de menores, mas dos crimes sexuais contra vulnerável. Nessa nova perspectiva, o homem passa a figurar como sujeito passivo, e não apenas a mulher, podendo ele, também, ser constrangido à conjunção carnal, mediante violência ou grave ameaça,[99] o que garantiu a isonomia entre homens e mulheres.

Do mesmo modo, o título VI deixou de ser chamado “Crimes contra os Costumes” e foi denominado “Crimes contra a Dignidade Sexual”, pois passou a tutelar a dignidade sexual das pessoas e não mais os costumes, correspondendo à nova realidade contemporânea,[100] por não se poder assimilar a proteção sexual das pessoas à virgindade, a sua honestidade ou a determinada idade.[101]

Ademais, verifica-se a defasagem do Código Penal de 1940 em face da atual redação, e a significante alteração quanto ao bem jurídico a ser tutelado[102].

Ante o exposto, fica claro a motivação do legislador em querer alterar o título do capítulo VI do Código Penal de 1940, por não estar de acordo com a nova realidade da sociedade, na qual não se enquadrava mais a utilização da expressão “os costumes”, e também pela discriminação em face da segregação social da época.

4.2 Da presunção de violência, sua revogação pela Lei nº 12.015/2009, e do surgimento da vítima vulnerável

Até a vigência da lei 12.015/2009, a violência, nos casos de estupro contra vulneráveis, era presumida nas hipóteses do artigo 224 do Código Penal, hoje revogado.[103]

Antes da referida lei, figurava-se apenas o estupro comum no Código Penal, não existindo o estupro de vulnerável, como definido atualmente. Assim, presumia-se a violência independentemente do consentimento da vítima.[104]

O autor Fernando Capez explica a concepção do legislador, ao tratar do artigo citado, em que a violência era considerada ficta ou presumida, como se observa a seguir:

Tinha em vista o legislador circunstâncias em que a vítima não possuía capacidade para consentir validamente ou para oferecer resistência. Com base na presença dessas circunstâncias, criou-se uma presunção legal do emprego de violência, pois, se não havia capacidade para consentir ou para resistir, presumia-se que o ato foi violento. Diferia da violência real, pois nessa havia efetiva coação física ou moral.[105]

Fernando Capez aponta, ainda, os fundamentos do Código Penal ao empregar a presunção de violência nos casos que atentava contra os costumes das então ofendidas:

O Código Penal, considerando as peculiares condições da vítima, por ficção legal, reputava, por exemplo, que a conjunção carnal havia sido realizada com o emprego de violência, ainda que com o seu consentimento para a prática do ato sexual. Em resumo: mesmo que inexistisse a violência e que houvesse o consentimento da vítima, presumia-se a prática do crime de estupro se o ato sexual fosse realizado estando presente qualquer das condições acima citadas. O estupro com violência real ou presumida integrava, portanto, o mesmo tipo incriminador, com penas idênticas.[106]

Assim sendo, a redação disposta no antigo Código Penal proporcionava dupla compreensão quanto à norma: considerando que o consentimento da vítima era irrelevante, tornando-se assim a presunção de violência absoluta, ou considerando que a presunção seria relativa, diante do consentimento da vítima.[107]

Com a revogação da presunção de violência dada pelo artigo 7º da Lei nº 12.015/2009, não mais se presume a violência em menores de 14 anos, considerando apenas violência absoluta e não admitindo prova em contrário.[108] O legislador gerou, ainda, um tipo penal autônomo, previsto no artigo 217-A, com sanções próprias e penas maiores, utilizando-se a nomenclatura “estupro de vulnerável” e não mais integrando o tipo penal previsto no artigo 213 do Código Penal.[109]

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A classificação de vulnerabilidade empregada nesse novo tipo penal refere-se à vítima que será “sempre uma pessoa fragilizada, incapacitada física ou mentalmente”[110] e, conforme disposto no corpo do artigo 217-A, toda criança ou adolescente com idade inferior a 14 anos e qualquer pessoa enferma ou incapacitada, física ou mentalmente, que não possa oferecer resistência ao agente criminoso.[111]

Destarte, afastando a presunção de violência, o legislador estabeleceu maior severidade ao tratar do assunto quando considerou a irrelevância do consentimento do ofendido,[112] passando a violência a ser elemento inseparável da conduta ou sequer seja exigida para a configuração do delito.[113]

Todavia, a lei não se refere à maturidade sexual da vítima ou à sua capacidade de consentir o ato, mas à sua fragilidade no âmbito moral, social, biológico, cultural e fisiológico, sendo indubitável a necessidade de proteção, por parte do Estado, às pessoas que se encontram em situação de perigo ou fragilidade.[114]

Embora não se possa afirmar que a vítima não tenha consciência para consentir o ato ou que a mesma tenha sua maturidade sexual prematura, ela deve ser considerada vulnerável devido à sua condição, entre outras, de menor, descrita no artigo 217-A do atual Código Penal.[115]

Cumpre ressaltar, no entanto, que o surgimento de vítima vulnerável não pode ser confundido com a presunção de violência da legislação anterior, conforme explica o autor Fernando Capez:

São vulneráveis os menores de 18 anos, mesmo que tenham maturidade prematura. Não se trata de presumir incapacidade ou violência. A vulnerabilidade é um conceito muito mais abrangente, que leva em conta a necessidade de proteção do Estado em relação a certas pessoas e situações.[116]

Pelo exposto, verifica-se que, considerando a redação dada ao Código Penal após o advento da Lei 12.015/2009, com a revogação do artigo 224, desapareceu a possibilidade de presunção de violência nos casos de estupro de vulnerável, não podendo esta ser relativizada.

Em suma, essa hipótese foi abolida da lei, passando a ter caráter absoluto a presunção de violência nesses casos, bastando o agente ter conhecimento de que a vítima é menor de 14 anos para que seja considerado o estupro, de forma objetiva.[117]

Diante disso, explica-se o motivo de doutrinas, questionamentos e julgados contrários, que serão abordados a seguir, em razão de o legislador pautar-se somente na questão da idade, não se valendo da possível experiência ou consentimento da vítima, trazendo consigo a objetividade da conduta, sem qualquer prova que possa vislumbrar o contrário, como a vontade da vítima e a conduta do acusado.

4.3 Posicionamento jurisprudencial acerca da presunção de violência no crime de estupro de vulnerável

O novo texto do Código Penal, presumivelmente, assentaria a polêmica discussão iniciada após uma decisão relatada pelo então Ministro do Superior Tribunal Federal (STF) Marco Aurélio, em 1996, a qual fundamentou que a presunção de violência não era admitida, pois havia indícios de que a vítima havia consentido o ato,[118] conforme exposto na jurisprudência pátria a seguir:

COMPETÊNCIA - HABEAS-CORPUS - ATO DE TRIBUNAL DE JUSTIÇA. Na dicção da ilustrada maioria (seis votos a favor e cinco contra), em relação à qual guardo reservas, compete ao Supremo Tribunal Federal julgar todo e qualquer habeas-corpus impetrado contra ato de tribunal, tenha esse, ou não, qualificação de superior. ESTUPRO - PROVA - DEPOIMENTO DA VÍTIMA. Nos crimes contra os costumes, o depoimento da vítima reveste-se de valia maior, considerado o fato de serem praticados sem a presença de terceiros. ESTUPRO - CONFIGURAÇÃO - VIOLÊNCIA PRESUMIDA - IDADE DA VÍTIMA - NATUREZA. O estupro pressupõe o constrangimento de mulher à conjunção carnal, mediante violência ou grave ameaça - artigo 213 do Código Penal. A presunção desta última, por ser a vítima menor de 14 anos, é relativa. Confessada ou demonstrada a aquiescência da mulher e exsurgindo da prova dos autos a aparência, física e mental, de tratar-se de pessoa com idade superior aos 14 anos, impõe-se a conclusão sobre a ausência de configuração do tipo penal. Alcance dos artigos 213 e 224, alínea "a", do Código Penal.[119]

Ainda que a Lei 12.015/2009 seja taxativa quanto à vulnerabilidade, não há que se falar que alguns julgadores não façam a apreciação de cada caso em sua individualidade, decidindo de forma contrária à lei, conforme se pode verificar consoante ementa a seguir:

APELAÇÃO CRIME. CRIMES CONTRA A LIBERDADE SEXUAL. ESTUPRO DE VULNERÁVEL. RELAÇÃO DE NAMORO ENTRE VÍTIMA E RÉU. RELATIVIZAÇÃO DO CONCEITO DE VULNERABILIDADE. ABSOLVIÇÃO MANTIDA, POR FUNDAMENTO DIVERSO. Os elementos de convicção constantes dos autos demonstram que a vítima (com 12 anos de idade) e o denunciado (com 22 anos de idade) mantiveram relacionamento amoroso e sexual por determinado período. Tal conduta, em tese, subsume-se ao disposto no art. 217-A do Código Penal. No entanto, a vulnerabilidade da vítima não pode ser entendida de forma absoluta simplesmente pelo critério etário - o que configuraria hipótese de responsabilidade objetiva -, devendo ser mensurada em cada caso trazido à apreciação do Poder Judiciário, à vista de suas particularidades. Afigura-se factível, assim, sua relativização nos episódios envolvendo adolescentes. Na hipótese dos autos, a prova angariada revela que as relações ocorreram de forma voluntária e consentida, fruto de aliança afetiva. Aponta também que a ofendida apresentava certa experiência em assuntos sexuais. A análise conjunta de tais peculiaridades permite a relativização de sua vulnerabilidade. Como consequência, a conduta descrita na inicial acusatória não se amolda a qualquer previsão típica, impondo-se a absolvição do réu com base no art. 386, III, do Código de Processo Penal (fundamento diverso ao constante da sentença). APELAÇÃO DESPROVIDA. (Apelação Crime Nº 70044569705, Sétima Câmara Criminal, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Naele Ochoa Piazzeta, Julgado em 20/10/2011).[120]

A partir da decisão do tribunal gaúcho, foi iniciada a discussão acerca da taxatividade que o conteúdo do artigo 217-A do Código Penal trouxe consigo e, inevitavelmente, desenvolveram-se debates para que a aplicação da norma penal se faça com equilíbrio e justiça.[121]

Em vista disso, Plínio Gentil esclarece, ainda, sua opinião quanto ao advento da Lei 12.015/2009, sua interpretação e aplicação:

Claro que a lei, uma tornada vigente, ganha vida própria e, ao ser manejada pelos juízes e demais atores do processo, deve sair de sua abstração e materializar-se na situação concreta onde será aplicada, convertendo-se em lei particular do caso em julgamento. A partir desse instante, entram em cena novos elementos, trazidos pela riqueza dos detalhes de cada caso e argumentos das partes, que colocam em xeque aquela pretensa clareza da lei escrita.[122]

Nesse sentido, a exemplo do exposto, verifica-se a recente decisão da 6ª Câmara do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, que entendeu ser necessário avaliar as circunstâncias para validar a vulnerabilidade da vítima, não se valendo apenas do fator etário para sua determinação. Trata-se de uma ação movida pelo Ministério Público do Rio Grande do Sul contra um rapaz de 18 anos de idade, seus pais e a mãe de sua namorada, uma garota com 12 anos de idade, com a qual o rapaz mantém relacionamento afetivo duradouro, com o consentimento dos pais dela, mantendo, ainda, a mais de um ano, residência juntos, na casa dos pais do referido acusado, que a acolheram e consentiram o convívio entre eles.[123]

Diante desse fato concreto, a relatora da presente apelação crime, a desembargadora Vanderlei Teresinha Tremeia Kubiak, atribuiu a seguinte sentença:

Em que pese a atuação da vítima e seu companheiro não retrate a conduta esperada, em tese, por indivíduos em idade análoga, percebe-se que permanecem resguardados os direitos da adolescente, até mesmo porque há relatos de que frequenta regularmente a escola e encontra-se assistida material e afetivamente pela genitora e pela família do companheiro, que a acolheu em sua residência. Nesse mesmo norte, não merece a conduta dos genitores do casal ser caracterizada como omissão, visto que, ao invés de ignorar o relacionamento, optaram por mantê-los protegidos, dando-lhes orientação e assistência.[124]

Corroborando o exposto, a jurisprudência do entendimento ora mencionado segue na ementa abaixo:

APELAÇÃO. CRIME CONTRA A DIGNIDADE SEXUAL. ESTUPRO DE VULNERÁVEL. NO CASO CONCRETO, NÃO RESTOU DEMONSTRADA A TIPICIDADE DO FATO DESCRITO NA EXORDIAL ACUSATÓRIA, DIANTE DA REALIDADE SOCIAL EM QUE VIVEM DENUNCIADOS E VÍTIMA. RELATIVIZAÇÃO DA PRESUNÇÃO DE VIOLÊNCIA. MANTIDA A DECISÃO RECORRIDA. APELAÇÃO IMPROVIDA. (Apelação Crime Nº 70072156490, Sexta Câmara Criminal, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Vanderlei Teresinha Tremeia Kubiak, Julgado em 20/04/2017)[125]

Diante da referida situação, seria grande hipocrisia condenar o namorado às penalidades do artigo 217-A, visto que se trata apenas de precocidade na conduta sexual decorrente do relacionamento afetivo e não de crime contra a dignidade sexual da garota.[126]

Esse mesmo entendimento tem o autor Guilherme de Souza Nucci, o qual afirma que, ainda nascido o novo tipo penal, este não fará encerrar a discussão acerca do tema aludido. A esse propósito, faz-se mister trazer à colação o entendimento em que o ilustre autor assevera:

A proteção conferida aos menores de 14 anos, considerados vulneráveis, continuará a despertar debate doutrinário e jurisprudencial. O nascimento de tipo penal inédito não tornará sepulta a discussão acerca do caráter relativo ou absoluto da anterior presunção de violência. Agora, subsumida na figura de vulnerabilidade, pode-se tratar da mesma como sendo absoluta ou relativa. Pode-se considerar o menor, com 13 anos, absolutamente vulnerável, a ponto de seu consentimento para a prática sexual ser completamente inoperante, ainda que tenha experiência sexual comprovada? Ou será possível considerar relativa a vulnerabilidade em alguns casos especiais, avaliando-se o grau de conscientização do menor para a prática sexual? Essa é a posição que nos parece mais acertada. A lei não poderá, jamais, modificar a realidade e muito menos afastar a aplicação do princípio da intervenção mínima e seu correlato princípio da ofensividade.[127]

Todavia, a respeitável sentença ignora a exposição de motivos que culminou com a edição da Lei 12.015/2009, a qual, ainda que determinando o reconhecimento de certa liberdade sexual a adolescentes, com idade entre 14 e 18, não admite a compatibilidade entre o desenvolvimento sexual e o início da prática sexual, e considera que o indivíduo que manter relação sexual com pessoas menores de 14 anos, sob qualquer circunstância, comete estupro de vulneráveis, não admitindo, também, a extinção de punibilidade no caso de casamento entre a vítima e o agente, ou ainda terceiros.[128]

Sob essa mesma perspectiva, a referida Lei apresenta o rol de exposição de motivos, quanto à responsabilidade dos pais ou tutores em delimitar, por meio de seu poder pátrio, a liberdade sexual dos ditos vulneráveis, sendo que essa proteção é garantida pelo Estatuto da Criança e Adolescente e a sua negligência configura crime. Por se tratar de um problema de interesse público, visando à eficácia de sua proteção e não admitindo mais ação privada, de nada vale o perdão do próprio ofendido ou de quem obtenha o poder para representá-lo.[129]

Observa-se, portanto, a pretensão do Código Penal em punir com mais rigor quem atentar contra a dignidade sexual da vítima vulnerável ou quem, ainda, com comportamentos, atinja a esta.[130] Contudo, resta claro que não há um entendimento único acerca da premissa do disposto no artigo 217-A, pois, ainda que o reforço punitivo dado na redação do referido artigo tenha fundamento no princípio da proteção integral da adolescência,[131] existem vários entendimentos e julgados contrários, concluindo que essa é uma discussão que está longe de acabar e a qual tem como finalidade a efetiva manutenção da justiça e a proteção da dignidade sexual de cada pessoa em sua individualidade.

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Sobre os autores
Carlos Eduardo Pires Gonçalves

Graduado em Direito pela Universidade Paranaense (2004). Especialista em Direito Público com ênfase em Direito Penal pela Unp - Universidade Potiguar. Professor das disciplinas de Processo Penal II, Direito Penal III e IV, e Prática Processual Penal I e II no curso de Graduação em Direito da Unifamma. Leciona em diversos cursos de pós-graduação na área criminal.

Anielle Sabino da Costa

Graduada em Direito pela FAMMA - Faculdade Metropolitana de Maringá

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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