1 – Contexto Histórico
A Operação Lava-Jato expôs à sociedade as relações promíscuas entre a Administração Pública e as empreiteiras, que vem desde a época da ditadura militar e resultou na cartelização das obras públicas de grande porte no Brasil. Diante disso, é de fundamental importância colocarmos essa questão sob uma perspectiva história.
O império criado pelas empreiteiras surgiu por meio do Decreto nº 64.345/1969, que dispõe já em seu art. 1º:
Art. 1º: Os órgãos da Administração Federal, inclusive as entidades da Administração Indireta, só poderão contratar a prestação de serviços de consultoria técnica e de Engenharia com empresas estrangeiras, nos casos em que não houver empresa nacional devidamente capacitada e qualificada para o desempenho dos serviços a contratar.
Parágrafo único. Consideram-se empresas nacionais, para os fins deste artigo as pessoas jurídicas que regularmente constituídas no país, tenham aqui sede e foro, estejam sob o controle acionário de brasileiros natos ou naturalizados, residentes no país, e tenham pelo menos metade de seu corpo técnico integrado por brasileiros natos ou naturalizados.
Por causa desse dispositivo legal, criou-se um sistema de protecionismo no mercado da construção civil, sufocando a concorrência perante seus congêneres internacionais e permitindo que as empreiteiras brasileiras crescessem e prosperassem.
Este Decreto teve efeitos legais até 1991, quando foi revogado. Entretanto, isto não resultou na abertura do mercado, pois as empreiteiras brasileiras já tinham crescido e se estruturado o suficiente para não só impedir o desenvolvimento de construtoras fora do cartel por elas formado como barrar a entrada de concorrentes estrangeiras no país.
A Operação Lava Jato abriu os olhos da sociedade para essa situação perniciosa, tornando possível perceber que a corrupção em nosso país está alicerçada em nos contratos envolvendo a construção de obras públicas.
O eminente jurista Modesto Carvalhosa, em entrevista dada a uma revista semanal, expôs muito bem as entranhas desse terrível problema que assola nosso país:
O que é o caso investigado pela Lava-Jato senão o resultado de uma relação promíscua entre empreiteiras e o poder público, aquilo que, na literatura sociológica, denominamos crony capitalismo? Nesse “capitalismo de compadres”, tudo é estabelecido através das relações patrimonialistas e promíscuas entre empresários e o poder público. No caso das empreiteiras brasileiras, esse capitalismo de compadres é ainda mais preocupante. Isso porque há décadas existe aqui uma relação pessoal entre os políticos e os sócios controladores dessas empreiteiras, sedimentadas sobre velhas linhagens familiares. Os favores e vantagens que os políticos recebem se traduzem, em momentos certos, em contratos com o poder público. E esses acertos fundam-se sempre em uma série de ilegalidades, como superfaturamento, falsas medições, péssima qualidade de obras, atrasos e abandono.[1]
Tal situação não poderia mais continuar, sob pena de colocar em risco até mesmo o desenvolvimento do Brasil.
2 – Seguro-Garantia
Os eventos causados pela Lava Jato tornaram obsoletos e inviáveis o “modelo de negócios” praticado entre o poder público e as empreiteiras, exigindo posturas mais transparentes na contratação de obras públicas que, se não solucionarem a questão da corrupção envolvendo esse campo, pelo menos mitiguem seus efeitos.
Antes mesmo da Lava-Jato, houverem tentativas de dar cabo dessa situação. A principal foi o advento da Lei 8.666/1993, também conhecida como Lei de Licitações. Lá, no inciso 4º de seu art. 6º, o referido dispositivo legal trata do seguro-garantia:
Art. 6º: Para os fins desta Lei, considera-se:
(...)
VI - Seguro-Garantia - o seguro que garante o fiel cumprimento das obrigações assumidas por empresas em licitações e contratos;[2]
Esta modalidade de seguro encontra-se regulada por meio da Circular nº 232/2003, expedida pela SUSEP.[3]
O Seguro-Garantia tem por finalidade assegurar que um contrato assinado devido a participação em licitação visando a construção, fabricação, fornecimento e prestação de serviços seja devidamente cumprido.
Adaptando-se estas conceituações à situação aqui apresentada, se a empreiteira, após contratar o referido seguro, não concluir a obra no prazo devido ou de forma inadequada, a seguradora deverá promover os meios necessários para que isso ocorra, seja ela própria contratando terceiro que solucione esse problema, seja indenizando o Poder Público, aqui na qualidade de segurado, para que este contrate outra empreiteira para concluir a obra.
Tal relação gera um círculo virtuoso, pois a seguradora, de modo a evitar ter de passar pela situação acima descrita, fiscalizaria a obra com extremo rigor, cobrando da empreiteira o cumprimento dos prazos impostos, proporcionando a adequação de custos e não comprometimento dos limites de créditos bancários, além de garantir que a obra seja concluída sem falhas.
Esse sistema, além de proporcionar maior lisura na contratação e construção de obras públicas, evitaria que o Poder Público ficasse com o ônus dessa fiscalização, uma vez que seus agentes, de modo geral, têm se mostrado mais propícios a se sujeitar a interesses outros que não os da coletividade.
Entretanto, apesar das nítidas vantagens desse tipo de seguro, ele é pouquíssimo praticado em território nacional, pois as leis brasileiras não obrigam a administração pública a exigir qualquer garantia na contratação de obra pública.
O inciso II do §1º do art. 56 da Lei de Licitações deixa registrado de forma expressa que tanto a autoridade competente é livre para exigir ou não prestação de garntia nas contratações de obras quanto o contratado para optar ou não por qualquer modalidade de garantia que seja.
Além disso, os dispositivos legais acima descritos colocam o seguro-garantia em igualdade de condições com a fiança bancária ou caução em dinheiro e da caução em títulos da dívida pública, cabendo a escolha ao contratado e não ao Poder Público. E como se isso não bastasse, o §3º do art. 56 da Lei 8.666/1993 determina que, independente da garantia escolhida, seu valor está limitado a 10% do que foi contratado.
Pela conceituação básica de seguro-garantia, a ideia tem um potencial enorme para mitigar os problemas causados pela corrupção no Brasil, havendo a necessidade urgente viabilizar a correta aplicação desses dispositivos legais.
3 – Performance Bond
Dentre as várias espécies de seguro-garantia consagradas em nosso ordenamento jurídico, destaca-se aqui o Performance Bond. Modesto Carvalhosa aponta a adoção efetiva e obrigatória desse dispositivo como requisito essencial para as obras públicas, sendo a única solução para por fim ao relacionamento entre o Governo e as construtoras, que quase nunca visam o interesse público.
Segundo Carvalhosa, Performance Bond:
É um mecanismo que acaba com a relação direta entre as empreiteiras e os agentes públicos, ao colocar uma seguradora para intermediar essa conexão. Essa estrutura tripartite cria um conflito muito salutar entre os envolvidos: feito o contrato entre a seguradora e a empreiteira, é a primeira que passa a se reportar ao ente público contratante, ou seja, o governo e seus agentes. Como o lucro da seguradora depende de que a obra seja realizada nos prazos corretos, sem aditamentos, atrasos nem problemas de qualidade, a seguradora fiscaliza o trabalho de perto e com rigor. Atua como um cão de guarda para garantir que a empreiteira cumpra os prazos e preços estabelecidos. Esse é o primeiro “conflito” que se dá entre a seguradora e a empreiteira. O outro, igualmente vantajoso para todos, acontece entre o governo e a seguradora. A seguradora, como já disse, tem todo o interesse em que a obra seja concluída no prazo previsto. Mas, se mesmo assim houver atrasos por parte da empreiteira, existem duas hipóteses: a seguradora passa a bancar a obra para termina-la, como acontece nos Estados Unidos, ou, em casos mais extremos, abandona a construção, mas, nesse caso, tem que indenizar o governo.[4]
É possível, portanto, sintetizar o Performance Bond no país como uma espécie de seguro-garantia utilizado no Direito Administrativo brasileiro como forma específica de assegurar o cumprimento de um contrato envolvendo obras públicas, cabendo à seguradora a fiscalização e o devido cumprimento dos prazos desta.
Este instituto foi criado nos Estados Unidos, em fins do século XIX, sendo obrigatória em contratação de obras por particulares com o governo federal desde o advento do Heard Act em 1893, posteriormente convertido no Miller Act em 1935. Com o tempo, vários estados e municípios estado-unidenses passaram a adotar tal medida, a ponto de exigir a garantia em 100% do valor do contrato.[5]
Carvalhosa define como elementos fundamentais do performance bond a obrigatoriedade da contratação da apólice em todos os contratos de obras públicas de valor relevante, a importância segurada em 100% do valor do contrato e a atribuição do poder de permanente fiscalização da obra e dos recebimentos/pagamentos pela seguradora. Esta passa a ser a principal interessada no cumprimento do contrato entre o poder público e a empreiteira.[6]
Como já foi aqui explicado, a ausência de obrigatoriedade deste dispositivo aliado ao fato da escolha sobre utilizá-lo ou não caber ao contratado e do valor da garantia estar limitado a 10% do seu valor o tornam pouco utilizado no Brasil. Essa realidade, no entanto, está começando a mudar.
Em âmbito nacional, o Projeto de Lei nº 274/2017, de autoria do senador Cassio Cunha Lima, pretende tornar o Performance Bond obrigatório em contratos com valores iguais ou superiores a dez milhões de reais, com a cobertura do contrato abrangendo sua totalidade.[7]
Essa iniciativa tem gerado frutos. Está em trâmite na Câmara Municipal de São José do Rio Preto-SP o Projeto de Lei nº 22/2017, que obriga a utilização do seguro-garantia de execução de contratos públicos de obras e de fornecimento de bens ou de serviços, dando a esse seguro-garantia inclusive o nome de Seguro Anti-Corrupção.[8]
Ardoroso defensor da obrigatoriedade do Performance Bond nos contratos de obras públicas, Carvalhosa ainda defende que o limite de cobertura não deveria ser em 100%, mas em 120% do valor do contrato, de modo que, além do valor da obra se inclua eventuais gastos extras.[9]
Entretanto, engenheiros tem uma posição mais reticente sobre o tema. Para Maçahico Tisaka, a obrigatoriedade do Performance Bond sobre 100% do contrato não é suficiente por si só para acabar com a corrupção, devido a existência de outros fatores que precisam ser ponderados. Segundo ele, quase todas as teses comentadas a favor desse instituto consideram apenas o inadimplemento da contratada e não levam em conta as causas de desequilíbrio contratual provocadas pela contratante governamental, que é o que acontece na maioria dos casos.[10]
Para Tisaka, o pressuposto de que todas as empreiteiras são venais é uma consequência de um sem-número de medidas, leis, decretos, regulamentos etc., que foram baixadas pela Administração Pública ao longo dos anos, que contrariam e restringem o princípio da livre iniciativa dos empresários.”[11]
Umas das causas para esse estado de coisas apontada pelo eminente engenheiro é o fato da Lei n 8.666/1993, estar desatualizada e completamente alienada das reais necessidades do país, dando vazão a todas as irregularidades aqui apontadas.
Tisaka arremata sua linha de raciocínio da seguinte forma:
Pode-se perceber, dessa rápida análise realizada, que a eventual introdução da obrigatoriedade dessa modalidade de seguro garantia é complexa e está longe de ser de fácil adoção, pois as principais irregularidades que acontecem na execução de um contrato com a Administração são decorrentes das excessivas limitações que as leis e os regulamentos vigentes impõem sobre a contratada, propiciando condições para a prática de condutas ilegais entre os agentes diretamente envolvidos.
Diante dessa caótica situação da nossa legislação, não limitada a algumas cláusulas da Lei nº 8666/93, a pergunta é se haverá seguradoras capazes de assumir riscos tão grandes e incertos, que podem comprometer os limites do seu próprio patrimônio, mesmo havendo a contrapartida dos tomadores da garantia.
Paulo Leão de Moura Júnior corrobora com esse questionamento ao salientar que “atualmente inexiste lei clara e específica regulando como uma seguradora poderá assumir o prosseguimento da obra, o que prejudica e inviabiliza o chamado ‘step in’ (entrada da seguradora) no projeto.”[12]
Percebe-se, portanto, a pertinência desses questionamentos á aplicação do Performance Bond no Brasil.
4 – Considerações Finais
O país deve muito á Operação Lava Jato. Por meio dela, a sociedade tomou conhecimento dos meandros envolvendo as relações promiscuas entre as empreiteiras e o Poder Público, forçando uma revisão total dessa relação, de forma a dar mais transparência e lisura à mesma.
A despeito da criação do seguro-garantia, por ocasião do advento da lei de Licitações e da extrema utilidade desse dispositivo, o mesmo não tem como ser colocado em prática, devido a circunstâncias na legislação que impedem seu uso.
Uma das principais mudanças causadas pela Lava Jato foi a necessidade de dar caráter obrigatório ao performance bond, de modo a moralizar a contratação de obras públicas, contribuindo sensivelmente para amenizar os fatores causadores da corrupção no país.
De fato, é muito tentador aniquilar um foco grave de corrupção obrigando as empreiteiras a fazerem um seguro sobre a conclusão de uma obra, impondo que o limite de cobertura seja 100% sobre o valor contratado e colocando o Poder Público como beneficiário, cabendo às seguradoras cobrarem daquelas que os prazos sejam cumpridos, que o orçamento não seja estourado e que o processo de construção e acabamento seja impecável.
Todavia, tal sequência de eventos, por si só, não é suficiente para que o performance bond funcione de fato no Brasil. Além de dispositivos legais regulando com eficiência este instituto, há também que se providenciar os meios e incentivos necessários para que esse tipo de seguro seja atrativo para as seguradoras, evitando que estas, ao ofertarem esse seguro, não coloquem em risco seu patrimônio.
Aparadas essas arestas, a adoção da obrigatoriedade performance bond com cobertura de 100% sobre o valor contratado tem todas as condições de encerrar de vez o histórico relacionamento pernicioso entre as construtoras e a Administração Pública, encerrando de vem a corrupção entranhada nesse setor e pondo fim a um triste capítulo de nossa história.
[1] CARVALHOSA. Modesto. Fórmula Anticorrupção. Veja, São Paulo, edição 2.467, n. 9, p. 16, 02 mar. 2016.
[2] BRASIL. Lei de licitações. Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993. Regulamenta o art. 37, inciso XXI, da Constituição Federal, institui normas para licitações e contratos da Administração Pública e dá outras providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8666cons.htm>. Acesso em: 28 mar. 2018.
[3] SUPERINTENDÊNCIA DE SEGUROS PRIVADOS (SUSEP). História do Seguro. Rio de Janeiro, 1997. Disponível em: <http://www2.susep.gov.br/bibliotecaweb/docOriginal.aspx?tipo=1&codigo=13041>. Acesso em: 28 mar. 2018.
[4] Op. Cit. p. 15/16.
[5] MARCONDES, João Cláudio Monteiro. Performance Bond e os contratos de obras públicas, 2016. Disponível em:< https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/performance-bond-e-os-contratos-de-obras-publicas-uma-solucao-para-um-antigo-problema-20042016>. Acesso em: 29 de mar. 2018.
[6] CARVALHOSA, Modesto. Corrupção nas obras públicas, 2016. Disponível em:< http://opiniao.estadao.com.br/noticias/geral,corrupcao-nas-obras-publicas,10000070762>. Acesso em: 04 de abr. 20148.
[7] BRASIL. Senado Federal. Projeto de Lei do Senado PLS 274/2016. Dispõe sobre o seguro garantia de execução de contrato na modalidade segurado setor público, determinando sua obrigatoriedade em todos os contratos públicos de obras e de fornecimento de bens ou de serviços, de valor igual ou superior a R$ 10.000.000,00 (dez milhões de reais), alterando a Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993 para estabelecer o limite de cobertura do seguro garantia em 100% (cem por cento) do valor do contrato, além de prever outras providências. Disponível em: < https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?dm=568200&disposition=inline> . Acesso em: 29 mar. 2018. Texto Original.
[8] SÃO PAULO. Câmara Municipal de São José do Rio Preto. Projeto de Lei PL 22/2017. Regula no âmbito municipal a aplicação do artigo 55, inciso VI e artigo 56, inciso II da Lei Federal 8.666/93, obrigando a utilização do seguro-garantia de execução de contratos públicos de obras e de fornecimento de bens ou de serviços, denominando essa modalidade e aplicação da Lei, como Seguro Anti Corrupção – SAC; e dá outras providências. Disponível em: < proposicoes.saojosedoriopreto.sp.leg.br/arquivo?id=345822> . Acesso em: 29 mar. 2018. Texto Original.
[9] Op. Cit. p. 16/17.
[10] TISAKA, Maçahico. Seguro Performance Bond para obras públicas, Revista Engenharia, São Paulo, nº 631, ano 74, p. 86-87, out./dez. 2016.
[11] Op. Cit.
[12] MOURA JÚNIOR, Paulo Leão de. O Performance Bond e a Corrupção, 2016. Disponível em:< https://www.editoraroncarati.com.br/v2/Artigos-e-Noticias/Artigos-e-Noticias/O-Performance-Bond-e-a-Corrupcao.html>. Acesso em: 04 de abr. 2018.